terça-feira, 4 de maio de 2021

Ora, como o evangelho chegou ao Antônio - 2

 O que Sérgio queria me dizer foi que jogava no jacaré, ora, sei lá, mas fazia o seu palpite na "roda da fortuna", o popularíssimo jogo do bicho. Isso o impedia de se batizar. Mas que ele queria, isso ele queria. Eu disse aleluia! Ele arregalou os olhos.

Eu repliquei, Sérgio, pensa comigo. Se somente te falta, para o batismo, largar o palpite nessa "roda do infortúnio", isso é o mais fácil: o mais difícil, quer dizer, o impossível, para nós, mas não para Jesus, já está feito. Você é convertido autêntico.

Lembramos juntos do texto do jovem rico. Porque quando os apóstolos, na avaliação deles viram o "gente boa" ser reprovado no teste que Jesus fez, Pedro, exagerado como era, falou, Mestre, se esse cara não é gente boa, ninguém é. Jesus respondeu que conversão não é, somente, difícil: é impossível.

Foi assim que eu e Sérgio, naquela manhã, encerramos a conversa: fica combinado, Sérgio, o impossível, para nós, já ocorreu. Você é crente. Quando largar isso aí, me procura. Largou e não demorou muito. Batizei. Eu acho que batizei (com menos água) aquela família toda.

Os meninos de Solange começavam a vir com a tia Sueli e as primas, Patrícia e Simone. Rafael e Gustavo. Certa vez, coincidiu que eu os visse chegar trazidos pela mãe. Apressada, deixou-os na porta da igreja. Os meninos despediram-se, foi quando o caçula falou fica mãe, vamos entrar. Solange argumentou, hoje não, filho, mamãe não colocou a roupa de domingo e deixou por fazer o almoço em casa.

Mas ela promete que vem. Vai ser outro dia. Por falar em "vai ser outro dia", parecendo letra de música, não esqueço a primeira vez em que Solange havia entrado na igrejinha antiga. Sentou-se bem na frente, no segundo banco. Gustavo, o caçula, dormia em seu colo. Mas o desenho de sua boca se mostrava meio que contrariado. Essa foi a leitura que fiz.

Me parece que era um aniversário de uma das meninas de Sueli, a irmã. Solange veio contrariada. Aquela história de agora serem protestantes era meio descabida. Pelo código de ética que as unia, as três, sim, porque tem a outra de Campo Grande, esse código não permitia que uma falhasse com a outra. Nisso aí tinha o dedo de Alda. Equação rígida. Por isso, jamais faltaria o aniversário da sobrinha, ainda que fosse naquela "igrejinha" (aqui, com aspas).

Solange veio. Gustavo dormindo no colo. Estratégia das meninas de Sueli. A gente convida, o senso ético funciona, ela não vai negar, tem raiva de crente e raiva de igreja, mas o evangelho faz o seu serviço. Há bálsamo do Espírito em Gileade (e em Cascadura, qualquer "cascadura", também).

E um dia, para cumprir a promessa feita ao filho caçula, num outro domingo de sol bem ali, no velho portão da velha igreja, Solange veio. E nunca mais deixou e nem nunca vai deixar de vir. Agora a luta em oração era por Antônio. Diferente de Sérgio, no porte e no tamanho, não menos econômico nos gestos.

Também pouco se ouvia sua voz. Tarimbado (e calibrado) pelo toque especial das filhas de Alda. Ah, as filhas de Alda. Dá assunto de uma série da Netflix. Sueli, já falamos dela, não tinha o porte, digamos assim, a altura assintosa, impositiva, intimidatória de Solqnge. Esta se impunha pelo porte. Mas não se iludam. Tinha o mesmo poder de Sueli. Só que represado.

Sueli era (quer dizer, é) do tipo que, para compensar o porte menor, impõe-se pelo olhar, franzir de todo o rosto, estado de alerta máximo. Já viram aqueles tornados, pelo menos em tela, hurricane, em inglês? Se um deles encarar Sueli, retorna, nem contorna. Já Solange é diferente. Com um rosto de estátua grega, tem um lago de Itaipu represado dentro. Se for necessário, mas só se for necessário, move 8 turbinas de alta tonelagem (ou devo dizer Alda tonelagem) de uma só vez.

E a de Campo Grande? Ha ha ha, a de Campo Grande. Nunca a vi sem sorrir. Vejam bem, não estou dizendo que Sueli e Solange não riem também. Claro que riem. Quando riem, quem conhece as duas, fica sério. É melhor: nunca se sabe por que motivo riram. Mas a de Campo Grande, literalmente só ri. Deve ter feito muita raiva às outras duas, rindo na cara delas, durante toda a vida, todas juntas na mesma companhia. Imagino. Enfrentava rindo (para as duas e das duas) o mau humor (ocasional, é claro) delas.

A força dela, a mesma das outras duas, está no sorriso. Porque o humor que d. Alda tem latente, sutil, enrustido, essa irmã tem patente, explícito, franco. Quando o evangelho chegou na vida das três, tudo mudou. Porque concedeu a capacidade que só ele tem de suprir com força, com a força do Senhor, a vida inteira. A alegria no Senhor é a nossa força. Em cada momento, em cada dificuldade, que não foram poucas. A marca da amizade e da ajuda mútua preencheu a vida dessas mulheres.

Orávamos por Antônio. Eu acho que a conversão dele se deu quando eu já estava a pouco mais de 4.000 km de distância, aqui no Acre. Mas ainda assisti ao despertamento de sua curiosidade lá na antiga igrejinha. Deus começava a mexer no entendimento de Antônio, a despertar seu coração para o evangelho. Eu acho que pregava em Hebreus.

"Tende cuidado, irmãos, jamais aconteça haver em qualquer de vós perverso coração de incredulidade que vos afaste do Deus vivo'. Hb 3,12. O termo bíblico "Deus vivo" bateu e ricocheteou no entendimento de Antônio. Ali onde estava, na fileira predileta de Solange, bem na frente, ele me interrompeu e não se conteve: "Como assim, Deus vivo?".

Aquilo me surpreendeu. Nunca antes ocorrera comigo. Era inusitado mesmo. Mas bem espontâneo. E nisso residia todo o valor da pergunta. Acho até que Solange ensaiou alguma reação. Mas amenizei. Sem constragimemtos.  Seria mais usual uma pergunta assim na escola dominical. Ela já estava experimentada nesse protocolo.

Mas exatamente nessa quebra de protocolo estava assinalado o começo de Antônio andar com Deus. Eu repondi a ele, pego de surpresa, Deus único, não há outro, não existe outro, qualquer outro é invenção. Deu-se por satisfeito. Uma conversa ou outra ainda trocamos após o término daquele culto.

Ali começava a vida de Antônio com Deus. E continua. E nunca vai acabar. Nunca mais. Tão longe assim nos cunduz o evangelho. E assim tão perto, de Deus, com Deus e para Deus. 

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