terça-feira, 2 de julho de 2024

Apenas um dia

"É só o que eu pedia, viu?/Um dia pra aplacar/Minha agonia/Toda a sangria/Todo o veneno/De um pequeno dia". Chico Buarque.

   Em certa proporção, eles acertam. Compositores populares, ou nem tanto, mas sendo inteligentes, o que é o caso deste, acertam.

  Basta um dia. Substantivo comum. Como comuns são os dias. Perdem-se ao longo dos anos. Contam-se aos milhares.

    Eu, por exemplo, caso complete 30 anos de Acre, em janeiro de 2025, serão, por volta, 30 X 365 = 10.950 dias.

  Entre os textos bíblicos que eu não cumpro, rigorosamente, está esse de contar os dias, tendo em vista um coração sábio. Numa versão livre:

¹² "Ensina-nos a contar os nossos dias para que o nosso coração alcance sabedoria." Salmo 90.

  De cima de meus 67 anos, 24.455 dias, sem contar os bissextos, desperdicei muito nessa conta. O Altíssimo, em sua infinita paciência, longanimidade, misericórdia contemplou-me com muito mais do que o merecido.

  Meu pai era um roceiro, que se rebelou dessa condição. Atiçado pelo tio, irmão e muito amigo do pai dele, encheu os olhos pelo Rio de Janeiro, a cidade grande, isso na década de 30 do século XX.

   Mas trouxe a roça com ele. Contentava-se com pouco. Por isso, olhava em mim grande recompensa divina. Única opção. Quarto parto da esposa.

   Houve dois abortos espontâneos, um deles seria uma menina, que dias! O terceiro nascido, também Cid, como o pai, nascido em ano bissexto, 1956, no último dia de fevereiro, foi sepultado em 12 de março, dia do aniversário da mãe.

   Que dia. Contar os dias. Há os de maior marca. De outra forma, seriam esquecidos. Mas ocorreu nota súbita. Como o parto de meu primeiro dia, cesariana, com hemorragia quase fatal para a parturiente. 6 de maio de 1957.

   Como o dia em que escorreguei do banco de madeira, para mim ainda alto, da Congregacional de Nilópolis, 14 de abril de 1963, me dizendo convertido.

  Na mente daquela criança, estava sendo sincero. Porque me deram, o pastor Ivan Espíndola de Ávila, um cartão, onde veio escrito:

¹⁰ "Seja fiel até a morte, e eu lhe darei a coroa da vida." Apocalipse 2.

  E eu perguntei aos pais se ia conseguir. Pelo menos, eu entendi, achando que, no decorrer dos dias, assim, desperdiçados, eu não seria fiel.

  Pois lá se vão, já, mais de 60 anos, ou seja, mais de 21.900 dias. Pois basta um dia. Num dia, numa cruz, resolveram-se todos e cada dia.

   Se não fosse esse resgate da existência, sim, estariam desperdiçados todos os dias. Como diz um verso seguinte dessa mesma música, gastos na orgia.

   Palavra que, na década de 30, quando Cid, o pai, chegou ao Rio, era sinônimo de boemia. As palavras também se desgastam nos dias. Principalmente as nossas palavras.

   Mas a palavra da cruz não. A ofensa desse dia. Certa vez, um homem chamado Pedro, contrariando ordem de autoridades, continuou a falar desse dia.

   Então o prenderam. Ele rabateu, na audiência, dizendo:

¹⁵ "Vocês mataram o autor da vida, mas Deus o ressuscitou dos mortos. E nós somos testemunhas disso." Atos 3.

   Sim. Mataram o autor da vida. Num dia. Houve esse dia. Assim como, no primeiro dia, Deus disse haja luz. Sobre todo o caos, no início dos dias, Deus disse: "Haja luz". E houve luz.

   A palavra e a luz, aquela ressoa e esta brilha, todos os dias. Isso lembra a palavra de gratidão do rei poeta, Davi, que um dia disse:

²⁸ "Tu, Senhor, manténs acesa a minha lâmpada;
o meu Deus transforma em luz as minhas trevas." Salmo 18.

   Todo dia. Avisem isso ao Chico.

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