quinta-feira, 7 de novembro de 2024

Habacuque e a causa da violência

    Uma das mais frequentes argumentações contra a existência de Deus, segundo afirmam os que não acreditam, reside na existência e na operância da maldade.

  Habacuque, o profeta, de modo franco num diálogo com Deus, denuncia a violência, como se reclamasse contra a indiferença divina: Hc 1:

² "Até quando, Senhor, clamarei eu, e tu não me escutarás? Gritar-te-ei: Violência! E não salvarás?"

  Muito cedo na narrativa bíblica temos encontro marcado com a violência gratuita. Por incrível que pareça, ainda na família do primeiro casal, ela mostra sua força sem argumento.

  Caim, por iniciativa própria, decide ofertar a Deus das primícias da terra. Abel, seu irmão, decide pelo sacrifício de um cordeiro, ambas ofertas legítimas como, posteriormente, instruirá o Levítico.

     Mas Deus, que olha o coração, acolheu a oferta de Abel, mas rejeita a de Caim. Ora, parece estarmos diante do primeiro conflito por motivo religioso, os piores da história. Ah, sim, recheados de violência.

    Deus procura Caim, denuncia um semblante que não esconde intenções e adverte que o mal que ele acolhe, em si mesmo, compete a ele dominar. Gn 4.

⁶ Então, lhe disse o Senhor: Por que andas irado, e por que descaiu o teu semblante? ⁷ Se procederes bem, não é certo que serás aceito? Se, todavia, procederes mal, eis que o pecado jaz à porta; o seu desejo será contra ti, mas a ti cumpre dominá-lo."  

  E o trato dado por Deus a essa iniciativa da condição humana nos surprende. Porque, configurada a ameaça da violência, reconhecida  e identificada pelo próprio Deus, vai intervir de modo direto, denunciando suas raízes e chamando à conversão.

   E, de certo modo, antecipa a perplexidade do profeta, porque interpela, como num apelo, o protagonista dessa violência primordial. Deus reconhece a intenção perversa e convida Caim à conversão, a única maneira de anular o sentimento que gera toda a violência: o pecado.

   Mas não procura Abel, para prevenir ou mesmo proteger. Abel revela sua fé, é aceito por Deus, mas não há, por isso, garantia de que a violência não o alcançará. E quanto ao irmão, deve ter saído do diálogo com Deus dizendo, consigo mesmo, inútil, porque vou matar o meu irmão.

  Parece que o caso Caim X Abel reforça a perplexidade de Habacuque, basta reler acima o seu libelo queixoso dirigido a Deus. Como se questionasse, ora, Deus vai encarar o sentimento de violência convocando o potencial violento à conversão?

  E a resposta de Deus à violência será sempre a opção pela fé. Provavelmente, Deus esteja querendo dizer que somente viver por fé será o antídoto contra toda e todo o tipo de violência. Porque o justo vive por e de sua fé, não pratica  violência. Como já diz Jesus, os mansos é que herdarão a terra. Habacuque obteve sua resposta: Hc 2:

² "O Senhor me respondeu e disse: Escreve a visão, grava-a sobre tábuas, para que a possa ler até quem passa correndo. ³ Porque a visão ainda está para cumprir-se no tempo determinado, mas se apressa para o fim e não falhará; se tardar, espera-o, porque, certamente, virá, não tardará. ⁴ Eis o soberbo! Sua alma não é reta nele; mas o justo viverá pela sua fé."

   É definitivo. A soberba afasta da fé. Habacuque precisou reconhecer que a opção de seu povo foi por bastar a si mesmo, escolher o caminho diverso e ao inverso da opção de fé. 

  E a opção pela fé vale, individualmente, como foi proposta a Caim, assim como coletivamente, para toda a nação de Israel, uma vez com ela confrontada, seja para praticá-la ou não.

   Habacuque profetiza num tempo em que a invasão babilônica é latente. O império da hora vai exigir para si a ocupação da Palestina, mais exatamente o reino que restou, no sul, cuja capital era Jerusalém.

  E vai chegar, a principio, exigindo somente tributos, em 605 a.C., provável ano do início do ministério de Jeremias. Retornarão em 597, para coibir o esboço de revolta de Jeioaquim, que quase consegue matar Jeremias, após rasgar e queimar o rolo que esse profeta havia escrito.

   E finalmente, em 586 a.C., virão efetuar o cerco, que vai durar 2 anos, até que toda a cidade seja incendiada, derrubadas as muralhas e o Templo deixado em ruínas. 

   Foi também a escolha de Caim. Quando Deus dá o diagnóstico, é melhor render-se à fé. O diagnóstico é a soberba. E o único antídoto é a fé. Por isso Deus convida à conversão, como fez o próprio Jeremias a todo o povo, pouco tempo após a profecia de seu colega Habacuque:

⁴ "Circuncidai-vos para o Senhor, circuncidai o vosso coração, ó homens de Judá e moradores de Jerusalém, para que o meu furor não saia como fogo e arda, e não haja quem o apague, por causa da malícia das vossas obras." Jr 4.

   Jeremias, certa vez, ainda com o Templo de pé, foi enviado por Deus a confrontar um profeta soberbo. Ele, com a maioria dos demais falsos profetas, contrariava o que Jeremias afirmava sobre o cativeiro babilônico, às portas.

   Era isso que assustava Habacuque. Ele era obrigado, pelas circunstâncias, a concordar com Jeremias. O falso profeta Hananias dizia que o exílio duraria 2 anos. Mas dois anos foi o cerco à cidade, descrito nas Lamentações. O exílio durou 70 anos.

  Mesmo antes, durante e depois do exílio, o justo vive por fé. Ainda que a soberba iluda e derrube por terra, deixe prostrado e humilhado, a fé prevalece. Ela sempre será opção. E quem por ela optar, por ela será justificado. É assim desde o justo Abraão:

¹ "Justificados, pois, mediante a fé, temos paz com Deus por meio de nosso Senhor Jesus Cristo; ² por intermédio de quem obtivemos igualmente acesso, pela fé, a esta graça na qual estamos firmes; e gloriamo-nos na esperança da glória de Deus." Rm 5.
  
  A fé que não justificou Caim. Israel, como nação, seguiu esse mesmo caminho de soberba: todo o crédito a si mesmo, nenhum a Deus, vivendo como se nunca O conhecesse. Jeremias viu mais fidelidade das nações aos ídolos do que de Israel a seu Deus:

¹¹ "Houve alguma nação que trocasse os seus deuses, posto que não eram deuses? Todavia, o meu povo trocou a sua Glória por aquilo que é de nenhum proveito." Jr 2.

   A prisão está dentro. O pecado cativa para si. É Deus que define qual seja a raiz: o pecado está dentro, o desejo dele é homicida e ao homem/mulher cumpre dominar. E somente a conversão ao Senhor concede vitória.

   O justo viverá por fé. Estamos diante da opção, seja a de de Caim ou a de Abel. Este, mesmo depois de morto, ainda fala. Escreve a visão.

Nenhum comentário:

Postar um comentário