sexta-feira, 18 de outubro de 2024

Isaías e a banalização do mal

⁵ "Então, disse eu: ai de mim! Estou perdido! Porque sou homem de lábios impuros, habito no meio de um povo de impuros lábios, e os meus olhos viram o Rei, o Senhor dos Exércitos!" Is 6.

   Por vezes a menção a qualquer deslize soa banal. Na consciência do mal que o afligia, Isaías se expressou como quem reconhecia sua gravidade.

   Poderia parecer um "pecado menor", pelo qual não valia muito a pena corrigir-se. Ora, com tanta coisa pior, o que seriam lábios impuros? Passaria batido, visto que, no contexto geral, todo mundo tinha o mesmo costume.

  Muito embora Jesus afirme, numa polêmica com os fariseus, que "a boca fala do que está cheio o coração", Mt 12,34, e Tiago mencione que a língua se gaba de controlar todo o corpo, Tg 3,5, nesse caso, todo o coração seria rendido à impureza e todo os rumos do corpo norteados por ela.

   Portanto, o que atribulava o profeta não era um incômodo de pequena monta. E não pensemos num efeito cinemático da visão, pelo qual a brasa retirada do altar e posta na sua boca, definitivamente resolveria, de imediato, toda a impureza acumulada.

   Um hábito não se extirpa por magia, numa visão mística mas, pelo menos, dele se toma consciência. Isaías, como Paulo nos explica, teria de aplicar a si mesmo o que agora via necessário também corrigir nos outros.

⁶ "Estas coisas, irmãos, eu as apliquei figuradamente a mim e a Apolo por amor de vós, para que em nós aprendais a não ultrapassar o que está escrito, a fim de que ninguém se ensoberbeça a favor de um, em detrimento do outro." 1 Co 4.

  O assunto acima é outro, mas a metodologia é a mesma. Paulo aplica a si mesmo e a Apolo o que deseja transmitir a todos os crentes de Corinto. Deus coloca Isaías diante da dimensão do erro que o torna igual a todos os demais.

   Nem o profeta e nem o apóstolo pertencem a uma "elite espiritual", equívoco atualmente muito fácil de ser assumido. Somos do mesmo barro de que nossos pais mas, quando chamados, teremos de aplicar, aprender, corrigir em nós para, somente então, exortar outro.

   Despir-se do velho homem, cada um de nós, para ser modelo a quem se despe do seu. Não somos chamados a lidar como as mazelas alheias, mas servir de exemplo de como cada um pode delas livrar-se.

   Banalização do mal é quando não avaliamos, por desleixo ou por leviandade, a dimensão do mal que nos assola, muitas vezes comum rotina e partilha afeita a todo nosso contexto de vida.

  O profeta olha para si, lamenta, acusa primeiro sua desqualificação, reconhece o processo muitas vezes longo e doloroso da necessidade de santificação, para então, consciente, atender ao chamado.

  Paulo assim expressa, por metáfora, esse processo: 1Co 9:
²⁷ "...pelo contrário esbofeteio o meu corpo e o reduzo à escravidão, para que havendo pregado a outros, não venha eu mesmo a ser desqualificado."
 
  Isaías não fez concessões. Não quer dizer que se tornou legalista, com uma lupa buscando alhures todas as falhas. Porém Deus lhe concedeu nítida dimensão de um mal compartilhado, do qual era necessário livrar-se.

      É usual afirmar, em termos genéricos, que há exagero em várias posturas éticas dos crentes. "Não tem nada a ver", para uma série de comportamentos, aliado à ideia corrente de que a igreja, buscando aceitação, precisa fantasiar-se de mundo, maquiando-se aqui e ali, para identificar-se, a fim de ser aceita e reconhecida.

   Jesus, nosso padrão e modelo não precisou de nada disso. A rejeição que sofreu foi devido a sua identidade, denunciadora do desvio do pecado, e sua aceitação somente se deu por sua autenticidade, como plena revelação de Deus e seu evangelho.

   É dessa identificação, sem maquiagem, de que a igreja carece. O mundo tem sede dessa autenticidade. Ele não pode se ver na igreja, assim como a igreja não pode se ver no mundo. Foi Jesus quem disse:

¹⁵ "Não rogo que os tires do mundo, mas que os guardes do maligno. ¹⁶ Eles não são do mundo, como eu não sou do mundo. ¹⁷ Santifica-os na verdade; a tua palavra é a verdade." Jo 17.

   Jesus foi o único ser humano, à imagem e semelhança de Deus. Autêntico e, ao mesmo tempo, identificado com a sociedade de seu tempo. Com personalidade e palavra decisivas, punha em xeque o que estava distorcido ou contraditório em todo o contexto social.

   A igreja precisa vivenciar a principal afirmação do Novo Testamento a seu respeito: ela é testemunha de Jesus Cristo. Paulo define ministério como:

²⁶ "...o mistério que esteve escondido dos séculos e das gerações; mas agora foi descoberto a seus santos, ²⁷ a quem aprouve a Deus fazer conhecer quais são as riquezas da glória deste mistério entre os gentios, que é Cristo em vós, esperança da glória". Cl 1.

   Aos Gálatas, Paulo alude as suas "dores de parto": ¹⁹ "... filhinhos meus, por quem de novo sinto as dores de parto até que Cristo seja formado em vós". Gl 4.

   A igreja carece de ser modelo de Jesus Cristo no mundo. Não será nem legalista, nem permissiva, inautêntica ou mimética, procurando afeiçoar-se ao mundo para conquistar nele espaço ou reconhecimento.

   A igreja é única a anunciar o evangelho, a maior carência em socorro às angústias do mundo. Não há outra resposta: é portadora da única mensagem de salvação. Precisa retomar consigo a importância desse valor.

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