quinta-feira, 26 de março de 2020

Lição 4 (I e II) - Panorama da igreja - At 2,42-47; 4,32-35; 9,31.

Atos 2,42-47; 4,32-35; 9,31.

E perseveravam na doutrina dos apóstolos e na comunhão, no partir do pão e nas orações.
Em cada alma havia temor; e muitos prodígios e sinais eram feitos por intermédio dos apóstolos.
Todos os que creram estavam juntos e tinham tudo em comum.
Vendiam as suas propriedades e bens, distribuindo o produto entre todos, à medida que alguém tinha necessidade.
Diariamente perseveravam unânimes no templo, partiam pão de casa em casa e tomavam as suas refeições com alegria e singeleza de coração,
louvando a Deus e contando com a simpatia de todo o povo. Enquanto isso,  acrescentava-lhes o Senhor, dia a dia, os que iam sendo salvos". Atos 2,42-47.

Da multidão dos que creram era um o coração e a alma. Ninguém considerava exclusivamente sua nem uma das coisas que possuía; tudo, porém, lhes era comum.
Com grande poder, os apóstolos davam testemunho da ressurreição do Senhor Jesus, e em todos eles havia abundante graça.
Pois nenhum necessitado havia entre eles, porquanto os que possuíam terras ou casas, vendendo-as, traziam os valores correspondentes
e depositavam aos pés dos apóstolos; então, se distribuía a qualquer um à medida que alguém tinha necessidade. Atos 4:32-35

A igreja, na verdade, tinha paz por toda a Judeia, Galileia e Samaria, edificando-se e caminhando no temor do Senhor, e, no conforto do Espírito Santo, crescia em número.  Atos 9:31.

 Introdução 
 
      A avaliação que Lucas faz da igreja, nesse início do livro de Atos, sintetiza-se nas referências  bíblicas acima. Aspectos notáveis são enumerados, o que nos conduz a uma natural comparação com a história atual da igreja.
 
         Que valores podemos estabelecer nessa relação?  Será possível avaliar uma pela outra, quer dizer, a chamada "igreja primitiva" e a contemporânea? 
 
    Sejamos realistas, uma e outra apresentam vícios e virtudes, porque são imperfeitos os crentes de ambas as épocas. Mas a comparação nos permitirá enumerar aspetos da igreja do passado que a atual não deve deixar de preservar.

   Passamos e indicar as qualidades ressaltadas por Lucas, pelo modo como a igreja dava continuidade ao seu ministério, no suprimento do Espírito e na identidade com Jesus.


1. Rotina diária da igreja primitiva e seus efeitos

1.1. "Diariamente perseveravam unânimes no templo, partiam pão de casa em casa e tomavam as suas refeições com alegria e singeleza de coração, louvando a Deus", At 2,46-47a.

       Vamos analisar, passo a passo, as observações feitas por Lucas, sobre a agenda da igreja:

1.1.1. Diariamente iam ao templo: não havia ainda templo, no sentido atual, para aqueles irmãos. O Templo de Jerusalém era um conjunto arquitetônico imenso, possuindo variados recantos de encontro, que o próprio Jesus utilizou, Lc 19,46-48:

"Diariamente, Jesus ensinava no templo; mas os principais sacerdotes, os escribas e os maiorais do povo procuravam eliminá-lo; contudo, não atinavam em como fazê-lo, porque todo o povo, ao ouvi-lo, ficava dominado por ele".

      A Igreja aqui seguia a própria rotina de Jesus, que era diária. Talvez a vida moderna não nos permita estar "diariamente no templo". Azar o nosso. Se não substituirmos a necessidade, de que não podemos abrir mão, de "diariamente perseverar unânimes no templo", ainda achamos que haverá uma outra compensação?

       Essa rotina da igreja é vista. Empresas, TV, governos, Bancos e Bolsa de Valores, enfim, tudo tem rotina. Qual a rotina da igreja? Ela precisa acontecer e ser vista pelo mundo, agindo não automatizada, formalmente, por obrigação, mas retirar dessa rotina todo o proveito. O Salmo 1,1-3 diz:

"Bem-aventurado o homem que não anda no conselho dos ímpios, não se detém no caminho dos pecadores, nem se assenta na roda dos escarnecedores. Antes, o seu prazer está na lei do Senhor, e na sua lei medita de dia e de noite. Ele é como árvore plantada junto a corrente de águas, que, no devido tempo, dá o seu fruto, e cuja folhagem não murcha; e tudo quanto ele faz será bem-sucedido".

          Que "sucesso" a igreja de hoje almeja? Que rotina hoje, devido à vida moderna, poderá suprir essa falta? Uma das coisas que a Igreja praticava, nessa "perseverança unânime", era "perseverar na doutrina dos apóstolos".

    A Igreja de hoje é festeira e pretensamente soberba, ou prioritariamente perseverante na palavra? Porque da Palavra de Deus tudo decorre: (1) a identidade da igreja, (2) sua missão e (2) o conteúdo de sua mensagem. A palavra é prioridade.

       Havia, sim, louvor, mas vinha por último,  decorrente de toda a responsabilidade. Veja, acima, a ordem na avaliação de Lucas. Como diz Paulo em Rm 12,1-2, o louvor era decorrência do "culto racional". Em outro lugar, Paulo também menciona essa mesma ordem, Cl 3,16.:

"Habite, ricamente, em vós a palavra de Cristo; instruí-vos e aconselhai-vos mutuamente em toda a sabedoria, louvando a Deus, com salmos, e hinos, e cânticos espirituais, com gratidão, em vosso coração".

   Vamos conferir a ordem? 1. Habitar, ricamente em nós, a palavra; 2. Instrução e aconselhamento mútuo, em toda a sabedoria; 3. Culto: louvor, salmos, cânticos espirituais; 4. Gratidão no coração, de nossa parte e da parte de Deus.

1.1.2. Louvando a Deus: A Igreja atual inverteu a ordem. Uma das heresias modernas, que tem drenado as energias da igreja e enchido os bolsos, com dinheiro, de promotores de shows, empresários e cantores "gospel, gospel, gospel" (aqui eu lembro de gollum, gollum, gollum), é achar que cantar 2h seguidas, chamando isso de "louvor", para reservar 10 a 15min para as "palavras de ordem" ou "legendas de auto-ajuda", ao final, que não pode ser chamado sermão, tudo em tom de soberba pretensiosa, manifesta nessas "palavras (ao vento) de ordem", chamam isso de culto.

     Interessante Paulo mencionar três gêneros musicais: (1) salmos; (2) hinos; (3) cânticos espírituais. Salmos, há 150 no Antigo Testamento, inspirados pelo Espírito Santo. Hoje, se você pergunta a um "animador gospel" quantos versículos de Salmos ele conhece, vai ser um vexame. Hinos, quando de bom conteúdo e talento, por seu tamanho e estrutura, por si só, são uma aula de rápido recado, cuja repetição do coro fixa, na mente de quem ouve, a mensagem. Inúmeras conversões se deram dessa forma.

   E cânticos espirituais expressam a flexibilidade tão reclamada. Aqui, sim, pode entrar o gospel inteligente, e não o gollum, gollum, gollum da tosse desse próprio personagem. Quando se canta, não é para que se saia da igreja, ao término do culto, com uma rala e aguada sensação de euforia,  como se tivesse sido enganado, mas com uma mensagem bíblica gravada na mente, para que faça efeito no coração.

      Um poderoso meio de proclamação da mensagem do evangelho é a música, porém usada com sabedoria, em todo o seu enquadramento: (1) gênero musical compatível ao contexto, da parte de quem a compõe, assim como da parte de quem vai ouvir; (2) conteúdo também compatível, letra e poesia, em seu significado.

    Para isso, deve haver arte e talento específicos, e não somente plágio, a partir do popular, não no sentido legítimo e restrito, mas no sentido vulgar, como tem invadido a igreja atual e, de modo lastimável, poluído e diluído o conteúdo e a propriedade de sua voz e mensagem.

    Igreja não é lugar de puro entretenimento, reuniões das quais saiamos eufóricos, porém vazios. Empolgação com prazo de validade. Quer assim? Vá à Marquês de Sapucaí ou ao Rock In Rio. Porém a igreja está no mundo para fazer pensar, proclama uma palavra de autoridade que faz refletir, que promove "alegria no Senhor", que é permanente, ainda que debaixo de provações, como diz Tiago, Tg 1,2-3, e que é "a nossa força", como fala Neemias, Ne 8,10.

1.1.3. Partiam pão de cada em casa: Partir pão de casa em casa e tomar refeições nem precisa motivar os crentes para isso. Mas o sentido aqui também é estratégico para o crescimento da igreja, e não só diletante. Ir de casa em casa não é para pôr a fofoca em dia (aliás, hoje, pode-se fazer a distância, como satanás sempre fez) e as refeições não só para municiar o rebanho de sobrepeso.

     Quando o casal Robert e Sarah Kalley chegaram ao Brasil, em 1855, usaram a estratégia do "de casa em casa", mesmo porque a lei do império tinha a Igreja Católica como religião oficial e não permitia a construção de templos evangélicos, protestantes ou de acatólicos. Eles usaram a estratégia de células na única forma legítima. Esse casal lia a Bíblia, cantava Salmos & Hinos e orava. Nalgumas vezes, a casa onde estavam foi cercada, com pedras e franca hostilidade do lado de fora, atrasando ou impedindo o seu retorno para a sua própria residência. Mas nunca houve medo e nem sua agenda foi alterada.

        A oportunidade de outras atividades da igreja, sejam de lazer ou festa, assim como visitação e cultos nos lares sempre deve ser proveitosa, inteligente, prazerosa, sempre como decorrência de sua identidade, vocação e papel essencial no mundo. Pela descrição de Lucas, vemos como o encadeamento de todas as atividades se autosuprem, cada uma decorrente da outra, reforçando-se entre si, permitindo um todo harmônico, bem articulado e rico em suprimento. 

2. Estado de crescimento e aceitação da igreja primitiva 

     Lucas ressalta as qualidades da igreja, que indicam o modo como dava continuidade ao seu ministério, no suprimento do Espírito e na sua identidade com Jesus.

2.1. "...contando com a simpatia de todo o povo", At 2,47a. A palavra "simpatia" é tradução de "charin" que, por sua vez, tem "chaíro" e "charis" em sua origem. A tradução seria "plenitude de alegria", para a primeira, e "graça", para a segunda. Significa que a igreja era acolhida por todos à volta. A palavra "graça" aplicada a Deus significa sentimento compartilhado. Deus acolhe o homem com "favor", porque tem a repartir com ele tudo: Paulo fala dos atributos de Deus, Rm 1,20, entre os que ele reparte com o homem. Seu amor, principal e único diferencial de sua identidade, Ele reparte com o homem. Usar aqui uma palavra derivada de "charis", graça, para indicar o grau de aceitação da igreja, é dizer que era reconhecido pelo povo da época tudo o que a igreja tinha a oferecer, que aquele povo aceitava com gratidão. A palavra simpatia significa "ser visto ou aceito como agradável", ou "ser positivamente afetado pelo sentimento do outro". Havia reciprocidade e uma consciência coletiva dos benefícios que a igreja proporcionava: de si, é sinal, alvo e veículo da graça de Deus. 

Lições atuais: a igreja atual carece desse mesmo reconhecimento. Ele está relacionado ao que se espera da igreja e o que ela tem a oferecer. E o que a igreja tem a oferecer está estreita e diretamente ligado à sua identidade e exercício restrito de seu ministério. A igreja não tem um expediente humano a realizar, esforçando-se por se adaptar às exigências do século onde se situa ou de atender às expectativas de mídia que dela são exigidas. Testemunho de Jesus decorre de sua identificação com ele, o Senhor da igreja, aquele que afirmou que a edificaria, Mt 16,16-17:

"Então, Jesus lhe afirmou: Bem-aventurado és, Simão Barjonas, porque não foi carne e sangue que to revelaram, mas meu Pai, que está nos céus.
Também eu te digo que tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei a minha igreja, e as portas do inferno não prevalecerão contra ela".

      A Igreja não terá, de modo legítimo, como granjear esse mesmo sentimento na atualidade, caso não resgate o específico de sua missão, que é ser Jesus no mundo. Paulo afirmou aos crentes de Corinto, 1 Co 11,1, "Sede meus imitadores, como também eu sou de Cristo". 

     Não se trata de arremedo ou como se fosse uma dublagem de Jesus, atendendo a uma imagem distorcida de quem é Jesus, ainda que socialmente de consumo. A Igreja vive a comunhão com Jesus, reconhecendo de que deve apresentá-lo ao mundo, de modo coerente com sua vocação. Paulo Apóstolo afirma aos Gl 2,20, "... logo, já não sou eu quem vive, mas Cristo vive em mim; e esse viver que, agora, tenho na carne, vivo pela fé no Filho de Deus, que me amou e a si mesmo se entregou por mim". Ou assim, ou perdeu sua condição de testemunha. 

2.2. "...acrescentava-lhes o Senhor, dia a dia, os que iam sendo salvos". Atos 2:47b.

        Esse aspecto, no texto, aparece após a expressão "enquanto isso", o que o indica como decorrência de tudo o que foi dito antes. As qualidades e ações conjuntas da igreja, mencionadas no texto, contribuem para seu natural crescimento. 

       Não ocorre um inchaço ou anomalia, como se a igreja se convertesse num outro tipo de grupo, cujo fator de coesão interna fosse qualquer outro, que não a comunhão promovida pelo Espírito. 

      Seria um crescimento anômalo, determinado por fatores estranhos, que atraíssem pessoas, mas não os incrementos resultantes da ação do Espírito Santo, na ação conjunta de todos os índices descritos por Lucas como causa em cadeia do ingresso de novos e autênticos crentes. 

Lições atuais: vários fatores têm contribuído para o aumento em quantidade de várias igrejas ou movimentos de avivamento, mover, ministérios, enfim, sendo esse o fator indicado como principal comprovação do "sucesso" ministerial. Esta avaliação está equivocada. Aumento em quantidade não significa, implicitamente, em qualidade. E, neste caso específico, o controle de qualidade muitas vezes não está ao alcance de nossa avaliação. 

    Jesus perdeu seguidores, quando eles avaliaram que não suportariam para si mesmos o discurso do Mestre. Um dos problemas da igreja atual reside, exatamente, no seu discurso e o que ela está oferecendo como objeto de consumo. Veja, em Jo 6, os textos sobre essa rejeição:

1. v. 27:  "Trabalhai, não pela comida que perece, mas pela que subsiste para a vida eterna, a qual o Filho do Homem vos dará; porque Deus, o Pai, o confirmou com o seu selo". Aqui ele estabelece a distinção entre pão terreno, que se adquire pelo trabalho, e pão do céu, Jesus, ao alcance da fé. Começa a rejeição, porque queriam um "Jesus de consumo", que satisfizesse os seus caprichos;

2. v. 41: "Murmuravam, pois, dele os judeus, porque dissera: Eu sou o pão que desceu do céu". Aqui os judeus evocam Moisés, agumentando ter-lhes dado "pão do céu" (o maná), enquanto Jesus diz ser Deus que dá o pão da vida. Não estavam interessados nem em salvação e nem nos frutos do reino de Deus, mas em necessidades imediatistas;

3. v. 59-60: Estas coisas disse Jesus, quando ensinava na sinagoga de Cafarnaum. Muitos dos seus discípulos, tendo ouvido tais palavras, disseram: Duro é este discurso; quem o pode ouvir?". Aqui, na evolução do raciocínio, Jesus explica que dará sua vida pelo mundo, escandalizado-os por se referir ao batismo em sua morte/ressurreição, de modo simbólico e propositalmente escadaloso,  em "comer sua carne e beber o seu sangue". 

4. v. 66: "À vista disso, muitos dos seus discípulos o abandonaram e já não andavam com ele". E aqui Jesus completa a sua argumentação, dizendo que maior escândalo do que dizer que Ele veio do Pai é dizer que vai voltar para o Pai. O ponto central na palavra de Jesus é que a salvação se opera nEle: ou aceitamos esse ministério e o compromisso com Jesus, ou o abandonamos e inventamos um "Jesus de consumo", o que se constitui também em idolatria. 

       A igreja de hoje, colocando ênfase na acumulação de pessoas no seu rebanho, altera seu discurso para não perdê-las. Jesus, ao contrário, manteve o seu discurso original, que foi determinante para que, como mostram os textos, num crescendo, houvesse descontentamento e debandada. 

       Não quero afirmar, com isso, que a Igreja deva provocar a saída dos seus membros por um discurso legalista com respeito a costumes, fundamentalista com respeito às Escrituras ou restritivo e não "liberal" com respeito ao mundo. Ela precisa ajustar-se a sua herança em Cristo, praticando a originalidade de seu discurso, ministério e missão, para que o seu aumento seja autenticamente orgânico, como diz Paulo Apóstolo, em Efésios 4:15,16:
"Mas, seguindo a verdade em amor, cresçamos em tudo naquele que é a cabeça, Cristo, de quem todo o corpo, bem-ajustado e consolidado pelo auxílio de toda junta, segundo a justa cooperação de cada parte, efetua o seu próprio aumento para a edificação de si mesmo em amor".

     Lucas indicou, até essa altura de sua descrição, de onde procede esse caminho para o crescimento orgânico autêntico da igreja. Vejamos a seguir. 

3. Fatores de crescimento da igreja primitiva 

3.1. "...perseveravam na doutrina dos apóstolos", At 2,42a.

     Os apóstolos eram os arquivos vivos da palavra de Jesus. Quando prometeu o Espírito Santo, Jesus havia afirmado, Jo 14,25-26: "Isto vos tenho dito, estando ainda convosco; mas o Consolador, o Espírito Santo, a quem o Pai enviará em meu nome, esse vos ensinará todas as coisas e vos fará lembrar de tudo o que vos tenho dito".

     Portanto, "perseverar na doutrina dos apóstolos" era seguir a orientação de Jesus. O Espírito ensina, iluminando o entendimento, de forma a lembrar sobre o que foi dito anteriormente. No caso da igreja atual, a Bíblia é a fonte autorizada dessa palavra que Jesus deixou.

       Desde os tempos da Reforma, que completou 500 anos em 2017, entendemos que aquela que se autodenominava "Igreja", naquela época, estava distante das Escruritas, fora delas. Então, com o retorno à Bíblia, somos novamente responsáveis por seguir, com sabedoria, os seus ensinamentos. E é o Espírito Santo que vai nos presidir, fazendo-nos lembrar o que nela está escrito. Não sem antes conhecermos e perseverarmos em guardar, como foi dito, há mais de 3 mil anos, a Josué, perfeitamente válido para a igreja de hoje, Js 1,7-8:
"Tão somente sê forte e mui corajoso para teres o cuidado de fazer segundo toda a lei que meu servo Moisés te ordenou; dela não te desvies, nem para a direita nem para a esquerda, para que sejas bem-sucedido por onde quer que andares. Não cesses de falar deste Livro da Lei; antes, medita nele dia e noite, para que tenhas cuidado de fazer segundo tudo quanto nele está escrito; então, farás prosperar o teu caminho e serás bem-sucedido".

3.2. "e na comunhão, no partir do pão e nas orações", Atos 2,42b.

      Esse encadeamento lógico e propositivo de ações da igreja (denominada) primitiva não prescinde um elo do outro: ou todos ocorrem ao mesmo tempo, numa reação em cadeia, ou não ocorre o crescimento verificado. Não se trata de uma fórmula pronta, como essas de "auto-ajuda", tão comumente vendidas como resultado rápido, pronto e artificial que, infelizmente, são veiculados, aceitos e praticados pela igreja inchada e contemporânea.

       Três fatores acima mencionados agregam a igreja em torno de sua autenticadade, como assembleia, eclésia, igreja de Jesus: "comunhão, partir do pão e oração": só podem ser realizados em conjunto. 
  
         Em Jo 17,20-21, Jesus afirma que comunhão define igreja, indica a natureza dessa comunhão e sua finalidade. Se não houver o tipo especificado por Jesus, e não qualquer outra "comunhão", não haverá nem igreja autêntica e nem será alcançada a finalidade final dela: "ser testemunha de Jesus":

"Não rogo somente por estes, mas também por aqueles que vierem a crer em mim, por intermédio da sua palavra; a fim de que todos sejam um; e como és tu, ó Pai, em mim e eu em ti, também sejam eles em nós; para que o mundo creia que tu me enviaste".

      Jesus está dizendo que roga, que ora intensamente por (1) "estes" (os apóstolos), mas também por "aqueles" que vierem a crer em mim (igreja, em geral, nós incluídos); (2) "a fim de que 'todos' (apóstolo + todos nós  = igreja) sejam um; e como és tu, ó Pai, em mim e eu em ti, também sejam eles em nós" (definição de igreja: mesma comunhão que Jesus tem com o Pai, nós tenhamos com o Pai e entre nós); (3) "para que o mundo creia que tu me enviaste": única maneira da igreja cumprir sua missão: "ser tetenunha", anunciando Jesus ao mundo, de maneira autêntica e convincente. 

      "Partir o pão" e "orar" são elementos físicos dessa comunhão que começa por meios espirituais. Paulo Apóstolo, por exemplo, aos Efésios 4,3, "esforçando-vos diligentemente por preservar a unidade do Espírito no vínculo da paz", está indicando que a manutenção da "unidade do Espírito", ou seja, que deriva do Espírito e é mantida pelo Espírito, depende de esforço comum nosso e diligente, ou seja, ativo, zeloso e cuidadoso. No grego, "diligente" é "syndemos", ou seja, "estar amarrado junto" fazendo, operando juntos, em conjunto.

      "Partir pão" não é só praticar "santa ceia", mas experimentar de modo prático tudo o que ela representa. E oração nunca é isolado. Lembrando as palavras de Jesus, Mt 5,23-24:

"Se, pois, ao trazeres ao altar a tua oferta, ali te lembrares de que teu irmão tem alguma coisa contra ti, deixa perante o altar a tua oferta, vai primeiro reconciliar-te com teu irmão; e, então, voltando, faze a tua oferta".

      E na (chamada) oração do "Pai Nosso", pedir "dai-nos o pão de cada dia" não é esperar "cair do céu" mas, pelo esforço conjunto e honesto, conquistar e verificar, na comunidade, se há falta dele para alguém. É também fator de comunhão, amor e cuidado para com o irmão. E essa igualdade que Jesus  deseja ver manifesta na igreja, deve ser projetada para o contexto social em que a Igreja de encontra, em justiça social e justa manifestação profética da ação da igreja. 

3.3. "Em cada alma havia temor; e muitos prodígios e sinais eram feitos por intermédio dos apóstolos", At 2,43.

       Paulo afirma, em Fp 2,12: "Assim, pois, amados meus, como sempre obedecestes, não só na minha presença, porém, muito mais agora, na minha ausência, desenvolvei a vossa salvação com temor e tremor". O "temor do Senhor" não é uma sensação de medo interno fabricada. Uma simulação de santidade artificial, expressa numa "máscara facial de contrição" ou numa relação de palavras e termos de efeito pré-fabricados.

     Temor do Senhor se cultiva ao longo da vida. Paulo aqui, por exemplo, menciona "obediência" e "salvação". É recomendação específica para a igreja "desenvolver a salvação", o que requer obediência. Salvação, decorrente da obediência, tem origem em Deus. E à igreja compete "lançar-se com afinco no esforço de desenvolvê-la (kataergo = aplicar-se ao trabalho) com temor e tremor.

     Soa como um trocadilho, no português, e no grego correspondem a "fobus", daí fobia,  medo, e "tromu", daí tremer ou tremor, "comoção interna provocada pelo medo". Significa avaliar o grau de santidade e reverência com que a salvação deve ser considerada, por sua origem em Deus, e trabalhar por seu crescimento, de modo diligente, esforçado e consciente, em obediência a Deus. 

     Quanto a sinais e prodígios, Pedro já havia afirmado em seu sermão, At 2,22, que Jesus fora aprovado por Deus por meio dos "milagres, prodígios e sinais" que realizou. Do mesmo modo, a Igreja, primeiramente os apóstolos e, posteriormente, quaisquer dentre eles, como ocorreu com o diácono Estêvão, At 6,8, "Estêvão, cheio de graça e poder, fazia prodígios e grandes sinais entre o povo", tem a sua autoridade e comissão por Cristo confirmadas e indicadas pelos sinais que lhe foi concedido realizar.

  Cuidado aqui. Vamos mergulhar na realidade social, para enxergar as necessidades à volta, agindo no mundo, entendendo que, no poder do Espírito, toda a ação da igreja, em nome de Jesus, serão "sinais e prodígios". E não somente a expectativa de superpoderes, como somente se vê na tela do cinema.

4. As demais avaliações da igreja.

3.1."Todos os que creram estavam juntos e tinham tudo em comum. Vendiam as suas propriedades e bens, distribuindo o produto entre todos, à medida que alguém tinha necessidade", At 2,44-45.

"Da multidão dos que creram era um o coração e a alma. Ninguém considerava exclusivamente sua nem uma das coisas que possuía; tudo, porém, lhes era comum [...] Pois nenhum necessitado havia entre eles, porquanto os que possuíam terras ou casas, vendendo-as, traziam os valores correspondentes e depositavam aos pés dos apóstolos; então, se distribuía a qualquer um à medida que alguém tinha necessidade", At 4,32.34-35.

      As afirmações de Lucas, agrupadas por tema nos versículos acima, podem ser subdivididas, em síntese, em quatro tópicos naturalmente encadeados:

1. Os que creram estavam juntos e tinham tudo em comum;
2. Vendiam propriedades e bens e distribuíam a renda obtida entre si;
3. Um era o coração e sua alma, de modo a ter tudo em comum;
4. Não havia necessitados, pois eram supridos pela renda obtida.

       Podemos, ainda mais indicar, pela sequência de palavras a seguir, o ponto central da sequência acima: "era um o coração e a alma", "tudo lhes era comum" e "à medida que alguém tinha necessidade".

Lições atuais: isso aí acima é sobrenatural, mas as iniciativas são todas da própria igreja. Há outros lugares na Bíblia onde pessoas se permitem mover pelo Espírito e se doam. Na congregação do deserto foi assim. Moisés fez o apelo, Ex 35,5:

"Tomai, do que tendes, uma oferta para o Senhor; cada um, de coração disposto, voluntariamente a trará por oferta ao Senhor". E a reposta do povo foi, Ex 35,20-21: "Então, toda a congregação dos filhos de Israel saiu da presença de Moisés, e veio todo homem cujo coração o moveu e cujo espírito o impeliu e trouxe a oferta ao Senhor para a obra da tenda da congregação, e para todo o seu serviço, e para as vestes sagradas".

Na igreja primitiva a condição de vida daqueles irmãos era:

1. Decorrente e formando um só conjunto com sua espiritualidade;
2. Baseada na voluntariedade;
3. Movidos interna e individualmente pelo coração.

    Essa consciência e manifestação prática de comunhão, no Espírito, revela um grau de maturidade que não se obtém, autenticamente, nem por êxtases grupais ou download de espiritualidade. Mas por um conjunto, um todo harmônico encadeado e levado a efeito, na prática, por um esforço conjunto de irmãos que aprendeu a "desenvolver a salvação com temor e tremor".

5. Conclusão

"Com grande poder, os apóstolos davam testemunho da ressurreição do Senhor Jesus, e em todos eles havia abundante graça".

"A igreja, na verdade, tinha paz por toda a Judeia, Galileia e Samaria, edificando-se e caminhando no temor do Senhor, e, no conforto do Espírito Santo, crescia em número". At 4,33 e 9,31.

        Lucas completa sua panorâmica falando de três outras qualidades que aqueles irmãos reuniam consigo:

1. Poder para testemunhar de Jesus, como Ele mesmo falou em sua despedida, At 1,8;

2. Graça plena, abundante, junto ao Senhor e da parte do Senhor, que também corresponde ao que Jesus falou aos discípulos, sobre tudo de que a igreja precisa para o desempenho do seu ministério, Jo 14,13-14;

3. A Igreja tinha a paz de Jesus, Jo 14,27, edificava-se no temor do Senhor, cada um desenvolvendo sua salvação, Fp 2,12, e o Espírito Santo cumpria nela o seu papel de consolador, como Jesus falou em Jo 14,25-26.

       Lucas constatou em sua pesquisa, com seu olhar de médico, arguto repórter e historiador que a Igreja primitiva estava no rastro de seu Mestre Jesus. Davam plena continuidade ao ministério dEle, porque reunia consigo todas as qualidades, recomendações e exortações que lhe foram feitas por Jesus.

       Aspectos dessa igreja não podem faltar à igreja de hoje. Mesmo estando nós a cerca de 1950 anos de distância, se achamos que os Atos foram escritos por volta de 80 d.C., reconhecemos que a avaliação de Lucas foi lúcida, caro Teófilo ("amigo de Deus"), e suficientemente guiada pelo Espírito Santo para que, até hoje e para o futuro, sirva-nos como advertência. "Lâmpada para os meus pés é a Tua palavra, e luz para os meus caminhos"? Sl 119,105.

segunda-feira, 23 de março de 2020

Parceiros: você, mais um e Deus.

     Chame um companheiro de oração. Ela não é somente para os tempos de medo e emergências. É como respiração da vida com Deus. 
     A mais rasteira dos privilégios de acesso. Paulo Apóstolo até diz que o Espírito intercede por nós, porque não sabemos orar como convém. 

"Também o Espírito, semelhantemente, nos assiste em nossa fraqueza; porque não sabemos orar como convém, mas o mesmo Espírito intercede por nós sobremaneira, com gemidos inexprimíveis".
Romanos 8:26.

   Taí, temos até um professor. Adiante, noutra carta, esse mesmo apóstolo diz que, para além do que pedimos ou pensamos, Deus atende, porque sabe e conhece antes da gente engatinhar em oração.

"Ora, àquele que é poderoso para fazer infinitamente mais do que tudo quanto pedimos ou pensamos, conforme o seu poder que opera em nós,
a ele seja a glória, na igreja e em Cristo Jesus, por todas as gerações, para todo o sempre. Amém!". 
Efésios 3:20,21.

    E continua dizendo que não sejamos ansiosos mas que, em tudo, sejam conhecidas, diante dEle, nossas petições.

Não andeis ansiosos de coisa alguma; em tudo, porém, sejam conhecidas, diante de Deus, as vossas petições, pela oração e pela súplica, com ações de graças.
E a paz de Deus, que excede todo o entendimento, guardará o vosso coração e a vossa mente em Cristo Jesus
.  Filipenses 4:6,7.

     Enfim, Jesus já instruía sobre orações. Evite vãs repetições. Não é pelo muito falar, que vai ser ouvido. Cuidado com o ego: ore em secreto, se em público, evite soberba em palavras. 

"E, quando orares, não sejas como os hipócritas; pois se comprazem em orar em pé nas sinagogas, e às esquinas das ruas, para serem vistos pelos homens. Em verdade vos digo que já receberam o seu galardão.
Mas tu, quando orares, entra no teu aposento e, fechando a tua porta, ora a teu Pai que está em secreto; e teu Pai, que vê em secreto, te recompensará publicamente.
E, orando, não useis de vãs repetições, como os gentios, que pensam que por muito falarem serão ouvidos.
Não vos assemelheis, pois, a eles; porque vosso Pai sabe o que vos é necessário, antes de vós lho pedirdes". Mateus 6:5-8.

    Comece com "Pai". Mas só se também já ouviu dele "Tu és meu filho, eu hoje te gerei". Mas se não ouviu ainda, ore e chame de Pai: vai ouvir, com certeza. 

"Portanto, vós orareis assim: Pai".
Mateus 6:9.

   Um desses, Tiago, disse de outro, Elias, que este tinha uma oração poderosa. Que o que ele pedia, o Pai atendia. E o legal foi Tiago dizer que Elias foi como nós somos.

"Confessai, pois, os vossos pecados uns aos outros e orai uns pelos outros, para serdes curados. Muito pode, por sua eficácia, a súplica do justo.
Elias era homem semelhante a nós, sujeito aos mesmos sentimentos, e orou, com instância, para que não chovesse sobre a terra, e, por três anos e seis meses, não choveu.
E orou, de novo, e o céu deu chuva, e a terra fez germinar seus frutos".  
Tiago 5:16-18.

   Então, como Elias e, como Tiago falou, vamos orar. O que ele emendou foi que "muito pode por sua eficácia a súplica do justo". 

    O problema é que justo? Quantos justos? Que tal começar por eu e você? Ser justo diante de Deus, de novo, está ao alcance de uma oração. Precisamos espalhar isso.
   Mas só vai dar certo, para quem crê. Não é bem crer nisso, quer dizer, não estamos aqui falando de "pensamento positivo", "corrente de otimismo" ou o que (não) valha.
    Não. Estamos falando de fé. E não é, como dizia um velho professor meu, já falecido, não é "fé" na "fé". Não é. 
    É fé em Deus.  O justo, diante de Deus, é aquele que, ao alcance de uma oração, experimentou fé. Justificados, pois, mediante a fé, temos paz com Deus, por meio de Jesus Cristo. 

"Justificados, pois, mediante a fé, temos paz com Deus por meio de nosso Senhor Jesus Cristo;
por intermédio de quem obtivemos igualmente acesso, pela fé, a esta graça na qual estamos firmes; e gloriamo-nos na esperança da glória de Deus". 
Romanos 5:1,2.

   Ao alcance de uma oração. Justos, como diz Tiago, parecem muito entre si. Deus gosta de ouvi -los. Nesta ora, está disposto a ouvir muitos. 
    Vamos orar. Elias era homem como nós, sujeito aos mesmos sentimentos, e orou, e Deus o atendeu.

Lição 3 - Pedro e o primeiro sermão - At 2,14-41

Atos 2,14-41


14. Então, se levantou Pedro, com os onze; e, erguendo a voz, advertiu-os nestes termos: Varões judeus e todos os habitantes de Jerusalém, tomai conhecimento disto e atentai nas minhas palavras.
15. Estes homens não estão embriagados, como vindes pensando, sendo esta a terceira hora do dia.
16. Mas o que ocorre é o que foi dito por intermédio do profeta Joel:
17. E acontecerá nos últimos dias, diz o Senhor, que derramarei do meu Espírito sobre toda a carne; vossos filhos e vossas filhas profetizarão, vossos jovens terão visões, e sonharão vossos velhos;
18. até sobre os meus servos e sobre as minhas servas derramarei do meu Espírito naqueles dias, e profetizarão.
19. Mostrarei prodígios em cima no céu e sinais embaixo na terra: sangue, fogo e vapor de fumaça.
20. O sol se converterá em trevas, e a lua, em sangue, antes que venha o grande e glorioso Dia do Senhor.
21. E acontecerá que todo aquele que invocar o nome do Senhor será salvo.
21. Varões israelitas, atendei a estas palavras: Jesus, o Nazareno, varão aprovado por Deus diante de vós com milagres, prodígios e sinais, os quais o próprio Deus realizou por intermédio dele entre vós, como vós mesmos sabeis;
23. sendo este entregue pelo determinado desígnio e presciência de Deus, vós o matastes, crucificando-o por mãos de iníquos;
24. ao qual, porém, Deus ressuscitou, rompendo os grilhões da morte; porquanto não era possível fosse ele retido por ela.
25. Porque a respeito dele diz Davi: Diante de mim via sempre o Senhor, porque está à minha direita, para que eu não seja abalado.
26. Por isso, se alegrou o meu coração, e a minha língua exultou; além disto, também a minha própria carne repousará em esperança,
27. porque não deixarás a minha alma na morte, nem permitirás que o teu Santo veja corrupção.
28. Fizeste-me conhecer os caminhos da vida, encher-me-ás de alegria na tua presença.
29. Irmãos, seja-me permitido dizer-vos claramente a respeito do patriarca Davi que ele morreu e foi sepultado, e o seu túmulo permanece entre nós até hoje.
30. Sendo, pois, profeta e sabendo que Deus lhe havia jurado que um dos seus descendentes se assentaria no seu trono,
31. prevendo isto, referiu-se à ressurreição de Cristo, que nem foi deixado na morte, nem o seu corpo experimentou corrupção.
32. A este Jesus Deus ressuscitou, do que todos nós somos testemunhas.
33. Exaltado, pois, à destra de Deus, tendo recebido do Pai a promessa do Espírito Santo, derramou isto que vedes e ouvis.
34. Porque Davi não subiu aos céus, mas ele mesmo declara: Disse o Senhor ao meu Senhor: Assenta-te à minha direita,
35. até que eu ponha os teus inimigos por estrado dos teus pés.
36. Esteja absolutamente certa, pois, toda a casa de Israel de que a este Jesus, que vós crucificastes, Deus o fez Senhor e Cristo.
37. Ouvindo eles estas coisas, compungiu-se-lhes o coração e perguntaram a Pedro e aos demais apóstolos: Que faremos, irmãos?
38. Respondeu-lhes Pedro: Arrependei-vos, e cada um de vós seja batizado em nome de Jesus Cristo para remissão dos vossos pecados, e recebereis o dom do Espírito Santo.
39. Pois para vós outros é a promessa, para vossos filhos e para todos os que ainda estão longe, isto é, para quantos o Senhor, nosso Deus, chamar.
40. Com muitas outras palavras deu testemunho e exortava-os, dizendo: Salvai-vos desta geração perversa.
41. Então, os que lhe aceitaram a palavra foram batizados, havendo um acréscimo naquele dia de quase três mil pessoas.

Introdução

Pedro: o primeiro Sermão. A primeira palavra da igreja ao mundo não vai mudar, ao longo da história, em seus pontos fundamentais. A igreja é que precisa atualizar sua idoneidade, para que não tenha enfraquecido o seu testemunho. At 2,37-39.

1. Entendendo o sermão de Pedro 

      Uma das maneiras pelas quais estudar e entender o sermão de Pedro, o primeiro a ser realizado após a despedida com Jesus, no fato fundante da igreja em Pentecostes, é analisar suas partes. 

    Na (1) introdução, Pedro explícita o que desencadeou sua fala, a circunstância dos indicadores da presença e plenitude do Espírito Santo naqueles dias: 2,14-21.

   O (2) corpo do sermão, em que Pedro expõe os fatos relacionados a Jesus e a interpretação desses fatos, conteúdo este que vai se tornar, a partir de então, o insistente e permanente anúncio da igreja, At 2,22-35.

   E (3) a conclusão, a parte final que encerra e sintetiza toda a argumentação, cobrando de quem ouve um posicionamento diante da mensagem apresentada, At 2,36-40.
    
    Este sermão lança mão de um núcleo de mensagem, presença obrigatória nos demais sermões em Atos, assim como necessária em qualquer legítimo sermão afora, ao longo da história da igreja, até a volta de Jesus Cristo. 

     Que núcleo é esse? Geralmente denominado "kerigma" ou "pregação", trata-se de uma síntese da mensagem do evangelho, incluídos os pontos principais do que Jesus experimentou em sua trajetória.

     Neste sermão de Pedro, corresponde ao trecho:
"...sendo este entregue pelo determinado desígnio e presciência de Deus, vós o matastes, crucificando-o por mãos de iníquos; ao qual, porém, Deus ressuscitou, rompendo os grilhões da morte; porquanto não era possível fosse ele retido por ela'.

     Os tópicos que definem o núcleo denominado "kerigma", referentes à obra de Cristo, são: (1) entregue para ser crucificado; (2) morto pela iniquidade e pecado humano; (3) ressuscitado pelo poder de Deus. 

       Neste sermão, nos demais sermões em Atos dos Apóstolos e, segundo pesquisadores da história do cânon do Novo Testamento, em quaisquer dos livros da coleção do cânon, estas três partes do kerigma atestam e confirmam como autênticos o testemunho desses sermões e textos canônicos, em geral, registrados nas Escrituras. 

2. As partes do sermão 

2.1. Introdução - 2,14-21: Pedro precisa responder com urgência a reação dos assistentes. Cuidado aqui. Costuma haver confusão, que é afirmar que, pelos apóstolos estarem falando "línguas estranhas", como usualmente é aceito, então as pessoas ao redor identificaram como embriaguez o seu comportamento.

      Não havia motivo para isto, porque está esclarecido que eles identificaram o que estava sendo dito, quando afirmam: "Como os ouvimos falar em nossas próprias línguas as grandezas de Deus?", At 2,11. Estavam, pois, ouvindo sobre as "grandezas de Deus".

     Então, quando disseram "Estão embriagados", At 2,13, foi por perceber os efeitos da "tradução simultânea", ou seja, dos apóstolos falarem na línguas deles, o aramaico, e cada um ali presente ouvir na língua de sua nação de origem. Evidentemente, entre si, questionavam, cada um teimando com o outro que os ouvia em sua própria e individual língua.

     Pedro vai esclarecer, além de, desfazendo a dúvida, "Estes homens não estão embriagados, como vindes pensando, sendo esta a terceira hora do dia", At 2,15, apontar o que ocorria como cumprimento da profecia de Joel, escrita no livro de mesmo nome, nas Escruritas do Antigo Testamento, Jl 2,28-32.

      Basicamente Pedro esclarece tudo, afirmando três verdades:

 (1) o Espírito Santo está sendo "derramado", ou seja, sem contenção alguma será, pela graça de Deus e ordenação de Jesus, concedido e reconhecido a todo o que crer: "E acontecerá nos últimos dias, diz o Senhor, que derramarei do meu Espírito sobre toda a carne", At 2,17a;

 (2) as características típicas do ministério e atividade profética estarão distribuídas a todos, indistintamente, e independente da idade que, no Antigo Tratamento, era sinal de autoridade: "...vossos filhos e vossas filhas profetizarão, vossos jovens terão visões, e sonharão vossos velhos; até sobre os meus servos e sobre as minhas servas derramarei do meu Espírito naqueles dias, e profetizarão", At 2,17b-18;

(3) essas características da autoridade concedida juntam-se aos sinais externos, do cosmos ao redor, aqui citados, e à contínua e intensa oportunidade de salvação para todo o que crer, enquanto durar a era e o tempo do ministério da igreja: "Mostrarei prodígios em cima no céu e sinais embaixo na terra: sangue, fogo e vapor de fumaça. O sol se converterá em trevas, e a lua, em sangue, antes que venha o grande e glorioso Dia do Senhor. E acontecerá que todo aquele que invocar o nome do Senhor será salvo", At 2, 19-21.

        Esta parte do sermão (1) aponta para o fato que ocorre, indicando-o como cumprimento da profecia do "derramamento do Espírito Santo, assim como (2) efetua a transição para a parte seguinte, quando diz que a época que se inicia, marcada pelo derramamento do Espírito, inaugura o tempo em que, como anunciou o profeta Joel, "todo aquele que invocar o nome do Senhor, será (no momento em que invocar) salvo".

2.2. O corpo do sermão - 2,22-35: através do vocativo "Varões judeus e todos os habitantes de Jerusalém", Pedro passa a: (1) apresentar Jesus como "varão aprovado por Deus diante de vós com milagres, prodígios e sinais"; (2) corajosamente, apontar a responsabilidade coletiva pela entrega de Jesus, consequente violência contra ele, culminando em sua morte: "sendo este entregue pelo determinado desígnio e presciência de Deus, vós o matastes, crucificando-o por mãos de iníquos"; (3) e a consequente ação de Deus, exclusiva do seu poder, porém condizente com a santidade de Jesus, "ao qual, porém, Deus ressuscitou, rompendo os grilhões da morte; porquanto não era possível fosse ele retido por ela.

       A seguir, Pedro fará suporte bíblico, da Bíblia de seu tempo, as Escrituras do Antigo Testamento, citando salmos de Davi que confirmam profecias da ressureição. 

       Não poderia ser um argumento melhor escolhido. Porque menciona o rei Davi, herói nacional, os salmos que escreveu, denominando-o profeta. 

      O argumento principal, na forma poética da escritura de Davi, é um diálogo com Deus no qual menciona crer que sua alma não seria esquecida na morte. Porém, na continuidade da argumentação, Pedro menciona que o túmulo de Davi se encontra entre eles e que, portanto, a menção de resgate da condição de morto aplica-se a Jesus, "que nem foi deixado na morte, nem o seu corpo experimentou corrupção".
   
     Trata-se do texto a seguir:

"Porque a respeito dele diz Davi: Diante de mim via sempre o Senhor, porque está à minha direita, para que eu não seja abalado. Por isso, se alegrou o meu coração, e a minha língua exultou; além disto, também a minha própria carne repousará em esperança,  porque não deixarás a minha alma na morte, nem permitirás que o teu Santo veja corrupção. Fizeste-me conhecer os caminhos da vida, encher-me-ás de alegria na tua presença. Irmãos, seja-me permitido dizer-vos claramente a respeito do patriarca Davi que ele morreu e foi sepultado, e o seu túmulo permanece entre nós até hoje. Sendo, pois, profeta e sabendo que Deus lhe havia jurado que um dos seus descendentes se assentaria no seu trono, prevendo isto, referiu-se à ressurreição de Cristo, que nem foi deixado na morte, nem o seu corpo experimentou corrupção. A este Jesus Deus ressuscitou, do que todos nós somos testemunhas".

      O ponto de destaque, a que Pedro, em sua argumentação, dá maior atenção é a ressurreição de Jesus. Os apóstolos estão sob seu efeito. Em Lucas 24,13-53, na narrativa dos peregrinos a Emaús, este evangelista destaca a surpresa, o grau de importância e a urgência de se vivenciar e divulgar o poder da ressureição de Jesus.

    Este trecho descreve o diálogo de Jesus com os peregrinos, 13-24, a réplica de Jesus, remetendo-os às Escrituras, para conferir o cumprimento de suas promessas, 25-27, e a chegada à aldeia, o testemunho aos demais e a aparição e despedida de Jesus, 28-53, ponto do qual Lucas retoma sua narrativa no livro de Atos dos Apóstolos.

     A igreja precisa recuperar para si a urgência e relevância do destaque que precisa dar ao anúncio da ressureição de Jesus, bem como a experiência que tem da atuação nela desse mesmo poder exercido por Deus na ressurreição de Jesus:

"E qual a sobreexcelente grandeza do seu poder sobre nós, os que cremos, segundo a operação da força do seu poder,
Que manifestou em Cristo, ressuscitando-o dentre os mortos, e pondo-o à sua direita nos céus, Acima de todo o principado, e poder, e potestade, e domínio, e de todo o nome que se nomeia, não só neste século, mas também no vindouro; E sujeitou todas as coisas a seus pés, e sobre todas as coisas o constituiu como cabeça da igreja,
Que é o seu corpo, a plenitude daquele que cumpre tudo em todos. Efésios 1:19-23.

2.3. Conclusão do sermão - 2,36-40: a pergunta feita pelos ouvintes, ao final da pregação do apóstolo Pedro, bem indica o efeito e poder da mensagem entregue, certamente presidida, em todas as suas partes, pela ação do Espírito Santo:
"E, ouvindo eles isto, compungiram-se em seu coração, e perguntaram a Pedro e aos demais apóstolos: Que faremos, homens irmãos?", Atos 2:37.

     Pedro já havia encerrado sua argumentação, logo após sua exposição sobre as profecias nos salmos de Davi, com as evidencias e poder de Deus, exercido na ressureição de Jesus, com a seguinte interpelação:
"Saiba pois com certeza toda a casa de Israel que a esse Jesus, a quem vós crucificastes, Deus o fez Senhor e Cristo".
Atos 2:36.

     Agora o apóstolo coloca sobre eles a responsabilidade que é de todos, mas cobra deles uma posição, de modo implícito, na afirmação que faz. E, a partir da pergunta que lhe é feita, a parte final, que se constitui num apelo à conversão, esclarece os passos para esta e para qualquer outra autêntica conversão:
"E disse-lhes Pedro: Arrependei-vos, e cada um de vós seja batizado em nome de Jesus Cristo, para perdão dos pecados; e recebereis o dom do Espírito Santo;
Porque a promessa vos diz respeito a vós, a vossos filhos, e a todos os que estão longe, a tantos quantos Deus nosso Senhor chamar". Atos 2:38,39.

      Os passos para a conversão a Jesus são: (1) arrependimento; (2) batismo, em nome de Jesus; (3) perdão dos pecados; (4) recebimento do Espírito ou o batismo com/no Espírito Santo. A seguir, cada passo assinalado por Pedro:

(1) Arrependimento: qual a sua natureza? Paulo Apóstolo explica em 2 Co 7,10:
"Porque a tristeza segundo Deus opera arrependimento para a salvação, da qual ninguém se arrepende; mas a tristeza do mundo opera a morte".

      Paulo afirma aqui que o ser humano, por si mesmo, não tem condições de se "autoentristecer". Seu arrependimento, desse modo, seria forjado. Dependemos de Deus para nos fazer reconhecer o nosso pecado. Jesus, em Jo 16,8, já havia dito que esse convencimento é tarefa do Espírito Santo:
"E, quando ele vier, convencerá o mundo do pecado, e da justiça e do juízo".

   Nessa ocasião, em Pentecostes, o termo "conpungiu-se-lhes" o coração significa a sensibilidade dos ouvintes à ação do Espírito Santo neles, para o arrependimento. "Pungir", metaforicamente aqui, significa "ter o coração perfurado por punhal". Isso representa neles a atuação do Espírito, o seu assumir da tristeza segundo Deus e o verdadeiro arrependimento ocorrido.

(2) Batismo em nome de Jesus: desde a irrupção do ministério de João Batista, assim apelidado, que essa cerimônia era questionada pelos judeus. Em Jo 1,19-28, está a narrativa da defesa que fez quando interpelado pelas autoridades de Jerusalém. Nesta situação, o próprio profeta define dois tipos de batismo: (1) o que ele praticava, contrariando, como levita e filho do sacerdote Zacarias, a norma dos rituais de purificação do Templo, somente aplicados aos sacerdotes e agora exposto a todos por ele; (2) e o batismo que Jesus realiza no/com o Espírito Santo, especificamente naquele que autenticamente crê, como confirmação de fé, batismo esse exclusivo e soberano, realizado unicamente por Jesus. Veja, a seguir, a fala do profeta João Batista:
"No dia seguinte João viu a Jesus, que vinha para ele, e disse: Eis o Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo [...] E eu não o conhecia, mas o que me mandou a batizar com água, esse me disse: Sobre aquele que vires descer o Espírito, e sobre ele repousar, esse é o que batiza com o Espírito Santo". Jo 1,29 e 33.

    Pedro aqui se refere aos dois batismos. Quem ali, na oportunidade desse sermão entregue por Pedro se convertesse a Jesus, além de despertar a ira das autoridades judaicas, por se submeter ao batismo cristão, somente teria autenticamente sido convertido se e somente se tivesse sido batizado no Espírito por Jesus.  Daí  a menção final de Pedro: "e recebereis o dom do Espírito Santo".

(3) Perdão dos pecados: arrependimento, batismo no Espírito Santo e perdão dos pecados são atos soberanos da ação de Deus em nossa vida exercidos no momento da conversão. No versículo de 2 Co 7,10 está escrito "arrependimento para a salvação", quer dizer, arrependimento autêntico.

    Porque estão incluídos os três num só ato da soberania de Deus: arrependimento, perdão dos pecados e dom do Espírito Santo, também designado como batismo ou recebimento do Espírito Santo. O perdão do pecado está associado à autenticadade do arrependimento. É por isso que Pedro aqui o menciona: arrependimento é denominado  "tristeza segundo Deus", por ser a tristeza que Deus sente e nós não sentimos, diante do nosso pecado, mas da qual vamos privar e compartilhar com Deus no momento da conversão.

   Decorre do arrependimento, então, o perdão dos pecados, porque o preço, a dívida que tínhamos e a expiação, o esgotamento e compensação pela culpa do pecado, Jesus assumiu para Si na cruz, quando morreu pela salvação de todo o que crer. Não significa que agora se tornam "impecáveis", mas que reconheceram o grau de sua culpa, aceitando e compreendendo o ato divino único para o perdão, a morte e ressureição de Jesus, em comunhão com quem surge uma nova vida, de vitórias contínuas contra o pecado. 

(4) O dom do Espírito: a palavra aqui não é a mesma usada para indicar, em 1 Co 12, a variedade dos dons do Espírito. Lá é "karismata" e aqui é "dorean", ou seja, em 1 Co, receber um entre os dons que o Espírito Santo concede e, aqui, receber o Espírito Santo como dom de Deus. Entendido? No ato da conversão, o Espírito Santo atua para que experimentemos e acolhamos em nós a tristeza de Deus por nosso pecado e, uma vez arrependidos, será operada a salvação, que se constitui em crer na morte e ressureição de Jesus por nossos pecados, arrependimento e fé consumados e autenticados no batismo com o Espírito Santo, efetuado por Jesus, que prometeu e derramou esse mesmo Espírito. O Espírito Santo passa a habitar em nós. 

"Deus ressuscitou a este Jesus, do que todos nós somos testemunhas.
De sorte que, exaltado pela destra de Deus, e tendo recebido do Pai a promessa do Espírito Santo, derramou isto que vós agora vedes e ouvis". Atos 2:32,33.

      E Paulo Apóstolo confirma, aos Efeitos 1,13-14, o modo como o Espírito Santo, como selo de Deus, confirma a nossa fé, mantendo-nos com a marca de sermos prioridade de Deus, até o dia de estar diante dEle:
"Em quem também vós estais, depois que ouvistes a palavra da verdade, o evangelho da vossa salvação; e, tendo nele também crido, fostes selados com o Espírito Santo da promessa;
O qual é o penhor da nossa herança, para redenção da possessão adquirida, para louvor da sua glória".

3. Conclusão 
   
      Pela extensão desta Lição 3, não vamos abaixo destacar os pontos mais relevantes de sua argumentação. Veja-os marcados acima em negrito. Mas reafirmamos a urgente necessidade da igreja de, pelo estudo deste e dos demais sermões do livro de Atos dos Apóstolos, reconhecer os fundamentos bíblicos da proclamação que, de modo contente e permanente, não pode se omitir em realizar. Lembrando que essa não é responsabilidade exclusiva somente da liderança, que deve se constituir em exemplo, porque o envio a pregar é responsabilidade para toda a igreja.

domingo, 22 de março de 2020

Calamidade individual e coletiva

Tem misericórdia de mim, ó Deus, tem misericórdia, pois em ti a minha alma se refugia; à sombra das tuas asas me abrigo, até que passem as calamidades.
Clamarei ao Deus Altíssimo, ao Deus que por mim tudo executa.

Salmos 57:1,2

Firme está o meu coração, ó Deus, o meu coração está firme; cantarei e entoarei louvores.
Desperta, ó minha alma! Despertai, lira e harpa! Quero acordar a alva.
Render-te-ei graças entre os povos; cantar-te-ei louvores entre as nações.
Pois a tua misericórdia se eleva até aos céus, e a tua fidelidade, até às nuvens.
Sê exaltado, ó Deus, acima dos céus; e em toda a terra esplenda a tua glória.

Salmos 57:7-11

     A situação prática que Davi enfrenta e chama de calamidade, quando compôs este salmo, é a perseguição sem motivo desencadeada contra ele pelo rei Saul.
    Realmente ter um rei e seu exército nos calcanhares, é uma calamidade que, no caso de Davi, ganhou contornos diversos. 
   Político, porque a aclamação que Davi recebeu do povo, como herói da guerra contra os filisteus, "Saul matou seus milhares/Davi seus dez milhares", mexeu com a cabeça já não muito sadia de Saul. 
   Espirituais, porque Saul passou a ser atormentado por um espírito demoníaco, aliás consolado pelo próprio Davi, na tentativa de uma terapia musical, que quase lhe custou a vida: Saul tentou cravá-lo na parede com uma lança. 
     E pessoal, porque havia sincera amizade entre Davi e Jônatas, o filho do rei, que tentou convencer o pai da absoluta inocência do amigo, tendo sido advertido, aos palavrões, pelo rei, e indicando a Davi, por um sinal cifrado, de atirar uma flecha para além do alvo, assinalando a rota de fuga. 
     Daí a oração de Davi, que se encaixou previamente na sua situação:
"Tem misericórdia de mim, ó Deus, tem misericórdia, pois em ti a minha alma se refugia; à sombra das tuas asas me abrigo, até que passem as calamidades. Clamarei ao Deus altíssimo, ao Deus que por mim tudo executa" Salmo 57,1-2.
     Também há quatro indicações diretas para nós, nesta calamidade:
1. Pedir a Deus sua típica misericórdia;
2. Reafirmar que nEle, sim, com certeza, refugia-se a nossa alma;
3. Certamente, vamos procurar abrigo sob suas asas, debaixo das quais cabe o mundo inteiro, até passar a calamidade;
4. E vamos clamar por Seu nome, porque já conhecemos a íntima experiência de que Ele tudo executa por todos e, especificamente, a cada um de nós. 

    1. Amor: Deus é misericórdia. Esta palavra pode ser traduzida "amor" no hebraico. No sentido exato, "ato acordado previamente", no caso um compromisso, sentido legal; benevolência, amor, graça, no sentido de "firmar um compromisso de amor", como em Isaías 54,10:
"Porque os montes se retirarão, e os outeiros serão removidos; mas a minha misericórdia não se apartará de ti, e a aliança da minha paz não será removida, diz o Senhor, que se compadece de ti". Deus tem com cada um e com toda a humanidade um compromisso de amor. 

   2.  Refúgio: O Salmo 121:
Elevo os olhos para os montes: de onde me virá o socorro?
O meu socorro vem do Senhor, que fez o céu e a terra.
Ele não permitirá que os teus pés vacilem; não dormitará aquele que te guarda.
É certo que não dormita, nem dorme o guarda de Israel.
O Senhor é quem te guarda; o Senhor é a tua sombra à tua direita.
De dia não te molestará o sol, nem de noite, a lua.
O Senhor te guardará de todo mal; guardará a tua alma.
O Senhor guardará a tua saída e a tua entrada, desde agora e para sempre.

       No versículo 7 diz o salmista: "O Senhor te guardará de todo mal; guardará a tua alma". É o lugar da nossa verdade. Ainda que a gente não queira admitir, não dá para esconder de nossa alma o medo e a insegurança. Mas o Senhor guarda a nossa alma. Por isso que, em horas de aperto e até de desespero, a gente se refugia no Senhor Deus, a gente corre para o Seu abrigo. Eu abrigo minha alma no Senhor, o Senhor habita meu íntimo, habita a minha alma: minha fé está no Senhor.

   3. Abrigo: Jesus deve ter chorado mais do que as duas vezes que o Novo Testamento indica: uma delas, foi por causa da tristeza provocada pela morte; a outra, porque reconheceu que Jerusalém não queria abrigar-se sob as asas do Senhor:

"Quando ia chegando, vendo a cidade, chorou e dizia: Ah! Se conheceras por ti mesma, ainda hoje, o que é devido à paz! Mas isto está agora oculto aos teus olhos.
Pois sobre ti virão dias em que os teus inimigos te cercarão de trincheiras e, por todos os lados, te apertarão o cerco;
e te arrasarão e aos teus filhos dentro de ti; não deixarão em ti pedra sobre pedra, porque não reconheceste a oportunidade da tua visitação. Lucas 19:41-44    

"Jerusalém. Jerusalém, Jerusalém, que matas os profetas e apedrejas os que te foram enviados! Quantas vezes quis eu reunir teus filhos como a galinha ajunta os do seu próprio ninho debaixo das asas, e vós não o quisestes!  Lucas 13:33,34

"Jerusalém, Jerusalém, que matas os profetas e apedrejas os que te foram enviados! Quantas vezes quis eu reunir os teus filhos, como a galinha ajunta os seus pintinhos debaixo das asas, e vós não o quisestes!   Mateus 23:37

      Quantas vezes não corremos para nos abrigarmos sob as asas do Senhor. Nossa vida de formalidade simula uma devoção que, na verdade, é vazia. Quando, então, a calamidade bate à porta, então vem o medo ou a revolta contra Deus, achando nós que lhe temos de ensinar como agir conosco. Se a intimidade com Ele for determinante para a nossa fé, vamos estar firmes nesta hora, porque acostumados com o lugar permanente de refúgio, que é no aconchego e segurança da quentura e abrigo de Suas asas.

4. Clamor. As pessoas costumam chamar clamor uma gritaria coletiva. Erro distante. Porque, em primeiro lugar, Deus não é surdo. Segundo, porque Deus é lógico quando fala a nós e cobra, de nós, lógica, quando falarmos com Ele. E também, e, principalmente, coerência. Numa coisa as pessoas estão certas: O clamor precisa ser coletivo. Vejamos:
"Se, pois, ao trazeres ao altar a tua oferta, ali te lembrares de que teu irmão tem alguma coisa contra ti, deixa perante o altar a tua oferta, vai primeiro reconciliar-te com teu irmão; e, então, voltando, faze a tua oferta.
Entra em acordo sem demora com o teu adversário, enquanto estás com ele a caminho, para que o adversário não te entregue ao juiz, o juiz, ao oficial de justiça, e sejas recolhido à prisão.
Em verdade te digo que não sairás dali, enquanto não pagares o último centavo.
Mateus 5:23-26

      Clamor está condicionado ao senso de justiça. Frequentemente, a Bíblia associa calamidade a um alerta de Deus. Com a vida em risco e com o medo frio à porta, do lado de fora, a hipocrisia da inocência forjada, do papel de bobo atribuído a Deus, invade as pessoas. Quem não está acostumado a duas coisas (1) tratar o irmão com o devido respeito ou (2) conduzir-se, na vida, por um absoluto senso de justiça, tem medo da morte que, para Deus, é apenas o intervalo entre a vida e o juízo final. Medo. João tem uma resposta para o medo:
"No amor não existe medo; antes, o perfeito amor lança fora o medo. Ora, o medo produz tormento; logo, aquele que teme não é aperfeiçoado no amor". 1 João 4:18

    Antes de clamar a Deus lembre-se disto: o clamor é coletivo e, não, individualista; é lógico, coerente e requer justiça; e também comunhão, amor e respeito ao próximo.

   Ó, Pai, ensina-nos tudo o que a calamidade nos dá chance de apreender. Tenha misericórdia porque, se por ela não aprendemos, quão dura deverá estar nossa consciência e quão distante da fé.

A eira de Araúna

Basta, retira a mão. O Anjo estava junto à eira de Araúna, o jebuseu. 2 Samuel 24:16

      Algumas pessoas argumentam que Deus não existe porque, se assim o fosse, interferiria no mundo, para frear a maldade humana. Ou qualquer calamidade que ceifasse vidas. 
     Um dos argumentos mais estúpidos. Pelo menos por três razões: (1) transfere a Deus a responsabilidade por nossa maldade; (2) burla um, senão o maior bem, mal compreendido e não vivenciado pelo ser humano, que é a liberdade; e (3) Deus não é patrono das calamidades. 
     Toda a humanidade herdou a síndrome de Caim, a quem Deus disse, "tua maldade é desejo contra ti, mas a ti cumpre dominar". O instinto homicida está presente em todos nós. Por isso, a culpa dos crimes não é de Deus. 
      E quanto aos microrganismos ruins, ora, não dizem que somos fruto do acaso? Portanto, a geração deles é espontânea e estão na defesa de seu direito à vida. Se nos encontram pela frente, é acidente para nós: para eles, está em sua agenda. 
     Sarah Kalley, congregacionalista britânica que iniciou, com o marido Robert, a escola dominical com crianças no Brasil, em Petrópolis, RJ, em 1855, acertou em sua poesia: "Sentimentos orgulhosos não convêm a criminosos salvos pelo amor".
     Bobagem negar que somos maus com o semelhante, principalmente o mais fraco e discriminado ou diverso de nós, em ideologia, cor, raça, religião, gênero, nível social ou qualquer outro capricho sem sentido, porque pratica-se maldade com ou sem motivo, por puro prazer, colocando-se a culpa em Deus.
      Sim, Deus existe, é sensível e atua por amor e por bondade. Não somos mais sensíveis do que ele ao sofrimento humano. 
      Na história bíblica de Davi ele, desta vez, estava tão sem razão, que até Joabe, mau caráter e sem escrúpulos, tinha razão no conselho que deu: 
      "Ora, multiplique o Senhor, teu Deus, a este povo cem vezes mais, e o rei, meu senhor, o veja; mas por que tem prazer nisto o rei, meu senhor?". 2 Samuel 24:3
     Costuma-se falar de Deus como se fosse alguém, algum e até algo sem opinião. Vivemos tempos em que a defesa dos direitos individuais, às vezes, até, em nome de interesses coletivos, está tão exagerada, que até a opinião de Deus terá de se submeter a esses "direitos". 
     Teremos de fazer a releitura desse texto, para apresentar aos mais exigentes um Deus recauchutado e adaptado às exigências atuais, porque na história Ele disse para Davi não levantar o censo do povo.
    Davi teimou. O mau caráter Joabe aconselhou o certo. Davi fez o que quis. Ao final do censo, que até o IBGE aqui, neste ano, já cancelou, Davi teve, de novo, taquicardia, que acontecia com ele quando desconfiava que havia contrariado o Altíssimo. Porque tinha o temor do Senhor. 
    Deus mandou Gade propor o castigo: 7 anos de fome, 3 meses nas mãos do inimigo ou 3 dias de peste. Três tipos de assolações que a humanidade é veterana em experimentar: a fome, a guerra e a epidemia. Davi disse o que o seu perfil de experiência com Deus bem definia: 
    "Estou em grande angústia; porém caiamos nas mãos do Senhor, porque muitas são as suas misericórdias; mas, nas mãos dos homens, não caia eu". 2 Samuel 24:14.
     Dos 800 mil contados, quase o dízimo morreu pela peste, cerca de 70.000. Se o corona matar quase o dízimo, no mundo, serão quase 700 milhões.  Mas a taxa de mortandade é baixa, não chega a 4%. Serão, então, menos do que 280.000. 
     E Deus, em sua sensibilidade?  Ele existe mesmo? É castigo? Quando dirá, então, ao anjo: "Basta, retira a mão"? Algumas lições a aprender:
1. Coronavírus não é castigo de Deus. 
2. O apocalipse não está aí, começando: sempre esteve, está continuando. Chame "Apocalipse now" (não o nome do filme de 1979, a que assisti duas vezes, mas o real, que está em curso).
3. Apocalipse agora (e sempre) é outra  síndrome que a humanidade carrega consigo: esta, de autodestruição.
4. Muita coisa mata mais do que o COVID-19. Este nos assusta, porque temos medo de que nos mate: as outras coisas que matam, acreditamos, vão matar o vizinho, nunca a gente. 
5. Há quem perca, mas há quem ganhe com a pandemia. E assim caminha a humanidade (outro filme, este já é de 1956, um ano antes de eu nascer).
6. Se alguém acha ridícula a ideia de que o vírus foi inventado: pelo EUA, que injetou na China; ou pela China, que injetou nos EUA (e a Rússia está rindo, por fora), não por essa historinha, mas por muitas outras está comprovado que esse povo aí, para lá ou para cá, também não têm escrúpulos. Como Joabe é a maioria das autoridades mundiais: manipulam o poder, sem nenhum caráter. 
7. Vamos encarar esse choque de realidade. Aprender o máximo que pudermos sobre este e outros vírus. Pôr em prática nossa vivência cristã. E aprender mais da conversa final de Davi com Araúna:
7.1. "Por que vem o rei, meu Senhor?" Davi vinha marcado por aprender com Deus. Vinha de uma calamidade, com coração ferido por arrependido, dependente e dadivoso. Nosso coração precisa sempre de mudança. Ainda que seja por causa de uma calamidade.
7.2. "Para comprar de ti esta eira, a fim de edificar nela um altar ao Senhor, para que cesse a praga de sobre o povo". Sempre é motivo para edificar altar ao Senhor. A samaritana aprendeu que todo lugar, em todo o tempo, é para erguer altar ao Senhor, não só porque a praga bate à nossa porta.
7.3. "Tome e ofereça o rei, meu senhor, o que bem lhe parecer [...] Tudo isto, ó rei, Araúna oferece ao rei; e ajuntou: Que o Senhor, teu Deus, te seja propício". Araúna enxergou o valor da disponibilidade do rei e se associou a ela. Pelo mundo afora, devemos marcar os outros com a mesma comunhão de disponibilidade para oferta total ao Senhor, que se agrada do coração voluntario;
7.4.  "Porém o rei disse a Araúna: Não, mas eu to comprarei pelo devido preço, porque não oferecerei ao Senhor, meu Deus, holocaustos que não me custem nada". Aqui não significa trocar com Deus um favor pelo outro, mas entrega por entrega. Deus se deu por nós em Jesus, igreja que ele comprou com seu sangue. No íntimo, somos como Abraão? Deu o filho, como símbolo de dar tudo, ou fazemos escambo com Deus? 
7.5.  "Edificou ali Davi ao Senhor um altar e apresentou holocaustos e ofertas pacíficas. Assim, o Senhor se tornou favorável para com a terra, e a praga cessou de sobre Israel'.
      Vamos erguer mais este altar. Neste tempo. Vamos dedicar nossa vida, sem nenhum interesse, porque "um morreu por todos e os que vivem, não mais vivam para si mesmos", a não ser o interesse do amor. 
      Pode ser que Deus diga logo ao anjo que "Basta, retira a mão". Pode ser que uma oração nossa antecipe porque, como diz Tiago, em 5,16 (outro cara com um tremendo senso prático, essencial nessas horas), "Muito pode, por sua eficácia, a súplica do justo".
    Mas pode ser que não. Então, vamos seguir, não assumindo a calamidade como sina, mas como saga: será mais uma história de fé em nossa vida.

sexta-feira, 20 de março de 2020

Lição 2 - Fatos fundantes: Pentecostes - Atos 2,1-13

Texto base: At 2,1-13

1. Ao cumprir-se o dia de Pentecostes, estavam todos reunidos no mesmo lugar;
2. de repente, veio do céu um som, como de um vento impetuoso, e encheu toda a casa onde estavam assentados.
3. E apareceram, distribuídas entre eles, línguas, como de fogo, e pousou uma sobre cada um deles.
4. Todos ficaram cheios do Espírito Santo e passaram a falar em outras línguas, segundo o Espírito lhes concedia que falassem.
5. Ora, estavam habitando em Jerusalém judeus, homens piedosos, vindos de todas as nações debaixo do céu.
6. Quando, pois, se fez ouvir aquela voz, afluiu a multidão, que se possuiu de perplexidade, porquanto cada um os ouvia falar na sua própria língua.
7. Estavam, pois, atônitos e se admiravam, dizendo: Vede! Não são, porventura, galileus todos esses que aí estão falando?
8. E como os ouvimos falar, cada um em nossa própria língua materna?
9. Somos partos, medos, elamitas e os naturais da Mesopotâmia, Judeia, Capadócia, Ponto e Ásia,
10. da Frígia, da Panfília, do Egito e das regiões da Líbia, nas imediações de Cirene, e romanos que aqui residem,
11. tanto judeus como prosélitos, cretenses e arábios. Como os ouvimos falar em nossas próprias línguas as grandezas de Deus?
12. Todos, atônitos e perplexos, interpelavam uns aos outros: Que quer isto dizer?
13. Outros, porém, zombando, diziam: Estão embriagados!      Atos 2:1-13

 Introdução:

     A igreja de Jesus precisa entender o verdadeiro sentido do Pentecoste: (1) inverso de Babel, é pregar o evangelho em todas as línguas; (2) congregar na comunhão em Cristo, falando para fora, ao mundo, e não à igreja, de modo incompreensível, para dentro de si mesma; (3) anunciar Jesus, fundamentada nos pontos principais da fé: (1) Jesus, varão aprovado por Deus, por sinais, prodígios e migares; (2) morto pela flagrante violência humana; (3) ressuscitado pelo poder de Deus; (4) que batiza no Espírito Santo, para arrependimento e remissão de pecados. At 2,32.

1. Por que no Pentecoste o mais importante não foi o "sobrenatural".

      Com muita frequência o termo "sobrenatural de Deus" é usado hoje em dia. Termo redundante, porque tudo o que Deus realiza é sobrenatural.

   O problema é uma divisão errada entre "mundo físico" e "mundo espiritual". Desde que na Bíblia está anotado, para a nossa instrução, que "o Verbo se fez carne", não mais faltou a intenção de demonstrar que a principal ação de Deus se dá no mundo físico onde vivemos.

    Às vezes o ser humano confunde essa ação de Deus, como ocorreu com Elias: 

"Disse-lhe Deus: Sai e põe-te neste monte perante o Senhor. Eis que passava o Senhor; e um grande e forte vento fendia os montes e despedaçava as penhas diante do Senhor, porém o Senhor não estava no vento; depois do vento, um terremoto, mas o Senhor não estava no terremoto; depois do terremoto, um fogo, mas o Senhor não estava no fogo; e, depois do fogo, um cicio tranquilo e suave". 1 Reis 19:11,12

       Aqui o profeta esperava que a manifestação de Deus se dessa via vento forte, terremoto ou pelo fogo. Mas Deus se manifestou ao profeta quando tudo à volta voltou ao normal e somente um cicio tranquilo, muito menos do que um vento, começou a chiar. 

       Deus escolhe seus modos de se manifestar. O que não pode ocorrer é (1) sempre achar, como Elias, que será de forma bruta; (2) ou que, obrigatoriamente, deverá ser de forma sempre surda ou amainada, como foi neste caso; ou ainda (3) divulgar padrão ou testemunho presumido de uma falsa manifestação de Deus.

    É necessário comprovar que Deus se faz ouvir, desmistificando seja num modo errado, seja num modo legítimo. Por exemplo, em Pentecoste, Deus escolheu manifestar-se (1) por um sinal sonoro, "som como de um vento impetuoso", (2) por um sinal visual, "distribuídas línguas como de fogo"; e (3) por uma tradução simultânea de idiomas específicos e indicados no texto, por meio da ação milagrosa do Espírito Santo: "E como os ouvimos falar, cada um em nossa própria língua materna?".

     Não houve vento em Pentecostes e não houve fogo: foi "como" vento, um som; e "como" fogo, linguetas pousadas, representativa e simbolicamente, sobre cada apóstolo.

     E o outro sinal, milagre realizado pelo Espírito  Santo, indicado no texto por "passaram a falar em outras línguas, segundo o Espírito lhes concedia que falassem", significou uma "tradução simultânea" para os idiomas das nações que estão especificadas, At 2,8-11:

"E como os ouvimos falar, cada um em nossa própria língua materna? Somos partos, medos, elamitas e os naturais da Mesopotâmia, Judeia, Capadócia, Ponto e Ásia, da Frígia, da Panfília, do Egito e das regiões da Líbia, nas imediações de Cirene, e romanos que aqui residem, tanto judeus como prosélitos, cretenses e arábios. Como os ouvimos falar em nossas próprias línguas as grandezas de Deus?".

      Não houve "línguas estranhas" em Pentecostes. Aliás, isso condiz com a definição de Paulo para esse dom em 1 Co 14,10-11:

"Há, sem dúvida, muitos tipos de vozes no mundo; nenhum deles, contudo, sem sentido. Se eu, pois, ignorar a significação da voz, serei estrangeiro para aquele que fala; e ele, estrangeiro para mim.   

     Neste e em outros versículos dessa carta aos Coríntios, Paulo reforça que língua é idioma e não "língua estranha" ou "línguas dos anjos". Em outras partes desta lição, vamos reforçar, citando em outros textos dessa mesma carta 1 Co, essa explicação do apóstolo.

2. Pregação também é "sobrenatural de Deus".

     Continuando na carta 1 Co de Paulo Apóstolo, ele nos dá uma aula sobre a ação do Espírito Santo em 1 Co 2,6-16, de cujo trecho colocamos abaixo os versículos 10-16.

     Paulo vem comentando como os homens, considerados "sábios deste século", rejeitaram a "mensagem da cruz", que representa, para quem crê, "sabedoria de Deus". E essa sabedoria é revelada pelo Espírito Santo:  

"Mas Deus no-lo revelou pelo Espírito; porque o Espírito a todas as coisas perscruta, até mesmo as profundezas de Deus. Porque qual dos homens sabe as coisas do homem, senão o seu próprio espírito, que nele está? Assim, também as coisas de Deus, ninguém as conhece, senão o Espírito de Deus. Ora, nós não temos recebido o espírito do mundo, e sim o Espírito que vem de Deus, para que conheçamos o que por Deus nos foi dado gratuitamente. Disto também falamos, não em palavras ensinadas pela sabedoria humana, mas ensinadas pelo Espírito, conferindo coisas espirituais com espirituais. Ora, o homem natural não aceita as coisas do Espírito de Deus, porque lhe são loucura; e não pode entendê-las, porque elas se discernem espiritualmente. Porém o homem espiritual julga todas as coisas, mas ele mesmo não é julgado por ninguém.
Pois quem conheceu a mente do Senhor, que o possa instruir? Nós, porém, temos a mente de Cristo.

      Pois o "sobrenatural de Deus", em Pentecostes, revelado pelo Espírito Santo, está principal e definidamente contido  nos efeitos do sermão de Pedro, em sua (1) apresentação, (2) recepção e (3) resultados. Pedro que, como Paulo diz acima, certamente falou "não em palavras ensinadas pela sabedoria humana, mas ensinadas pelo Espírito".

     E por que, avaliando o sermão de Pedro, podemos constatar, da introdução à conclusão, um escopo lógico e preciso? Este, o primeiro sermão pregado após Jesus ter sido elevado aos céus, assim como o primeiro sermão entregue no início da história da igreja.

     Paulo acima, nessa mesma aula sobre o Espírito Santo esclarece  que lógica e precisão na pregação começa por "conferindo coisas espirituais com espirituais". Pedro lança mão do projeta Joel, para explicar que o que estavam presenciando era cumprimento de profecia. 

     Também cita outros trechos do Antigo Testamento, como salmos de Davi, denominando-o profeta. Conferir, como diz Paulo, é o trabalho consciente e prévio de todo o pregador que, desse modo, habilita-se, de modo zeloso, consciente e preciso, a ser usado pelo Espírito Santo, para falar em nome de Jesus.

     E ao final de sua argumentação, Paulo afirma que, pela pregação, define-se o "homem natural", que não aceita o testemunho do Espírito Santo e rejeita a mensagem do evangelho, do "homem espiritual", que discerne, confirma e acolhe o testemunho do Espírito Santo.

3. A principal ênfase do Pentecostes.

      Quando, posteriormente, a igreja em Corinto quis sobrevalorizar o dom de línguas, errando no foco da ênfase dada ao Pentecoste, Paulo enumerou argumentos que colocavam esse dom no seu devido lugar em relação aos outros, sem diminuir ou anular sua importância:

3.1. Falar à igreja, por meio de profecia (que não é prever o futuro ou adivinhação/revelação de mistérios) é superior a "falar em outra língua", 1 Co 14,3-4;

3.2. O dom de línguas requer, obrigatória e legitimamente, interpretação. Em 1 Co 12,10 o dom de "variedade de línguas" é dado a um e a "capacidade de interpretar" a outro: mas profetizar é superior a falar em línguas, ensina Paulo, para que a igreja seja edificada, 1Co 14,5;

3.3. Paulo fala que, se a palavra dita não for compreensível, ou seja, não for idioma, inteligível, ao contrário de "língua estranha", não haverá nem proveito e nem edificação para a igreja: não haverá revelação, nem ciência, nem profecia e nem doutrina. Será como um instrumento inanimado, sem afinação ou tocado por qualquer um não habilitado, 1 Co 14,6-11;

3.4. Continua dizendo que os dons do Espírito Santo não são uma demonstração de ego pessoal, mas voltados para a edificação coletiva da igreja, como dito em 1 Co 12,4-7. Quem deseja identificar aquele que o Espírito lhe conferiu, como orienta 1 Co 14,1: "Segui o amor, e procurai com zelo os dons espirituais, mas principalmente o de profetizar", esse deve progredir para a "edificação da igreja", 1 Co 14,12;

3.5. E quem ainda afirma que o "dom de línguas" é o "dom do pijama", quer dizer, solitário, o que já é contraditório, porque dom do Espírito é para a edificação da igreja, ainda há outro contra-argumento: não há edificação quando, solitariamente, uma "sensação de plenitude" preenche o "espírito", mas a mente fica infrutífera, porque não entende o que não é dito. Paulo exorta a que mente e, agora sim, o espírito também seja edificado, 1 Co 14,13-19. E não vale "autotradução", porque "a um" é dado o dom de "variedade de línguas" e "a outro" a "capacidade para interpretar".

4. Conclusão.

4.1. Pentecoste não é o dia do "dom pentecostal" ou dia de exaltação do "dom de línguas" ou dos dons do Espírito Santo. Exatamente porque o Espírito foi derramado por Jesus, como ele prometera em Jo 16,7, para glorificar o nome de Jesus, Jo 16,14, e não o seu próprio. Leia o texto de Jo 16,12-16:

"Tenho ainda muito que vos dizer, mas vós não o podeis suportar agora; quando vier, porém, o Espírito da verdade, ele vos guiará a toda a verdade; porque não falará por si mesmo, mas dirá tudo o que tiver ouvido e vos anunciará as coisas que hão de vir. Ele me glorificará, porque há de receber do que é meu e vo-lo há de anunciar. Tudo quanto o Pai tem é meu; por isso é que vos disse que há de receber do que é meu e vo-lo há de anunciar. Um pouco, e não mais me vereis; outra vez um pouco, e ver-me-eis".

4.2. Portanto, Pentecoste é o dia do derramamento do Espírito Santo, de modo a que Jesus seja glorificado. Então, o sermão do dia de Pentecoste, que aponta para a Pessoa e obra de Jesus, é o seu principal destaque e não a outorga de qualquer dom, o de línguas, que seja, impropriamente enfatizado.

4.3. O próprio apóstolo Paulo indica isso, em 1 Co 14,20-22, esclarecendo a finalidade do dom de línguas, como foi em Pentecostes:

"Irmãos, não sejais meninos no juízo; na malícia, sim, sede crianças; quanto ao juízo, sede homens amadurecidos. Na lei está escrito: Falarei a este povo por homens de outras línguas e por lábios de outros povos, e nem assim me ouvirão, diz o Senhor. De sorte que as línguas constituem um sinal não para os crentes, mas para os incrédulos; mas a profecia não é para os incrédulos, e sim para os que creem".

4.4. Portanto, o fato de todas as nações presentes ouvirem e entenderem, cada uma em sua língua, "como os ouvimos falar em nossas próprias línguas as grandezas de Deus?", At 2,11b, naquele dia, em tradução simultânea, pelo poder do Espírito Santo, é símbolo da urgente e permanente missão da igreja: pregar o evangelho a "toda tribo, língua povo e nação", como está no Apocalipse 5,9:

"...entoavam novo cântico, dizendo: Digno és de tomar o livro e de abrir-lhe os selos, porque foste morto e com o teu sangue compraste para Deus os que procedem de toda tribo, língua, povo e nação e para o nosso Deus os constituíste reino e sacerdotes; e reinarão sobre a terra".

4.5. Mas para a igreja anunciar Jesus "a toda tribo, língua, povo e nação", terá de enviar missionários preparados na palavra, como Pedro, para que sejam usados pelo Espírito Santo, pregando as Escrituras, além de aprender a língua específica de cada "tribo, língua, povo e nação", porque não haverá tradução simultânea pelo Espírito Santo e, muito menos, "língua estranha".

4.6. É urgente para a igreja rever a instrução propedêutica dos sinais no Pentecostes. Não se trata de exaltação do Espírito Santo e nem da prevalência de um dom sobre os outros. Mas um fato fundante: a inauguração da ação do Espírito Santo, no que tem como principal: (1) glorificar Jesus Cristo; (2) iluminar, no ministério da igreja, a quem Jesus enviar para pregar em seu nome; (3) agir nos que ouvem, de modo a que creiam na palavra de Jesus assim anunciada.

4.7. Para tanto, esses obreiros assim vocacionados, como Pedro, necessitam do devido preparo, especialmente no devido  conhecimento das Escrituras, agora do Antigo e Novo Testamentos, assim como discernimento para entender a época em que vivem, de modo a demonstrar autoridade aos que os ouvem.