quarta-feira, 28 de junho de 2023

A síndrome da serpente

1Ora, a serpente era o mais astuto de todos os animais selvagens que o Senhor Deus tinha feito. E ela perguntou à mulher: "Foi isto mesmo que Deus disse", Gn 3,1a.

 Querendo-se ou não, por detrás da narrativa de Gênesis 3, há reflexos da personalidade da serpente na nossa própria personalidade.

   No hebraico é chamada HANACHASH, quer dizer, "a serpente": HA, é o artigo "a" e NACHASH o substantivo traduzido "serpente". CH tem o mesmo som de /j/ no espanhol "hijo", filho.

   E o SH o mesmo som do antigo refrigerante CRUSH, dos anos 60/70. E o verbo que a ela se refere é o HAYAH, com esse H soando como /h/ no inglês "house", casa.

   O texto conta a história da serpente, apresentando-a com a mais astuta, sagaz entre seus iguais no campo, HASADEH, mesmo raciocínio, HA sendo o artigo "o", invariável, no hebraico, e SADEH, campo.

   Por isso aparece na tradução a palavra "alimárias", generativo que não aparece no original. <ARUM MICOL HAYAT HASADEH, no hebraico, /</ uma aspiração grave, e <ARUM traduzida "sagaz", MI + COL, com MI indicativo de sua origem entre "todos, os demais", COL, "os que havia", HAYAT, no campo, daí a tradução "entre as alimárias".

    Uma serpente, ou "a serpente havia sagaz entre os(as) demais alimárias". Nem se sabia que a existência dela se constituiria numa prova para o casal. Que deve ser visto em seu conjunto, assim como individualmente.

   Mas deixando o casal, vamos abordar que reflexos da personalidade da serpente, segundo demonstra a narrativa bíblica, foram herdados pelos descendentes do casal que, para as Escrituras, somos todos nós.

   A primeira interpelação dela, "a serpente que havia", pergunta: KI-'AMAR HELOHIM, "assim falou Deus?". A sugestão é de introduzir uma dúvida. Atualizada, seria perguntar: "Se Deus existe, ele fala? Como fala? Nítida ou supostamente?"

    Mas na economia da narrativa, Deus havia falado: MICOL ETS-HAGAN 'AKOL T'OKEL, "dentre todas as árvores do jardim comer comerás". UMEETS HADA<AT TOV VARA< LO TOKAL. Traduzido: U + ME + ETS, e + da + árvore, do conhecimento, HADA<AT do bem, TOV, e + mal, VA + RA<, "não comerás".

    E acrescenta: BeYOM 'AKALeKA MIMENU MOT TAMUT. A palavra YOM é "dia" e Be é a preposição "em". Traduzido: No dia em que comeres verbo "comer", 'AKAL + KA, pronome "dela", MOT TAMUT, verbo MUT, morrer, traduzido "morrer morrerás".

   Então Deus havia dito "morrer morrerás", mas a serpente, contra-argumentando com a mulher, afirmou "Não morrer-morrerás". Porque Deus sabe que no dia em que comeres dele, vão se lhes abrir os olhos e sereis como Deus conhecedores do bem e do mal".

    Resumindo, a serpente: 1. Pôs em dúvida a validade do que Deus havia dito; 2. Contradisse o que Deus havia afirmado; 3. Sugeriu que o casal seria como Deus; 4. Podemos incluir que despertou a curiosidade para o mal.

   Talvez esta última sugestão, a simpatia para com o mal, seja o que mais exerce fascínio sobre o ser humano. Pois caminhando de volta, para abarcar toda a sugestão da serpente, tem-se que:

    Seriam como Deus, "conhecedores" do bem e do mal. Não. Não precisa fazer o que Deus sugere: não faça ou faça o inverso. Qualquer palavra apenas suspeita de ter origem divina, duvide, ponha em dúvida, nem se ocupe disso.

    Estamos no alvorecer do século XXI. Embora o Iluminismo tenha ocorrido no século XVIII, como rescaldo do Renascimento, este do século XVI, os efeitos dessa revolução perduram até hoje.

   A razão venceu. Por isso, dizer que Deus fala soa pueril. Afeito mesmo a essas histórias de serpentes que falam. Mitos, no mínimo, literariamente assim classificados. Ainda que essa história tivesse algum crédito, fora da mera especulação de gênero literário, ora, como Deus fala?

    Com quem fala? Como autenticar Sua fala? Critérios filosóficos? Teológicos? Jurídicos? Místicos? As Escrituras sugerem uma solução, na introdução da carta (anônima) aos Hebreus:

   "Havendo Deus falado muitas vezes e de muitas maneiras aos pais, pelos profetas, nestes últimos dias nos falou pelo Filho, a quem constituiu herdeiro de todas as coisas e por meio de quem fez o universo."

   Para as Escrituras, basta afirmar isto. Porém daqui para adiante e para fora, inicia-se outra jornada. E mantida está, incorporada à nossa experiência, a síndrome da serpente:

   Foi isso mesmo que Deus disse, se é que diz alguma coisa. Se diz, nem ligue, faça de conta que não diz ou, então, contrarie. E não se preocupe: existindo ou não existindo, seja deus você mesmo. 

sábado, 24 de junho de 2023

A lógica e a fé

"Vendo a mulher que a árvore era boa para se comer, agradável aos olhos e árvore desejável para dar entendimento, tomou-lhe do fruto e comeu e deu também ao marido, e ele comeu", Gn 3,6

   Não era. Frontalmente contra a lógica, na abordagem da mulher. Portanto, deduz-se: agir contra a recomendação divina, é violência à lógica. É irracional.

   Se o texto diz, "Vendo a mulher", então o que pensava ver era ilusão e não deveria ter sido levado em conta, assimilado.

   Sem que seja necessário pressupor fragilidade nela, mas sagacidade na serpente, talvez, ao contrário, visava-se a mulher para que, pela inteligência dela, o homem também fosse iludido.

   A árvore não ser boa, não se trata da depreciação do fruto, o que é indiferente, cada fruto tem seu gosto. A questão residia na ordem dada por Deus. Não era ingerir ou não ingerir, mas obedecer.

   A lógica é ouvir a palavra de Deus, atender e cumprir. O ser humano detesta obedecer, ao menos a sugestão de que se pratique isso.

    Pois o inverso caminha contra a lógica, afronta-a, subverte-a. Exatamente o contrário do que fez a mulher. Portanto, a lógica está muito mais afeita à fé, ao contrário do pressuposto.

   Ora, vivemos no século da lógica. Aliás, desde o chamado Renascimento, incrementado e imbutido nele, o 'século das luzes', a elite pensante da humanidade -- e como aprecia ser assim reconhecida --, pretendem que consigo cativam toda a lógica.

     E subscrevendo a fé à lógica, subverteram aquela. Como diz Paulo Apóstolo, reduziram a imagem de Deus à sua própria, do homem, imagem. Até nisso erram.

   Não carecia. É subversão. E Deus, surpreendentemente criativo, como comenta, desta vez, Pedro Apóstolo, nem ao menos previam, fossem os profetas, ou até mesmo anjos, Deus surpreendeu todos fazendo-se homem.

   O Verbo se fez carne. A palavra, toda obediência, toda fidelidade, toda santidade, encarnou. Nem a lógica e nem a fé subvertidas, porém parelhas. A fé não subverte a lógica.

    Subverter a lógica é distorcer a palavra de Deus. Não foi assim que Deus disse? Não. Não foi assim que Deus disse. A árvore não é boa para se comer, nem agradável aos olhos e nem desejável para dar entendimento.

   Como, quanto e em que grau foi influenciável o gnosticismo. Porque anulava a necessidade da fé e inchava a pretensão humana de conhecer sem limite. Quando distorcida, muito vulgar essa pretensão.

    Pois sempre se quis saber mais do que Deus, aliás, desde o Éden, porque no versículo anterior ao texto acima, o argumento da serpente foi dizer que o casal, a partir de então, "como Deus, seriam conhecedores".

   A lógica vai de encontro ao caráter do ser humano. Distingam, por favor, "ir ao encontro" de "ir de encontro". Formule-se, então: fé vai ao encontro da lógica. Pecado vai de encontro à lógica.

   Obedecer à palavra de Deus está mais associado à lógica, porque constrói o caráter do ser humano. Crer em Deus sempre esteve mais próximo da formação do caráter e da proximidade com a palavra de Deus.

   Vale mais crer, obedecendo, e isto está associado ao amor, mais do que saber que parentesco temos com os neanderthalensis ou em que etapa os dinossauros entram na cronologia da evolução.

   O presente século é carente de amor. Carente de crer na palavra de Deus, para aprender a obedecer. Porque a lógica, mais ligada à fé do que se supõe, é aliada na formação do caráter humano. Porque a vontade de Deus, sim, é "boa, agradável e perfeita".

   O  Verbo, que se fez carne, Deus encarnado em Jesus Cristo, este "aprendeu a obedecer pelas coisas que sofreu", assim como afirmou:

     "Se guardardes os meus mandamentos, permanecereis no meu amor, assim como também eu tenho guardado os mandamentos de meu Pai e no seu amor permaneço." Jo 15,10.

   Jesus aprendeu o amor, por meio de sua obediência ao Pai. O Verbo de Deus é modelo de obediência. Paulo expressa esse esvaziamento do Pai, na pessoa do Filho, sendo "obediente até a morte" -- e morte de cruz.

    E é também Paulo Apóstolo que, na  sua carta aos Efésios, confronta amor e conhecimento. O amor de Deus excede todo o conhecimento, mas experimentá-lo é ser "tomado de toda a plenitude de Deus".

   A repreensão de Jesus, posteriormente, à igreja de Éfeso, no Apocalipse de João, denuncia o abandono do "primeiro amor", que significa dizer genuíno amor. E Éfeso foi uma cidade primor em inchar-se de orgulho vazio. Parece que a igreja, de novo contra uma recomendação paulina, havia incorporado para si essa vaidade.

    Esse o caminho da lógica nas Escrituras. De modo nenhum confronta a fé. Pô-las em confronto é, pelo menos, um erro metodológico.

quinta-feira, 22 de junho de 2023

Esquina do(da) Esperança

   As duas avós se encontram nesta foto. Uma mais compenetrada, blusa e saia claras, canta meio séria, a outra, ao microfone, é toda contentamento.

   Hoje estivemos nesse local. Mas essas duas avós faltaram: estão juntas, no céu. Luzia, chamada quinta-feira passada, seu primeiro culto no céu, no dia do aniversário do Acre, o qual tanto amou e pelo qual sempre orou. 

   Para quem acredita, não nelas, somente, mas na Bíblia, principalmente, livro que elas não largavam. E no testemunho que sempre transmitiram, estão, sim, em casa. Porque terminaram aqui seu ministério. "Na casa de meu Pai há muitas moradas, vou preparar-vos lugar". Jesus. 

   Porque elas, sim, sempre acreditaram e pregaram todo o tempo essa fé. Luzia, como Dorcas, fazia anotações. Aquela, por quantas famílias orava, esta outra, quantos sermões pregasse.

   Luzia nasceu para os lados de Brasileia, na colônia Nazaré, filha de Erundina Santana e Sabino. Quem conta é seu primo Levi. Ele, a partir de 5 anos, e o irmão menor, por volta do 1,5 ano, foram criados por ela, pois perderam sua mãe.

   Mais tarde, quando ela já residia em Rio Branco, com o marido Biloia Morais, Levi, agora com cerca de 16 anos, novamente veio morar com eles. Era na Rua Rio Grande do Sul, a maior da cidade, beirando o rio, seguindo das cercanias da UFAC Centro, onde está o Colégio de Aplicação, até alcançar a Baixada da Sobral.

    Mas as barrancas do rio Acre a reclamaram de volta, e a rua desabou em dois pontos. Os moradores, então, foram deslocados para um bairro recém-criado e de nome inspirador para eles, o Esperança.

   E é lá que na foto encontramos as avós. A irmã Luzia inciou seus cultos em janeiro de 1993, no mês em que casei, lá no Rio de Janeiro. Ainda não sabia que viria para o Acre, dois janeiros adiante, em 1995.

   E o primeiro casal que visitei na cidade, em 12 de outubro de 1993, no bairro onde hoje resido, desde 2002, foi o casal Joaquim e Ligia, esta a filha de d. Luzia, irmã de Odinei e Amarildo.

   Caminhamos, Regina e eu, ela buchuda de 3 meses, de Isaac, desde o PS, pela Nações Unidas, até o bairro Estação, de onde se desce em direção ao Manoel Julião. Ali conheci o casal e as crianças, 30 anos mais novas, em relação a hoje, Isabel e João Marcos.

   Este já lhes deu uma neta, Isabela que, como a tia Isabel e eu mesmo, aniversariamos em 6 de maio. Vitória, a caçula, hoje presente no culto, nessa época nem era nascida.

   A irmã Luzia era firme nas orações. Levi, esse primo que por ela, a vida toda, foi abrigado em família, sempre que por ali passava, oravam juntos. Saudavam-se um ao outro, com alegria, e punham-se a orar juntos. A casa era um ponto de esperança no Esperança. Para todos. Para qualquer um.

   O irmão caçula de Luzia, Geminiano, é pastor em Goiás. Aliás, assista ao vídeo de seu testemunho, lá ao final deste texto. Ele e Luzia não  cessavam de se falar. Numa carta carinhosa, como sempre são todas, assim se expressa, escrevendo com sua 'letra de forma':

    "GOIÂNIA, 2/2/2017, 5ª FEIRA.
OLÁ, MANA! TE AMO MUITO, TÁ? VOCÊ FOI, É E SEMPRE SERÁ MUITO IMPORTANTE NA MINHA VIDA, APESAR DA DISTÂNCIA GEOGRÁFICA QUE NOS SEPARA. ESTAMOS SEMPRE JUNTINHOS PELOS LAÇOS SANGUÍNEOS E PELOS LAÇOS ESPIRITUAIS. GRAÇA E PAZ! SALMO 133:1"

    "Como é bom e agradável viverem unidos os irmãos". Sim, muito unidos esses irmãos. Há uma coleção dessas cartas. Geminiano sonhava em ter sua irmã perto dele. Mas essas duas avós tinham mais essa virtude em comum.

   Qual era? Nunca se afastariam de seu recanto, fosse sua casa, fosse sua congregação. Igreja, com tudo o que lhe diz respeito, era o ambiente delas. Fazia gosto de ver. E queriam trazer mais gente, cada vez mais gente, para a igreja. Igual Jesus.

    Hoje um grupo grande de gente esteve presente. Pelas fotos, veja abaixo, a gente percebe. Três pastores, Nelson Rosa, que ajudava, sempre que podia ou era convidado, nesse culto das quintas-feiras, eu e Amoroso José Bento, um arquivo vivo de memórias, feijoense das beiradas do Envira.

    Hora certa para começar, hora certa para se encerrar. Sem cansar os assistentes. Muita gente da vizinhança, pessoas de várias igrejas, a irmã Luzia era assim sociável. Até a meninada da escola em frente de sua casa sabia a hora de beber sua água geladinha.

    Ligia divertiu-se com a mãe, ao saber que o garrafão extra de água era para a emergência de atendimento aos alunos. Até o gari sabia a hora certa que recolher os sacos, quando ela não perdia a chance de demonstrar toda a simpatia. E nunca deixar de anunciar Jesus.

   Uma das avós, de março a junho de 2016, também esteve no hospital, lá no Rio de Janeiro, passando por UTI, cirurgia e enfermaria. Esta, também de março a junho deste ano, em Rio Branco, enfrentou a mesma barra.

    E o Senhor as tomou para Si. Por isso, por tanto e por tudo seja bendito o nome do Senhor. As avós que gostavam de cultos, de hinos, de Bíblia, de gente de igreja, de falar de Jesus a outros tantos, agora estão cara a cara com Ele, como sempre prometeu, e como elas, que creram nessa fé de que sempre tetemunharam.

    Eu até ia esquecendo de dizer que Luzia era viúva de Alonso. Procure o texto sobre ele aqui no blog, no link abaixo das fotos. A outra avó era minha mãe, também evangelizadora, junto com meu pai. Agora, todos juntos, como sempre proclamaram ser real. Essa a fé, santíssima, de uma vez por todas a nós entregue.

    Luzia acolheu e dela fez uma constante festa, repartindo por todo o canto, principalmente naquela casinha de esquina, de um bairro de tão sugestivo nome.

    Porque nela a boa nova do evangelho sempre foi proclamada. A casa de Luzia sempre foi um lugar de Esperança. 




Dia de culto em memória 
e ações de graça.



Aqui, ao fundo à esquerda, o primo Levi, ao lado dele, o Pr Amoroso e, acima, pastores Cid Mauro e mais acima Nelson Rosa.


A filha Lígia ora, em gratidão, pelas ajudadoras na internação de sua mãe. Ao fundo, à esquerda, a filha Vitória e Joaquim, genro da irmã Luzia.

Memórias de seu Alonso, esposo de Luzia:

 (Leia e clique na setinha, parte inferior da página do blog, para ler a continuação em mais dois textos):


Vídeo do Pr Geminiano, irmão de d. Luzia, testemunhando a fé deles dois:

terça-feira, 20 de junho de 2023

O bisavô de Noé

    Enoque, segundo consta no Livro da Genealogia de Adão, andou com Deus. Por mais filosófico que se queira ser, andar com Deus significa, no mínimo, notável intimidade.

  Troca constante de confidências, prazer de estar e ouvir juntos, um ao outro, privar das mútuas influências, por mais que se fique a imaginar o que Deus possa esperar, para Si, de uma relação como essa.

   Talvez a resposta seja que, para um Ser que Se revela todo amor, espera, sim, obter retorno. Uma pista disso é o Filho. Muito se pode saber, a respeito de um pai, pondo-se atenção no filho.

   Principalmente sondando, no Filho, aquilo que viu  herdou e reproduz de Sua vivência com o Pai. Em um de seus depoimentos, o Filho recomendou a prática desse mesmo amor, dizendo tê-lo aprendido com o Pai.

   "Se vocês obedecerem aos meus mandamentos, permanecerão no meu amor, assim como tenho obedecido aos mandamentos de meu Pai e em seu amor permaneço", Jo 15,10, ditas textualmente.

    Quando no Livro da Genealogia de Adão está anotado que Noé, bisneto de Enoque, andou com Deus, sem dúvida herança de fé. Pouco de diz sobre o bisavô de Noé, avô de Lameque, este o pai de Noé.

   Nem sei se precisa maior detalhe. Dizer andar com Deus é, ao mesmo tempo, suficientemente abrangente e suficientemente detalhado. Porque se não for fake, não se precisa dizer mais e nem menos. Apenas dizer e notar que seja autêntico.

   E Paulo, nessa mesma linha, escreve sobre andar no Espírito. Ora, por similitude de identidade, dá no mesmo. Talvez  nessa antiguidade longínqua, expressa no Livro da Genealogia, andar com Deus se configurasse ainda mais íntimo.

    Porque o Filho, no horizonte dessa relação, era só uma promessa, e que promessa. E o Espírito tinha uma ação, por assim dizer, velada, misteriosa. Por isso o sintoma do fim dos tempos é o derramamento do Espírito, o transbordamento do desejo dessa relação.

   E a franca e explícita encarnação do Verbo. Bastantes para o estímulo a se conhecer, mais e mais, a  Pessoa de Deus, que não se cansa de revelar-se, procurando com quem e como andar. Desde o deserto, quando escolheu acampar com seu povo.

   Ainda antes, quando desceu ao Egito, para vivenciar seu cativeiro: "Disse ainda o Senhor: Certamente, vi a aflição so meu povo, que está no Egito, e ouvi o seu clamor por causa dos seus exatores. Conheço-lhe o sofrimento".

   Como nos dias de Lameque, com tanto sofrimento, com tanta maldade se multiplicando no mundo, sendo continuamente mal o desígnio do coração humano, chegou a Noé a fé de seu bisavô Enoque.

    E ele aprendeu a andar com Deus. Aprendamos a andar com Deus. Para enfrentar com esperança tanto sofrimento.

segunda-feira, 19 de junho de 2023

Azedume de Lameque e a depressão de Deus

 Aos 182 anos, Lameque gerou um filho. Deu-lhe o nome de Noé e disse: "Ele nos aliviará do nosso trabalho e do sofrimento de nos­sas mãos, causados pela terra que o Senhor amaldiçoou", Gn 5,28-29.

    Uma das maneiras de entender, proporcionalmente, essas idades da gente dessa era, é dividir por 10. Então, Lameque, quando nasceu Noé, tinha seus 18 anos.

   Bem novo para ser pai. Duas coisas deduzimos de sua breve fala, preservada nessa lista genealógica, deveras econômica em seus comentários.

   Ele punha expectativas no filho, porém tremendamente consciente de que viviam uma época muito difícil. O jovem pai chega a diagnosticar, como reflexo de seu tempo, que somente poderia ser maldição divina.

    Talvez Lameque exagerasse nessa sua avaliação. Mas não estava longe da verdade. Nem analisando seus dias, nem quando projetou que seu filho, em sua existência, seria um diferencial entre os demais.

    Porque logo a seguir, na parte seguinte da história, o que Deus avalia e constata é que a maldade só se multiplicava e que o coração do homem (e da mulher) era continuamente mal.

    Ler que Deus diminuiu os dias dos homens e das mulheres, que bloqueou uma ação mais franca do Espírito neles, que se arrependeu de os haver criado e que isso pesou-Lhe no coração, falta somente anotar que isso foi uma depressão de Deus.

   Olhar à volta e ver toda a maldade humana, em seu requinte, quantidade, frieza, impunidade, detalhe e cinismo, foi pouco Lameque deduzir que só pode ser maldição divina. Idêntico aos dias de hoje, como Jesus indica em Mt 24,36-39.

   Lameque resvalou. Tiago diz que Deus não pode ser tentado pelo mal. Lá adiante, com toda a traição, idolatria e prostituição, não de estranhos, mas de Israel, o povo escolhido, Deus diz que não é homem, para se irar tresloucadamente.

   Vai amarrar a si Seu povo com cordas humanas, cordas de amor. E quanto à maldição, Paulo esclarece que o Pai tornou seu amantíssimo Filho maldição, para resgatar todo o planeta de debaixo da maldição.

    Um a um aquele, todo aquele e aquela que crer. Somente Deus tem o antídoto para a maldade humana. Mas esse remédio passa pela morte e ressurreição do Filho, se e somente se nEle, em Jesus, batizados, pelo Espírito Santo, na Sua, do Filho, morte e ressurreição.

   Deus derramou o Espírito Santo. Deus derrama amor no coração de todo o que crer. Noé foi pregador da justiça, esta que vem pela fé no nome de Jesus. O menino, filho de Lameque, encontrou graça diante de Deus.

    Foi íntegro todo o tempo. E, como Enoque, aprendeu a andar com Deus. Nessa terra, não que Deus a tenha amaldiçoado, mas debaixo da maldição que se coloca o homem e a mulher sem Deus, o Filho se fez maldição, para que a benção da justificação pela fé alcançasse quem e qualquer que crer.

    Deus disse haja luz. E a sombra que turvou a beleza da criação, tornando manchas homem e mulher, originalmente poemas de Deus, essa história se renova e se mostra, de novo, bela. Como foi a criação que, desde recém-nascido, Noé recebeu de seus pais.

    Como foi bela a opção e a biografia de Noé. Como é belo andar com Deus. 

domingo, 11 de junho de 2023

Absurdo

"Por essa razão, ajoelho-me diante do Pai, do qual recebe o nome toda a família nos céus e na terra. Oro para que, com as suas gloriosas riquezas, ele os fortaleça no íntimo do seu ser com poder, por meio do seu Espírito, para que Cristo habite no coração de vocês mediante a fé; e oro para que, estando arraigados e alicerçados em amor, vocês possam, juntamente com todos os santos, compreender a largura, o comprimento, a altura e a profundidade, e conhecer o amor de Cristo que excede todo conhecimento, para que vocês sejam cheios de toda a plenitude de Deus. Àquele que é capaz de fazer infinitamente mais do que tudo o que pedimos ou pensamos, de acordo com o seu poder que atua em nós, a ele seja a glória na igreja e em Cristo Jesus, por todas as gerações, para todo o sempre! Amém!" Ef 3,14-21.

   Paulo define, para os efésios, neste trecho de sua carta, o que poderia ser classificado como o absurdo da fé. Porque supõe ser possível ao que crê ser, em suas próprias palavras, "cheio de toda a plenitude de Deus".

   O detalhe da menção do apóstolo é ter escrito não apenas "cheio da plenitude", mas acrescenta "toda": "cheio de toda a plenitude de Deus". E seria lógico para o ser humano escolher que plenitude de Deus escolher.

   Mas aqui Paulo se refere ao amor. É pleno de amor que devemos ser. Assim Deus espera. E nela oração o apóstolo indica o modo de acesso. Começamos dizendo que não há nenhuma outra modalidade de acesso.

   E tão sensível e vital, na vida do crente e da igreja que, posteriormente, na carta a Éfeso, no Apocalipse, Jesus cobra de Éfeso a perda do amor. Indica como única solução retonar a essa vivência.

   E o vocabulário usado é como se fosse uma (re)conversão: "Lembre-se de onde caiu! Arrependa-se e pratique as obras que praticava no princípio", Ap 2,5a. E caso não retornasse, quem sabe o que seria "mover do lugar" o candelabro, que se refere à igreja.

   Em prirmeiro lugar, Paulo se põe de joelhos e ora. Oração equivale a falar com Deus, em resposta à palavra de Deus. As Escrituras afirmam que Deus fala, nós afirmamos que ela é a palavra de Deus e, como resposta, a oração é nossa resposta a Deus.

   Esaa oração de Paulo se dirige a "toda a família de Deus sobre a terra". Em Ef 2, ele afirma essa nova condição dos salvos e do sentido de ser igreja: "Portanto, vocês já não são estrangeiros nem forasteiros, mas concidadãos dos santos e membros da família de Deus".

   Portanto trata-se de uma oração que revela um traço permanente, para toda a família, para todas as igrejas, para todos os salvos. Não se trata de possuir as Escrituras ou as promessas de Deus, mas de demonstrar como são dádivas de Deus a fé.

    A oração de Paulo demonstra esse caminho para a plenitude de Deus. Assim como é necessário ler 1 Jo 4,7-21, a fim de que se conheça a natureza desse amor, como nos chega por meio de Jesus e como se torna a marca distintiva de ser cristão.

    A Trindade opera naquele que crê. Por meio do Espírito, Cristo habita e é formado em nós, Paulo indica isso em outra carta da prisão, em Cl 1,27-28: "A ele quis Deus dar a conhecer entre os gentios a gloriosa riqueza deste mistério, que é Cristo em vocês, a esperança da glória. Nós o proclamamos, advertindo e ensinando a cada um com toda a sabedoria, para que apresentemos todo homem perfeito em Cristo."

    Paulo indica amor como alicerce. E pede que sejam compreendidas as dimensões de Deus, quando menciona quatro delas, exatamente para indicar que não ha limites, seja para compreender o amor "que excede todo o entendimento", assim como caminhar com Deus dentro desses limites não tem limites.

quinta-feira, 8 de junho de 2023

Notáveis

"Quanto aos fiéis que há na terra, eles é que são os notáveis em quem está todo o meu prazer." Salmo 16,3.

    O salmista refere-se aos santos que há na terra como notáveis. Algumas indagações decorrem. Que santos? Notáveis, em que sentido? Todos, por igual o são, ou há exceções?

   Santidade é um atributo divino. Certo, entre os comunicáveis, quer dizer, que Deus compartilha. Pois há os que são exclusivos da identidade divina. Somente compartilhados como Trindade.

   Logo, a primeira dedução é que santos são aqueles a quem Deus santifica. Ora, por isso mesmo, notáveis. Dignos de nota, de ser apreciados e distinguidos.

  Evidentemente, na medida e proporção de sua semelhança com o Altíssimo. Essa afirmação do salmista não é generalizante. Explica-se. Nem todos são santos. Nem todos os santos são notáveis.

  Se Deus comunica santidade, necessariamente é por meio de um único mediador, o Filho. Por meio do sacrifício do Filho, zerada foi a dívida de pecado e, por meio do Espírito Santo, artesanalmente, a cada santo notável é imputada santidade.

   Mas não há, em absoluto, em nenhum deles (ou delas) santidade plena, pois somente em Deus, no Filho e no Espírito Santo. A que é imputada aos santos não torna nenhum deles absolutamente santos.

   Então, o que há de notável neles? Os traços da ação de Deus em suas vidas. O que refletem dessa ação no seu proceder. As Escrituras desfilam um rol de santos.

   Mas há quem não deixe de ser categorizado como santo, porque nele Deus opera, mas não se permitem livre agir de Deus em suas vidas. Há certas vontades de que são cativos, nem sempre e nem todo o tempo vontade de Deus.

   Pode-se citar exemplos. Há nas Escrituras santos notáveis. Cabe aqui a advertência que esses santos de que aqui se fala não são os ícones, inadvertidamente, postos em altares ou plataformas elevadas. Não. São humanos de quem vale a pena imitar seus feitos.

   Pois então, há nas Escrituras santos de que, todo o tempo, são exemplos, até de quando erram e se arrependem, mas há quem não possa, todo o tempo, ser exemplo a seguir.

   Davi, enaltecido entre os reis de Israel, foi exemplo em sua juventude, de coragem e proporção de fé. Até quando acuado por inimigos, que não eram para sê-lo, como quando poupou a vida de Saul.

   Mas não o tomem como modelo de casamento, criação de filhos ou relacionamento conjugal. Chegou a constituir um harém, mal exemplo herdado pelo filho que o sucedeu, Salomão, que sabiamente pediu sabedoria a Deus, mas não foi sábio todo o tempo.

   Sim. Os santos são notáveis. Há santos notáveis. Mas há quem nem santo, ainda, seja. Porque lhe falta o essencial, que é a conversão ao Senhor. E vão, como dizia meu pai, pela vida em fora, converter-se, para ser santos a cada passo.

    Sejamos notáveis entre os santos que há na terra. Permitindo que Deus haja em nossa vida. De modo a que apareçam em nós os resultados dessa ação. 

segunda-feira, 5 de junho de 2023

Alguém assim

  E Deus chama Isaías. Mania do Altíssimo de chamar tantos. Aliás, chamar todos. A conversa com Caim foi um chamado.

  Do mesmo modo que, consta, na viração do dia, como está lá no Gênesis, do último dia no paraíso do Éden, ele procurou o casal.

  Imagino essa gana de Deus por chamar o homem e a mulher. Sim, claro, fê-los a Sua imagem, "à imagem de Deus os criou, homem e mulher os criou".

   Mas homem e mulher se tornaram manchas, como diz Moisés em seu poema: "Já não são seus filhos, e sim suas manchas". Pouco ou nada restou dessa semelhança.

   Progressivamente perdida. Determinantemente depravada. Por isso Deus chama. Agora é Isaías que afirma: "Vinde e arrazoemos, diz o Senhor; ainda que os vossos pecados sejam como escarlata ou carmesim, se tornarão como a neve ou como a lã".

    Que assunto pode Deus querer com o homem? Romântica visão. Ora, não se deve menosprezar o estrago feito pelo pecado no ser humano.

   Só pra começo, exatamente, deixa de ser humano. Agora é Davi que ajuda, quando alude, em seu salmo, que "um abismo chama a outro abismo". Somente sendo muito hipócrita para não se reconhecer isso no ser humano.

   Seguido de todo o cinismo. Do não reconhecimento disso. João, no seu Evangelho, indica o grau de necessidade de que uma Pessoa da Trindade é que convença o ser humano de seu pecado.

     Não por refinamento de expediente. Não. Ao contrário. É pelo apego do ser humano a essa condição. Pervertidamente apegado.

    Mas exatamente o Espírito Santo. Bem, não seria outra melhor designação. Difícil acreditar que, de outro modo, alguém se converteria.

   Pensar no interesse de Deus em chamar qualquer um, chamar todos, para arrazoar. E sobre pecado. Pensar que haja interesse do Altíssimo pela condição humana pós-queda.

    Porque quando imaginamos, e só imaginamos, por causa da sublimidade da Pessoa, que Deus, nem por avaliarmos que seja Sua obrigação, por força do ofício, salvar do pecado, mas pessoa a pessoa, Ele tem interesse.

  Compartilha com ela, pacientemente, misericordiosamente, condescendentemente Ele se debruça e busca diálogo, afeição, proximidade. É Seu feitio.

   E se fez homem. Nada mais perto. E ainda mais perto, deu-se a Si mesmo em sacrifício. E pelo pecado. Ainda mais, batiza nEle quem crer. Do mesmo modo como Se deu, aceita nossa entrega.

   A isso Ele, e somente Ele, chama amor. João enxergou e sintetizou: Deus é amor. E um poeta qualquer desses nossos assim se expressou: "amar alguém assim como eu". 

Por amor - Grupo Elo: