⁵ "Tende em vós o mesmo sentimento que houve também em Cristo Jesus". Fp 2.
Esse texto das Escrituras é fantástico. Frequentemente, como aquele outro, dessa própria carta, "Tudo posso, naquele que me fortalece", muitas vezes focado fora de seu contexto.
Lá pelo início dos anos 90, quando pastoreava Copacabana, eu e meu amigo Eneas, ele católico e eu evangélico, praticávamos capelania no Anexo do Complexo Penitenciário da Frei Caneca, no Rio, prédio que não mais existe, implodido em 2010.
Para ilustrar esse (des)entendimento do versículo fora de contexto, eu ministrava estudos bíblicos, nesse Anexo, que abrigava policiais apenados. Um deles me contou que, para motivar o irmão, num assalto muito arriscado que planejaram, a um depósito de gás, utilizou o incentivo desse "Tudo posso, naquele que me fortalece".
E ele arrematou: "Pastor, animei-o com esse verso da Bíblia, fizemos o assalto e, graças a Deus, correu tudo bem, porque, ainda que houvesse tiroteio, ninguém foi ferido".
Pois esse outro, de Fp 2,5, sobre "ter o sentimento de Cristo", também bastante romanceado, em seu uso, requer reflexão. Já que fica no início de uma perícope, como costumamos denominar uma unidade bíblica de pensamento.
E ela remete ao sentimento com que Cristo refletiu sobre sua tarefa, de deixar a glória do Pai, assumir sua humanidade, ser rejeitado, humilhado, torturado e morto. Diante dessa opção de Cristo, nutrirmos o mesmo sentimento dele, não é simples e nem romântico.
A começar, em nós e, por nós, pela identificação do sentimento nosso corriqueiro. Porque há sempre, em nós, o que rivaliza com o sentimento de Cristo. Aliás, este é em nós implantado, a partir do momento que surge, em nós, o novo homem que, segundo Paulo, ¹⁰ "... se refaz para o pleno conhecimento, segundo a imagem daquele que o criou", Cl 3.
Tiago chega a descrever o sentimento nosso, de origem, definindo-o como: ¹⁴ "Se, pelo contrário, tendes em vosso coração inveja amargurada e sentimento faccioso, nem vos glorieis disso, nem mintais contra a verdade. [...] ¹⁶ Pois, onde há inveja e sentimento faccioso, aí há confusão e toda espécie de coisas ruins." Tg 3.
Pois o nosso sentimento, herança do velho homem, vivo e ativo, na espreita, dentro de nós, pode imperar, rivalizar e ocupar o lugar desde sentimento de Cristo. Portanto, uma atitude inicial, na origem mesma da intenção em nutrir esse sentimento que Paulo identifica e recomenda, está na luta interna contra esse nosso próprio sentimento.
E nossa especialidade, vejamos bem, é, como define Tiago, o "sentimento faccioso", quer dizer, não há ninguém melhor do que eu e o grupo que, em torno de mim mesmo, se agrega. E não sou (ou não somos) melhores, por causa do(s) outro(s), esse "próximo", a quem Jesus se refere. Para citar Sartre, um ateu convicto, que afirmou "o inferno são os outros". Ele acertou: o outro nos revela.
Vamos deixar de disfarces, de nossa moldura "espiritual", nossa piedade fake, aceitar o discernimento do Espírito, ainda que dolorida a realidade que esse espelho nos revela, e aceitar a cirurgia, essa circuncisão diária, feita pela mão de Deus, despojando-nos, a cada dia, desse tão nós mesmos velho homem:
²² "... no sentido de que, quanto ao trato passado, vos despojeis do velho homem, que se corrompe segundo as concupiscências do engano, ²³ e vos renoveis no espírito do vosso entendimento, ²⁴ e vos revistais do novo homem, criado segundo Deus, em justiça e retidão procedentes da verdade." Ef 4.
Essa é a verdadeira circuncisão: ¹¹ "Nele, também fostes circuncidados, não por intermédio de mãos, mas no despojamento do corpo da carne, que é a circuncisão de Cristo," Cl 2. Cirurgia essa sem anestesia.
Caso, irmão, estejamos, nesse processo, sentindo certa dormência, sensação indolor e eventual lacrimejar, cuidado, pode ser pura hipocrisia nossa.
Mas caso haja arrependimento, vai prevalecer a modalidade sincera do choro translúcido, plenamente possível, expresso naquela bem-aventurança. Desconfie e avalie: se assim for, esteja em paz.
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