terça-feira, 27 de abril de 2021

Senão, somente

 

“Então, lhes falou Jesus: Em verdade, em verdade vos digo que o Filho nada pode fazer de si mesmo, senão somente aquilo que vir fazer o Pai; porque tudo o que este fizer, o Filho também semelhantemente o faz". João 5,19.

    Esta afirmação de Jesus expressa o padrão da relação entre pai e filho. No caso, trata-se da relação entre Pai, Deus, e seu Filho, Jesus Cristo. Mas esta não é um fim em si mesma. Deus deseja compartilhar com toda a humanidade. E, para isso, três aspectos se tornam fundamentais para que esse compartilhamento ocorra.

    O primeiro é que somente filhos de Deus podem pôr em pratica a realidade dessa afirmação, qual seja, “o Filho nada pode fazer de si mesmo, senão somente aquilo que vir fazer o Pai”. João em seu evangelho afirma, com relação a Jesus: “Veio para o que era seu, e os seus não o receberam. Mas, a todos quantos o receberam, deu-lhes o poder de serem feitos filhos de Deus, a saber, aos que creem no seu nome; os quais não nasceram do sangue, nem da vontade da carne, nem da vontade do homem, mas de Deus. João 1,11-13.

Portanto, o que o autor de Hebreus destaca que Deus afirmou, com relação a Jesus, “Tu és meu Filho, eu hoje te gerei? E outra vez: Eu lhe serei Pai, e ele me será Filho? Hebreus 1:5, aplica-se a cada um que receber Jesus como salvador. Vai ouvir de Deus: “tu és meu filho, eu hoje te gerei”. Esse tipo de pessoa, na sua nova relação de filho, com o Pai, vai poder, como Jesus, reproduzir em sua vida, o “Filho nada pode fazer de si mesmo, senão somente aquilo que vir fazer o Pai”.

O segundo aspecto consiste no aprendizado do Filho em relação ao Pai. O mesmo autor de Hebreus destaca que Jesus aprendeu a obedecer. Pois então Jesus, na sua relação com o Pai, também é exemplo de aprendizado para nós: “...embora sendo Filho, aprendeu a obediência pelas coisas que sofreu e, tendo sido aperfeiçoado, tornou-se o Autor da salvação eterna para todos os que lhe obedecem”. Hebreus 5,8-9.

E Jesus também se constitui em exemplo e modelo de aprendizado do amor, porque amor e obediência são indissociáveis. A afirmação de que Jesus aprendeu, com o Pai, a amar, foi feita por ele mesmo: "Se guardardes os meus mandamentos, permanecereis no meu amor; assim como também eu tenho guardado os mandamentos de meu Pai e no seu amor permaneço". João 15,10.

Como filhos de Deus, precisamos aprender com o Pai o seu amor, desse modo experimentando todas as bênçãos da obediência. Na sociedade em que vivemos, além de não se compreender o que significa amor, ou não vincular a Deus sua origem, outro fator francamente rejeitado, infelizmente até entre muitos que se professam “crentes”, é a obediência. O amor é descaracterizado pela falta do compromisso que lhe é essencial e a obediência encarada como contrariedade, imposição e perda da liberdade. 

O terceiro aspecto consiste no fato de que essa relação é o fundamento da família, conforme Deus a concebeu. A cultura de nosso tempo tem afirmado haver vários outros modelos de família. Pois o modelo bíblico é do casamento heterossexual, monogâmico e indissolúvel. Porque com respeito à criação, a Bíblia afirma: “Criou Deus, pois, o homem à sua imagem, à imagem de Deus o criou; homem e mulher os criou”. Gênesis 1,27. Assim como afirma: “Por isso, deixa o homem pai e mãe e se une à sua mulher, tornando-se os dois uma só carne”. Gênesis 2,24.

Tudo o que a Bíblia afirma é voluntário. Ninguém será obrigado, nem por Deus, a fazer o que nela consta como padrão. Pois o modelo bíblico de casamento é voluntário. Ninguém é obrigado a reproduzir. Se o fizer, será precipuamente por amor e obediência, que são duas coisas, diante de Deus, voluntárias. Quando Jesus afirma que “... o Filho nada pode fazer de si mesmo, senão somente aquilo que vir fazer o Pai; porque tudo o que este fizer, o Filho também semelhantemente o faz”, não o diz apenas para a relação entre o pai e filho, ou seja, entre os homens da família. Mas também em relação à mulher, como mãe, em relação aos filhos de ambos os sexos.

No modelo bíblico, homem e mulher são criados ambos à imagem e semelhança de Deus, do mesmo modo, em igualdade diante de Deus. Por isso, no modelo bíblico de família, pai e mãe servem como modelo de amor e obediência, prontos a ser exemplos para os filhos e filhas. Portanto, a firmação de Jesus constitui-se em modelo de relação também no contexto da família.

“O Filho nada pode fazer de si mesmo, senão somente aquilo que vir fazer o Pai” é modelo que se aplica aos filhos que, em Cristo, Deus gerar por meio da fé. Constitui-se no permanente modelo de aprendizado do amor do Pai, em obediência, do modo como Jesus Cristo foi padrão. E se estende à relação dentro da família, não somente tendo o homem como modelo, mas do mesmo modo a mulher, na comunhão do “ser uma só carne”, incluindo a mulher, na mesma relação abençoada com Deus, com seu esposo e com seus filhos.

 

 

sábado, 24 de abril de 2021

No morro de d. Diná

 No caso de Jesus, Maria, mãe dos rapazes, Tiago e João, não obteve sua reivindicação, de dois ajudadores, um à direita e outro à esquerda.

Mas em Copacabana eu tive duas ajudadoras, uma à direita e outra à esquerda. E o ministério que desenvolvemos foi em tudo muito interessante e inusitado.

Simone e Rita, por ordem de idade (e tamanho) conheciam uma amiga que residia num dos morros do Rio de Janeiro. Novamente, razões de privacidade, vamos mudar os nomes. Era Diná, no morro da Corujinha. Essa amiga delas era pessoa influente, como liderança, e residia num lugar estratégico.

Interessou-se por estudarmos juntos a Bíblia. Ficou decidido que dia tal, a tal hora eu estaria sempre lá para estudarmos juntos. O acesso era por uma ladeira curva, de paralelepípedos, e eu poderia deixar o carro até aberto, se quisesse, com chave na ignição, era só falar que iria na casa de d. Diná.

Tinha a maior moral com a rapaziada do pedaço. O maior respeito e a maior responsa. Ninguém mexia com ela. Eu chegava e já dizia, vou na casa de Diná, e todas as portas de abriam. Certa vez, foram até me indicar o rumo. Aguentei firme, como dizia meu pai.

Porque eu já sabia. Mas queria era demonstrar atenção, gentileza e gratidão. Parecido com outras comunidades morro acima, subiam-se degraus, acessava-se uma alameda, com entradas de portões e portas a lado e outro, até chegar numa estratégica testa de esquina, a lado e outro, onde ela residia.

A posição tornava a residência como uma guarita, montando guarda na subida, ponta a ponta da alameda, até avistar-se a rua de passagem, lá embaixo. Tão estratégica que, certa vez, minha chegada coincidiu com os carros da polícia civil. Eu subi, normalmente, previamente sabendo ser rotina e que os moradores, por si, já deveriam estar antecipadamente avisados.

Degraus, acesso à alameda, portas de casas e portões lado a lado, foi quando avistei Diná, a meio caminho, conversando com a vizinha da direita. Coincidentememte, eu subia, ela se virou para me cumprimentar e, por cima de meus ombros, avistou "os homi" subindo, ainda com os pés nos degraus de início da alameda.

Ato contínuo, continuando a tagarelar, sorridente, com a vizinha, adiando o meu boa tarde, olhou à esquerda, na mesma direção, mas no sentido oposto ao da vizinha, para os três rostos masculinos que vinham, de dentro para fora, do imóvel defronte ao da vizinha.

Imediatamente, inventou um nome, Verinha, que seja, menina, você não vai hoje ao salão? Os três rostos estatelaram os corpos, onde estavam embutidos, fizeram-se olhares de espanto, olhos arregalados, eu entendi e me mantive em levitação, os olhos arregalados, agora, recuaram os corpos, dando marcha a ré, ao mesmo tempo em que, sem nenhum som, estivessem inquirindo e, ao mesmo tempo, querendo confirmação.

E ela veio, numa forma cifrada, diríamos hoje, pois estamos em 1992, criptografada, pois é, ela me perguntou se você ia, e eu disse que não sabia. Pois é. Olhos, rostos e corpos ganharam o rumo oposto, sobrancelhas arcadas confirmavam ter entendido o recado cifrado, Diná e eu nos entreolhamos, como sabendo que tínhamos de dar uma olhadinha, rumo abaixo, na alameda, como numa postura dissuasória, um despiste.

Assim o fizemos, com a maior naturalidade, demorando o tempo exato, para não despertar desconfianças, assim, como num olhar de paisagem. Os caras que subiam, todos a paisana, mas com mãos no coldres, outros com as automáticas da época apontadas para o chão, não me lembro, varriam com o olhar seu ângulo de visão, à volta, passaram por nossos olhares, nada viram, e nós também ficamos na nossa conversa.

Claro que enxergaram todo o teatro, aliás, em nome deles encetado, sem que eles mesmos soubessem. Boa tarde, boa tarde, ao passarem por nós, despedimo-nos da vizinha, fui apresentado a ela, foi convidada para o estudo bíblico, agradeceu e falou que sim, qualquer hora aparecia, subimos, entramos, trocamos uns trocados de conversa e não se fala mais nisso. Vamos ao estudo: abram suas Bíblia no livro tal, capítulo tal e versículos tais. E "talecoisa" (tal e coisa), como dizia meu avô... Vamos à nossa reunião, que o assunto daquela outra eu nunca soube.

sexta-feira, 23 de abril de 2021

Uma breve história de Lia

 Já disse que a presença da colônia judaica em Copacabana é bastante acentuada. E como foi prazeroso que um número significativo de mulheres desejassem estudar conosco a Bíblia.

Certa vez uma delas perguntou se eu, como pastor evangélico, iria tentar convertê-las. Essa, noutra vez, também foi a pergunta de Hilede. Eu respondi que somente Deus converte. Que nem eu mesmo me havia convertido. Porque se ocorreu, era falso.

Estudamos Jó. Isaías e Jeremias. Trechos escolhidos dos Salmos. E começamos os profetas menores. Eu somente combinei com elas que, quando esbarrássemos num texto do Antigo Testamento que apontava, claramente, para o Messias, eu afirmaria que é Jesus. Assim eu cria e assim testemunharia. Combinado. Não houve reclamações.

Certa vez uma delas, Lia, nome fictício, para preservar a identidade dela, que tinha nome bíblico, procurou-me. Trazia angustiada a sua alma. Nesse dia, por algum motivo, d. Eunice não estava conosco, portanto essa história ficou entre ela, eu e o Altíssimo, haShem, "o Nome", como eles chamam, ou haHolam, "o Eterno". Somente nós três. E nestes dias de hoje, com certeza, somente eu ainda vivo.

Lia trazia um drama que compartilhou comigo. Viviam, ela e seu esposo, por razões religiosas, éticas ou sociais, no contexto de sua cultura, separados fisicamente, mas residindo havia anos, acho que na época ela disse que chegavam quase a 20, no contexto da mesma família, mas em quartos separados.

Naqueles dias o marido, desesperado a procurara, com um problema extremo. E ela passou a descrever. Pastor, a mulher que é pivô de nossa separação contraiu câncer e não tem quem dela cuide. O senhor acredita que meu marido me procurou, pedindo que eu a receba em nossa casa? Eu acreditei.

Lia fez a pergunta que eu já esperava. O que o senhor me diz? O que devo eu responder a ele? Eu disse que não poderia dar nenhuma orientação nesse caso. Que essa era uma escolha dela. Perguntei se ela entendia o meu dilema. Por alguns instantes repassamos juntos o que fora o problema dela, a manutenção das aparências, mormente em relação aos filhos, e agora, diante do inusitado da situação, a decisão a tomar.

Ela afirmou que já tinha uma decisão. Eu havia dito que ela refletisse, que iríamos orar, que mais tarde poderíamos nos econtrar e compartilhar essa mesma situação. Não. Ela havia decidido. Pastor, eu vou ajudar essa mulher. Ore por mim. Posso orar? Ela disse que sim. Então eu disse que teria de orar em nome de Jesus. Ela me disse que poderia ser desse modo.

Eu falara como provocação. Ela afirmou com convicção. Para minha surpresa, Lia ajoelhou-se, muito incomum, senão inconsequente para um judeu. Mas ela acompanhou minha oração ajoelhada. Depois, surpreendentemente, ela orou também. Isso me deixou extasiado.

Levantou-se, despedimo-nos, e acho que nunca mais eu vi Lia. Talvez uma ou duas vezes muito rápido, numa das reuniões do EA. Se assim o foi. Mas  naquela noite, ali no quitinete, levantou-se convicta de que estava fazendo o que era correto. Uma história de amor.

Notáveis

 As pessoas foram chegando. Hoje são como companheiros de jornada, a maioria, talvez, nem mais entre nós. Uma delas eu visitava constantemente em Copacabana, além da própria Eunice Spiller: Hilede Cantanhede. Na última vez que nos encontramos, ela estava com 89 anos.

Numa outra vez, o porteiro nos informou que havia ido morar com o irmão em Cabo Frio. Ela testemunhou a história, quando morava na rua Tonelero, próxima ao túnel Martim Vaz, assim chamado anos depois do assassinato desse major, na tentativa de atingirem Carlos Lacerda, em 1954.

Contava a história do dia em que cruzou com JK nos elevadores de seu prédio, com aquele sorrisão e toda a simpatia. E também de como eram as recepções no casarão da família, em Botafogo, nos dias de sua infância. Ora, assim vamos alcançar pouco depois de 1925. Chegou a falar de histórias de assombração num desses casarões.

Era católica. Autenticamente católica. Mas assídua aos nossos estados bíblicos. Compartilhávamos as diferenças entre os modos de crer e nossa amizade se aprofundava. Conheceu-me solteiro, foi ao meu casamento, conheceu meus filhos, convivendo juntos ela, eu, Eunice e Jassira.

Essas três me foram fiéis escudeiras, a diáconisa congregacional e as duas outras católicas, sem que a amizade não deixasse de ser profunda. Estiveram no Meier, no culto de apresentação do Isaac, no ap de Dorcas. Essas foram as mulheres. Vamos aos homens.

Com Geraldo Spiller conversávamos no ap da Tonelero. D. Eunice havia contratado duas enfermeiras, uma para a semana inteira e outra para os finais de semana, para dar assistência ao esposo. Eu sentava e líamos a Bíblia, ele bastante incomodado com sua imobilidade, devida ao AVC de que foi vítima.

Era regente do coral em São João de Meriti, época áurea da Igreja Evangélica Congregacional naquele município, pastoreada pelo Limeira. Cláudio, seu caçula, ainda solteiro na época, tocava no conjunto recém-criado, ao estilo banda de rock, uma novidade para aqueles anos, herança do boom dos Beatles, na metade final da década anterior.

Eu dizia a ele, meu caro Geraldo, o seu caso em muito é ainda melhor do que o de Jó, porque ele perdeu tudo: filhos, bens e saúde. O Sr perdeu, sim, sua saúde, mas ainda tem recursos, e muito mais, filhos amorosos e esposa dedicada. A custo conseguíamos amainar seu inconformismo.

Urias e Eneias. O personagem bíblico tinha, na época, ora, lá vão mais de 30 anos, a idade que tenho hoje, 63. E queria ser como um garotão com 40 anos menos. Uma figura esse xará do general amigo de Davi, personagem de triste história. Não com esse Urias que conheci. Lutava, como Eneias, com relação às neuroses de que nós três admitimos ser portadores, participando conosco dos estudos bíblicos e do grupo do NA.

Eneias foi primoroso. Além de me ser guia por Copacabana, certo dia me levando a sua própria residência, juntos tínhamos entrada no sistema prisional, na antiga e hoje já implodida penitenciária da Frei Caneca, 1850-2010. Eneias me levou à pastoral católica, apresentando-me ao responsável, que me assinou uma carteira, a qual me franqueva entrada no Complexo Penitenciário.

Nossa assistência era no Anexo, assim nomeado o setor de ex-policiais apenados. Eles ficavam numa unidade deslocada, pela óbvia impossibilidade de os ter misturados aos demais apenados. Até minha entrada deveria ser por outro portão de acesso, que não o principal, evitando que minha caminhada célere, entre todos os demais presidiários, indicasse exatamente o meu rumo, atiçando uma eventual represália.

Raramente essa regra foi seguida. E também nenhuma represália verificada. Enquanto Eneias, no andar de cima do Anexo, aonde certa vez me conduziu, coordenava com os internos um grupo de NA, encerrando a reunião com sua célebre oração da "energia da luz violeta" eu, no térreo, reunia-me com a turma do estudo bíblico, que incluía figuras notáveis, cono Canabarro, de quem somente guardei o sobrenome, e Baleia, de quem somente guardei o apelido.

As mulheres escudeiras, Eunice, Hilede e Jassira, e os homens de parelha, Geraldo, com semi mobilidade, Urias e Eneias cumpriram esse meu grupo núcleo duro das jornadas por Copacabana e pelos ministérios à parte delas derivados.



Nada, senão somente

 Então, lhes falou Jesus: Em verdade, em verdade vos digo que o Filho nada pode fazer de si mesmo, senão somente aquilo que vir fazer o Pai; porque tudo o que este fizer, o Filho também semelhantemente o faz". João 5,19.

A um só tempo, a medida de Pai e Filho. Neste texto, o apóstolo João expressa a medida da relação que se estabelece entre pai e filho. No caso de Deus e Jesus Cristo, é a relação modelo, exatamente por se tratar desse Pai e do seu único Filho.

É natural o filho tomar o pai como referência. Na falta do pai, haverá falta de referencial e alguma providência urgente deverá suprir essa falta crucial.

A expressão de Jesus define, em essência, a natureza da relação entre pai e filho. E no caso da relação entre Deus e Jesus, trata-se do padrão de perfeição para qualquer relação desse tipo, entre qualquer pai e qualquer filho.

Paulo entendeu isso quando, em Ef 5,1 ele escreve: "Sede, pois, imitadores de Deus, como filhos amados". Ef 5,1. E não é possível dissociar esta afirmação da seguinte, continuação deste mesmo texto: "...e andai em amor, como também Cristo nos amou". Ef 5,2.

A relação entre Pai e Filho se pauta pelo amor. Deus ama intensamente. Deus ama intensamente o Filho. Aqui também percebemos a dimensão que o próprio João, em seu evangelho, exprime, quando diz que "Deus amou... de tal maneira". Jo 3.16.

Entendendo assim, vislumbramos, a um só tempo, a natureza do amor do Pai e o custo, para Ele, de dar o seu Filho unigênito como sacrifício pelo pecado. Desse modo Paulo encerra o texto acima, destacando: "... como também Cristo nos amou e se entregou a si mesmo por nós, como oferta e sacrifício a Deus, em aroma suave". Ef 5,2.

Essa relação íntima de amor entre Deus e Jesus, entre Pai e Filho, é modelo para toda a humanidade. É a relação-padrão de definitiva expressão de amor, modelo para qualquer relação entre pai e filho.

Portanto, a responsabilidade de todo pai é aprender, com Deus, a amar. E não pensemos que Jesus foi um homem diferente, que não precisou aprender, porque Jesus é modelo de aprendizado.

O autor de Hebreus deixa isso muito claro: "... embora sendo Filho, aprendeu a obediência pelas coisas que sofreu e, tendo sido aperfeiçoado, tornou-se o Autor da salvação eterna para todos os que lhe obedecem". Hb 5,8-9.

Portanto, não há, como Jesus, filho que tenha imitado o próprio pai, de modo tão absoluto, tendo aprendido e praticado a obediência de modo tão completo. E não foi somente obediência que Jesus aprendeu.

Em seu Evangelho, João deixa claro também que Jesus aprendeu, com o Pai, o seu amor, praticondo-o intensamente e permanentemente: "Se guardardes os meus mandamentos, permanecereis no meu amor; assim como também eu tenho guardado os mandamentos de meu Pai e no seu amor permaneço". João 15,10.

Jesus é o modelo de filho que guarda os mandamentos do Pai. Isso se chama obediência e, no caso de Jesus, o único caso de obediência absoluta. E o principal mandamento do Pai é o amor. Jesus, igual ao Pai, é o único caso de amor absoluto.

"O filho nada pode fazer nada de si mesmo, senão somente aquilo que vir fazer o pai". Precisamos, carecemos dessa fibra de pais, para que haja essa mesma marca igual de filhos. Jesus, durante toda a sua vida, exercitou obediência e amor. Por isso, o autor de Hebreus afirma que ele foi aperfeiçoado para se tornar o nosso Salvador.

Jesus pôde resistir à cruz, quando no momento máximo de crise, tanto para o Filho, quanto para o Pai, a ponto de clamar: "Eloí, Eloí, lamá sabactâni? Que quer dizer: Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste?". Mc15,34.

Amor e obediência, confiança total no Pai e confiança total do Pai no Filho supriram, nessa hora, proporcionando vitória. Obediência ao Pai, confiança no Seu amor e em Sua providência sustentam em todas as horas, principalmente na hora máxima de tribulação.

Mas Jesus também foi exemplo de obediência aos pais humanos. O incidente de seu esquecimento, na jornada de retorno, de Jerusalém à Galileia, exemplifica o modo como o menino assimilava os ensinos da mãe, sobre sua paternidade, e o modo de conviver em relação aos pais terrenos.

Lucas esclarece, nesses dois textos, o primeiro na resposta inteligente de Jesus: "Ele lhes respondeu: Por que me procuráveis? Não sabíeis que me cumpria estar na casa de meu Pai?" Lc 2,49. E o segundo, quando registra a submissão do menino às instruções dos pais humanos: "E desceu com eles para Nazaré; e era-lhes submisso. Sua mãe, porém, guardava todas estas coisas no coração".Lc 2,51.

E como isso contribuiu para o desenvolvimento integral do menino: "E crescia Jesus em sabedoria, estatura e graça, diante de Deus e dos homens".Lc 2,52. A obediência a Deus, o Pai celestial, manifesta-se na objetividade da correspondente e devida obediência aos pais humanos, como ensina o próprio mandamento: "Honra teu pai e tua mãe, para que se prolonguem os teus dias na terra que o Senhor, teu Deus, te dá". Ex 20,12.

Somente Deus pode ensinar obediência que, por si, já é um gesto de amor. Quem ama, obedece. Evidentemente que, quando se trata de pais humanos, pai e mãe, precisam se apresentar como modelo a seus filhos, de modo a que estes possam seguir o padrão da relação: nada fazer de si mesmos, se não somente o que virem fazer os pais.

E o próprio autor de Hebreus, novamente, reafirma que, entre pais humanos e o Pai celestial, há marcante diferença que deve ser reconhecida. "Além disso, tínhamos os nossos pais segundo a carne, que nos corrigiam, e os respeitávamos; não havemos de estar em muito maior submissão ao Pai espiritual e, então, viveremos?". Hb 12,9.

E o modo como somos supridos, pelo socorro de Deus, reconhecendo nossas limitações, e convidados, em amor, a ser participantes da Sua perfeição: "Pois eles nos corrigiam por pouco tempo, segundo melhor lhes parecia; Deus, porém, nos disciplina para aproveitamento, a fim de sermos participantes da sua santidade. Hb 12,10.

Abordando sobre a obediência modelar do filho, em relação ao caráter do pai, não estamos falando exclusivamente de homens. Falamos também de mulheres, porque elas são o contraponto na relação conjugal. Gênesis registra um versículo esquecido ou repetido mecanicamente, sem que se reflita na importância de sua significação.

"Criou Deus, pois, o homem à sua imagem, à imagem de Deus o criou; homem e mulher os criou". Gn 1,27. Homem e mulher são constituídos por Deus à sua imagem e semelhança. A obediência devida ao pai é a mesma devida à mãe, e o compromisso de amor em ser modelo para os filhos é o mesmo, para o pai e para a mãe, exatamente na mesma proporção.

Não existe na Bíblia o modelo de família propagado na sociedade atual, chamado "produção independente", em que se escolhe um(a) reprodutor(a) e o(a) filho(a) é criado(a) por um dos dois. A Bíblia tem um modelo único de família: união heterossexual, monogâmica e indissolúvel.

Basta que um desses três aspectos seja quebrado, para não se tratar do modelo bíblico de casamento e, sim, certamente, uma alteração do padrão, por sua vez devida, exclusivamente, ao expediente humano, fora do padrão bíblico, responsabilidade de quem o praticar e assumir.

A família, segundo o padrão de Deus, é o lugar onde amor e obediência são aprendidos, para que a sociedade disso se beneficie, de modo permanente. Vivemos um tempo de desamor ou falsa identidade do que seja amor. E também um tempo em que a desobediência é tida como virtude.

Quem sabe a igreja possa assumir o desafio de ser exemplo de correção dessa distorção, abrindo a Bíblia para a cumprir e proclamar, porém revestida da autoridade de quem vivencia como padrão em sua própria vida e presença na sociedade. 

Valor

    Quanto vale uma quitinete em Copacabana em 1992? A discussão aqui versa sobre valor. Não apenas o venal, mas também e, principalmente, o valor humano. Este muitas vezes menosprezado e menos prezado.

     Eu me lembro da luz que entrava pela janela da quitinete. Da varanda sobre a rua, era número 102. Lá passavam os carros e os ônibus da Av. N. Sra de Copacabana. Abria-se uma janela ao que era o desafio de ter, numa quitinete em Copacabana, ora vejam só, abrigados todos os sonhos que uma igreja representa.

     Havia um universo ali dentro. Como se a gente quisesse que todo o bairro, com a sua história, coubesse ali dentro. Abrigávamos, no meio de semana, dois grupos, os na época denominados NA - Neuróticos Anôninos, mais tarde autodenominados EA - Emocionais Anônimos.

      E no outro dia da semana a gente se reunia para o estudo bíblico. Estabeleceu-se uma integração entre os dois dias, porque um grupo de mulheres, a princípio seguidas por alguns homens, interessou-se por estudar a Bíblia, especificamente o Antigo Testamento, porque a influência da cultura judaica, ali representada, prevaleceu.

     Havia um grupo de mulheres judias que pediu que estudássemos Jô, os Salmos, alguns profetas, enfim, reuníamos em torno de uma mesinha desarmável, daquelas de bar, próprias para o espaço da quitinete. Ali todos nos abrigávamos e logo se estabeleceu um vínculo entre nós, sempre na expectativa do que a Bíblia podia oferecer.

     Não misturávamos EA com Bíblia, absolutamente. Seguíamos estritamente os 12 passos e as 7 tradições, pelas quais balizávamos nossas reuniões, das quais eu participava, autoassumido um neurótico, evidentemente, em maior ou menor grau. Não podemos aqui veicular o que se conversava ali. Nem nomes e nem assuntos.

     Mas vale a pena falar do grau de enfrentamento dos problemas, da variada natureza deles, da coragem, do esforço em enfrentá-los e do que o conforto recíproco de compartilhá-los ali, naquele círculo, representou. Valor. Mais uma vez aparece aqui o termo. Qual o valor? O valor da vida a gente perde e não avalia. Precisamos de Deus para redescobrir isso.

       Um dia houve uma reunião de três. Eu, Dr Fernando Campelo e d. Eunice Spiller. Eram os dois diáconos e eu. A ideia era a prosposta de d. Eunice de comprarmos a sala. O proprietário propunha. Mas como? D. Eunice falou de seu último quilo de ouro. Havia sete, como reserva de investimento, mas haviam sido usados por razões várias, principalmente para suprir as despesas da fábrica de joias, bijuterias e marcassitas que pertencia à família.

     Eu disse que não. Ela era idosa. Que não poderíamos explorar a oferta dela, visto que havia os filhos. Naquela época, o esposo já havia falecido. Não poderíamos aceitar de uma pessoa de sua idade aquela oferta. Meses depois o assunto retornou. Eu perguntei sobre ela ter falado com os filhos se, como foi combinado, anteriormente, ela os havia consultado.

     Não. Não havia falado. Mas aqui entra o diferencial de d. Eunice, que era o temperamento de seus olhos muito azuis. Não falei e nem vou falar. Porque eles fazem as coisas lá, deles, sem falar comigo ou me pedir opinião: não vou falar nada. Vou fazer por minha conta (e risco). Fizemos. Encetamos uma campanha para 22 mil dólares.

     Entrou o quilo do ouro. Peguei-o no apartamento da Tonelero e, embrulhado num saco de plástico de supermercado, no bolso, levei-o ao dono da sala, por ônibus, ao centro da cidade do Rio de Janeiro. A segunda parte do pagamento a gente conseguiria por campanha, da qual participaram o Dr. Campelo e o Pr. José Remígio Fernandes Braga.

     A quitinete, dentro da qual cabia toda Copacabana, foi arrematada por esse valor. Por que valor. Há todo o valor. Há quem reconheça e há quem não reconheça valor. Só Deus para socorrer nessa hora. Nem bem o valor venal. Mas o valor humano. História de igreja é história de valor humano. Só Deus para socorrer nessa hora. Porque ser humano não dá valor. Só Deus, para resgatar no ser humano e para o ser humano o seu valor. 

Certo dia, Limeira

 Certo dia, irrompeu, subitamente, no apartamento da Magalhães Couto, no Meier, Limeira, para falar sobre Copacabana. Ele era o homem de todos os sonhos.

     Para mim ele representa o homem da foto nas obras do Seminário da Pedra de Guaratiba, na década de 40, retirante nordestino, baiano, que alcança o Rio de Janeiro, e se casa com a amiga de infância de minha mãe, as duas desde três anos de idade, por volta de 1930, nos alicerces da ainda nem inaugurada Igreja Evangélica Congregacional de Nilópolis, templo antigo da Gal Mena Barreto.

    Clovelina de Ávila Limeira, filha de Alina e Clóvis, razão de seu nome. Conheci os dois, na casa num dos morros da antiga Nilópolis, rua ainda sem asfalto, carro não chegava à porta, subia-se a pé. Esse Limeira chegou de surpresa, lá no Méier, num dia luminoso de 1991.

     Como luminosas eram as visões e os sonhos de Limeira. Havia posto a família Castro em Boa Vista, Roraima, onde mais ao norte havia chegado. Sem contar Manaus, onde sua própria filha e o genro, um dia, iriam atuar como obreiros, ela seminarista de minha turma nessa mesma unidade do externato, nos fundos da Igreja Evangélica Fluminense, na Alexandre Mackenzie, 60, a partir de 1978.

    E seu futuro noivo, Nelson Sá, no Instituto Palavra da Vida, em Atibaia, São Paulo, a coqueluche da época, onde também estudaram Levi Castro, um dos filhos da família de desbravadores que Limeira convidou para Boa Vista, hoje pastor há mais de 20 anos missionário na Turquia e agora na Bulgária, e mais tarde Thiago, o filho de Paulo Leite, com quem viemos a Rio Branco, Acre, em 1993. O filho é pastor em Roraima.

     Havia colocado Nelson e Josilene Rosa em Rio Branco, Acre, em 1984, onde estou desde 1995. Num dia de 1991, Limeira foi ao Méier me chamar para cuidar de Copacabana. Luminosa também foi a tarde em que, pela primeira vez, vi as luzes que entraram pela janela do kitchenette da Nossa Senhora de Copacabana.

    Porque na década de 80 deslocou-se, de São João de Meriti, para lá, uma família do que eram chamados, na época, "novos ricos", os Spiller, e Limeira nunca perderia a oportunidade de iniciar ali uma igreja congregacional, espírito raro de desbravador ele tinha. Talvez por causa da sua marca de retirante, como alguém ermo e permanentemente peregrino, Limeira queria estar em todos os lugares.

    Pelo menos me lembro de Roraima, Manaus, Rio Branco, Copacabana, estes dois últimos, onde passei, de 1991 a 1994, e Rio Branco, onde estou, desde 1995. Havia luz e o mesmo incômodo no olhar de Eunice Spiller, a alma do quitinete. Ativa, diligente, incomodada todo o tempo com o muito que havia por fazer naquele bairro todo, era minha guia pelos labirintos das ruas, pelas casas de suas amigas, gente de sua geração, que conhecia nome a nome.

     E me levava a todas essas casas, a todas essas reuniões, queria me ver lendo Bíblia com essas pessoas. Como no dia em que avistei a praia, a partir de uma faixa contínua de vidro, por debaixo da janela do apartamento do filho Paulo, para ela o eterno Paulinho, o filho mais velho, residente num dos prédios da Av. Atlântida. Conheci todo o clã, orando com o patriarca Geraldo Spiller, no apartamento da Tonelero, pelo qual também se avistava a rua, com vista do segundo andar, por uma parede de vidro.

    Cláudio, o caçula, Marli, a cantora lírica. Pouco conheço dos filhos dos filhos e filha, quer dizer, dos netos, desta eu destaco Hugo, ainda tenro na idade, e Joelson, esse o escudeiro constante de Eunice. Ela como um Dom Quixote feminino, a desbravar todo aquele bairro, no seu sonho luminoso, contagiada por Limeira, e seu neto o Sancho Pança grudado com ela todo o tempo.

    Limeira é muito mais do que apenas esses lugares aí acima mencionados. E Eunice Spiller não foi a única a quem ele contagiou, como numa epidemia missionária que nunca deveria acabar, para a qual a cegueira subsequente acometida bloqueou essa iniciativa, porque poucos existem como o homem Jesus, conscientes de uma mensagem a compartilhar e que, por ela e em nome dela fazem qualquer loucura, em qualquer lugar.

  Eunice Spiller quando me levava, pelos labirintos de Copacabana, acreditava no sonho luminoso de Limeira e queria que eu lesse Bíblia nessas casas de suas amigas, na casa de seus filhos, ao lado de seu marido e filha, porque acreditava num tipo qualquer de alento que essa mensagem pudesse trazer. Ela era uma mulher, como Jesus, pelas ruas de Copacabana, comigo no início dos anos 90, por si mesma desde a década de 80.

  Contagiada pelo retirante nordestino sem rumo ou, quem sabe, de todos os rumos, que sonhou implantar uma igreja congregacional num bairro incrustado entre mar e montanha, onde as demais denominações tinham todas os seus templos, já há quase 50 anos, e a mais antiga entre elas havia se esquecido desse desafio. Não para Limeira. Para ele, todos e qualquer desafio, a qualquer hora, em qualquer lugar.

sexta-feira, 16 de abril de 2021

Visões da Bíblia - Josué e o príncipe de espada nua - 15

      Ainda que com certeza de vitórias, devido à firmeza de sua fé, um comandante às vesperas do início do que sabia ser um ciclo de guerras de conquista, diante do que elas representam, não haveria de estar totalmente indiferente.

     Josué reconhecia que, ao mesmo tempo em que Deus lhe garantia e ao povo vitória, nessa nova fase, 40 anos depois de quase ser linchado, junto com Calebe, pelos pais e avós da geração anterior desse povo que agora liderava, estar às vésperas de sua primeira batalha mexia com sua estrutura emocional.

      Quantas mães ficarão sem filhos? Quantas esposas viúvas? E quantos filhos morrerão ou ficarão sem seus pais? A promessa feita a Abraão, havia quase 500 anos atrás, pronta a se concretizar estava, porém, condicionada a batalhas de conquista que, embora sob promessa profética de vitórias, condicionavam-se às circunstâncias de quaisquer guerras, com suas perdas e sequelas.

      Por isso é bem certo que Josué não encontrasse, naquela noite, às vésperas do início desse ciclo, tranquilidade de espírito para dormir ou manter-se frio diante da situação para a qual, dia seguinte, conduziria o povo de Israel, visando a conquista daquela faixa de terra, uma praia do Mediterrâneo, o chamado Grande Mar, na beira de um deserto.

      Estava ocupada por várias famílias de povos, em geral conhecidas como os caananitas ou pelo nome de uma delas mais notória, os amorreus. Deus havia prometido ao patriarca desse povo que os deslocariam e tomariam para si essas possessões. Mas essa profecia se cumpriria condicionada, primeiro, à fidelidade e santidade do povo e, em segundo lugar, ao resultado da guerra de conquista, pela ponta das espadas.

      E Josué levou a mão à empunhadura de sua espada quando, mergulhado nessas preocupações, viu os contornos de um homem empunhando a espada dele, em guarda, surpreso perguntou: "És tu dos nossos ou dos nossos adversários?". Js 5:13. Josué ouviu um não como resposta. Fico pensando, nesse átimo de segundo, a reação dele.

       Não o quê? Era inimigo? Era um judeu desconhecido? Josué não conhecia todos no arraial. É evidente que, por sua experiência, já havia percebido ser um estranho, com poucas características do judeu médio de seus dias, pela aparência e pelas vestes. E o mais chocante de tudo que, inclusive, motivou a pergunta de Josué, com a espada desembainhada, nua diante de seus olhos.

       Não. "Não; sou príncipe do exército do Senhor e acabo de chegar". Js 5:14. Interessantíssima essa resposta. Ao mesmo tempo um despiste, um alerta e um assombro. Despiste, porque o "não" não respondia à pergunta objetiva de Josué, já de prontidão e em guarda.

        Um alerta, porque aquele ser empunhando uma espada nua provocava uma situação que exigia defesa mas, ao mesmo tempo, a situação em si gerava, ao mesmo tempo, um freio, porque era necessário saber de quem se tratava e que tipo de atrevimento era aquele. Afinal, tratava-se dos arredores do acampamento de um exército em prontidão.

      E assombro pela resposta que, definitivamente, associada ao perfil e à performance da personagem, tudo esclarecia e movia para cima, a um só tempo, todas as preocupações daquele general. Não, acompanhado de suspense.

     Sou príncipe, injetada ainda mais adrenalina. Príncipe? E me encarando com uma espada nua? Na mente de Josué a rapidez de processamento das informações provocava nele um tornado de percepção e de emoções. E o meu exército é o do Senhor.

       Para cima. Todas as preocupações de Josué foram atiradas para cima. E ainda quando a personagem enunciou a última sentença do recado, que parecia fora de contexto,: "Descalça as sandálias dos pés, porque o lugar em que estás é santo", Js 5:15, como num assalto, Josué já prostado ao chão, por causa das declarações iniciais, pôde completar o ciclo da totalidade de sua história.

      Do jovem assustado e deslumbrado, que acompanhou Moisés na subida ao Sinai, confundindo alarido de orgia com alarido de guerra, que foi discípulo do legislador, acompanhando de perto os transes do que aquele povo avaliava como loucura e Josué como providência de Deus na vida do líder.

      O quase linchamento, junto com seu inseparável amigo de fé, Calebe, após terem dado o único relatório de Canaã que a fé permitia dar, seu livramento miraculoso, experimentar por 40 anos as estações da rebeldia, pelo deserto, com a geração que nele caiu, "porque a palavra que ouviram não veio acompanhada por fé, naqueles que a ouviram".

     Teve confirmada a sua vocação. Ouviu de Deus que fosse forte e corajoso, mas para meditar, guardar, cumprir e pregar a Lei de Moisés, que era a sua Bíblia, agora ouvia como que uma sentença fora de contexto, mas que correspondia ao começo, para Moisés: "Descalça as sandálias". Descalça e descalço. Com os pés nus, nas areias escaldantes desse deserto.

       "E fez Josué assim". Bem e bom, que tenha feito. Porque não há nenhuma outra forma de, como foi dito no contexto de sua vocação: "... para que sejas bem-sucedido por onde quer que andares". Js 1:7 e, mais uma vez: "... então, farás prosperar o teu caminho e serás bem-sucedido". Js 1:8. Porque "Não to mandei eu? Sê forte e corajoso; não temas, nem te espantes, porque o Senhor, teu Deus, é contigo por onde quer que andares". Js 1:9.

      Bastou a Josué aquele "príncipe do exército do Senhor", em guarda, excitar sua adrenalina. Para que as promessas, que não falham, na vida de ninguém, entre os que creem, fossem lembradas e confirmadas. Sigamos descalços. Ainda que caminhando no deserto. Atentos, porque o movimento é para cima.

segunda-feira, 12 de abril de 2021

Visões da Bíblia - Moisés oculto na cavidade da rocha - 14

     Não adianta subterfúgio. Moisés tinha mesmo, com Deus, uma proximidade inusual. A Bíblia não detalha, mas o fato de subir o monte apenas com Josué e, ainda por cima, ele ficar fora à parte, como dizem os acreanos, isso era sinal de exclusividade.

      E na crise, mais uma, de autoridade que, ora, vejam só, Arão e Miriam lideraram, Deus chamou os dois, para dizer que não era, com Moisés, como fora com qualquer outro, porque era um cara a cara entre os dois, Deus e Moisés.

     Mas também não era o cara a cara que pensamos. Porque João Apóstolo, em seu evangelho, deixa claro que ninguém jamais viu a Deus, homem nenhum, exceto Jesus que, além de ver, revela totalmente o Pai.

     Mas Moisés viu mais do que nenhum outro. E ainda faltou ver, evidentemente. A ponto de pedir a Deus que lhe mostrasse sua (de Deus) glória. Deus atendeu, como que ocultando com a cavidade da mão a Moisés numa caverna, passando diante dela, e permitindo a Moisés vê-lO pelas costas.

     Ocultar com a mão significa prevenir que veja a glória do modo como, unicamente, Jesus pode ver. E colocar junto à penha, a Rocha, que é Jesus, foi profético, porque é sobre a Rocha onde estamos, por enquanto ocultados da presença mesma de Deus: "Eis aqui um lugar junto a mim; e tu estarás sobre a penha". Ex 33:21. E permitir ver pelas costas, é para satisfazer o pedido do amigo, mostrando-se, ainda, como nunca antes, ao homem que mais O havia visto tão de perto.

     Moisés não é um super-herói Marvel. Nem nós devemos ser, buscando superpoderes. Ou avaliando que as experiências que esses homens tiveram, são para ser reproduzidas hoje. Ou ainda especulando sobre experiências alheias, para estabelecer graus de validade, nível de espiritualidade ou percentual de credibilidade.

     Porque é Deus quem regula esse grau de proximidade. E em Jesus não estabelece grau de comunhão. Corremos o risco de nos interpor com vaidade pessoal, quando estabelecemos um index dos mais e menos espirituais, ou próximos, ou ainda uma escala de modalidades de "experiências".

       Deus procura, porque essa é a vocação dele. Estimulou Moisés, no deserto, no tempo da rebeldia maior, ao sopé do Sinai, liderados por Arão, o pusilânime, dizendo que não mais seguiria no meio do povo. Magistral a resposta de Moisés: segue, porque esse é Teu povo e Tu tens vocação por ele.

      Vocação da qual Jonas fugiu, e disse as razões: "...pois sabia que és Deus clemente, e misericordioso, e tardio em irar-se, e grande em benignidade, e que te arrependes do mal". Jn 4:2. Deus amava intensamente até os assírios, tinha vocação irrestrita por eles, na oferta desse amor. Como entender isso? Nem Jonas entendeu. E Deus trata cada profeta ao seu (de Deus) jeito.

     Nem todo profeta fez cair fogo do céu. Nem mesmo Elias achou, em sua maturidade, que isso era expediente seu (de Elias), para usar ao bel-prazer. Jeremias e Isaías, este de quem dizem ter sido serrado ao meio, caso em hebreus seja esse seu gênero de morte, não viram os milagres que Eliseu presenciou.

     Vamos aprender com Jonas, em sua tentativa inútil de fuga, que o amor de Deus é mais radical do que ele (Jonas) ou nós mesmos concebemos. Com Jeremias, que viu Jerusalém queimar, o templo virar cinzas, os muros desabarem, com mais os detalhes descritos nas Lamentações, que muitas vezes Deus permite as tragédias provocadas pela humanidade sem interferir uma palha sequer. Nenhum milagre sequer.

      E vamos acompanhar o raciocínio do autor anônimo de Hebreus, quando diz que não vimos o Sinai fumegar, não ouvimos a voz de Deus naquele dia, não ouvimos o toque de advertência das trombetas e nem o medo estampado até mesmo no rosto de Moisés.

      Mas chegamos a Cristo, à sua revelação de Deus e à sua glória revelada na igreja, ao senso de reconhecer que não há mais barreiras de raça, para o perdão de Jesus, e nem estatística dos arrolados nos céus, mas que são a glória da igreja celestial.

      Será bom evitarmos para nós o erro dos irmãos Arão e Miriam, que desmereceram as experiências que Moisés havia tido. Ele não precisou se defender. A cobrança de Deus aos dois foi direta. Mas também aprendermos que, a cada um, por quem Deus é vocacionado, cabe uma intimidade de experiências que, ao final são, por assim dizer, criptografadas, ou seja, têm exclusividade bilateral e são cifradas.

      E não há super-heróis Marvel nesse contexto, ou seja, identidade secreta de superpoderes revelados de modo velado: vamos deixar a ficção, até divertida de se ver, para o cinema. Para viver a vocação que Deus tem por nós e retransmiti-la àqueles que Deus tão intensamente ama, como a nós, mas ainda estão carentes de crer. 

     Porém, deixando de lado a síndrome de Jonas, amando intensa e incondicionalmente, como Deus ama. "Sede, pois, imitadores de Deus, como filhos amados; e andai em amor, como também Cristo nos amou". Ef 5:1,2. Esta é a experiência da igreja. Que tal vivê-la intensamente?

sábado, 10 de abril de 2021

Visões da Bíblia - a tenda do deserto - 13

 

 Moisés orientou que Bezalel e Aoliabe recebessem os donativos a ser utilizados na construção da tenda do tabernáculo. Seria o lugar central, no arraial do deserto, para o acolhimento de demandas e ordenação dos sacrifícios referentes ao ritual típico e original da religião de Israel.

   Moisés improvisava e acumulava tudo em sua própria tenda. Mas o seu sogro, Jethro, aconselhou que, além de um número maior de ajudantes, houvesse um lugar específico para esse serviço, que não o sobrecarregasse, ao mesmo tempo em que reservasse sua tenda para uso pessoal.

  Excelente ideia. E Moisés, além de ter, na cabeça, modelos variados de templos, devido à sua formação eclética no Egito, baseado nas orientações recebidas no monte Sinai, da parte de Deus, tinha na mente uma planta baixa da tenda do tabernáculo, que seria erguida no centro do arraial.

   Desde os pormenores do modelo, passando pela variedade de materiais usados na construção, até o modelo de armar, desarmar transportar, tudo, na tenda, remetia a um aspecto audiovisual da revelação de Deus ao povo.

     Numa época sem smartphone, bloco de notas, ou mesmo papel e esferográficas, sem as facilidades da comunicação escrita, a estratégia audiovisual adquiria um relevância notável. Formas, cores, odores, o que era visual, auditivo e olfativo representava atributos de Deus no trato com o povo.

     Trato íntimo. Uma tenda no meio do arraial significava que o Deus de Israel acampava e levantava acampamento com o povo. Não tinha rosto e nem forma, imagem nenhuma dele havia ou era recomendado que assim o representassem. Isso já equivalia a uma brutal dessemelhança entre todas as religiões dos povos à sua volta.

      Tão antigo e, ao mesmo tempo, tão atual. Orar a Deus sem a necessidade de imaginar um rosto, ajoelhar-se diante de uma forma qualquer de ícone ou totem, era, já naquela época, revolucionário e, ainda na época atual, atualiza-se de modo frequente.

   Os mestres de obra indicados por Moisés recolheram metais, pedras preciosas e semipreciosas; madeiras, couros e peles; tecidos, essências, óleos e azeite. Cada um desses materiais indicando uso específico, assim como um sentido preciso dos elementos do culto, rituais e sacerdócio da religião de Israel.

    Os quadrantes dentro dos quais seria edificada a tenda, com a representação e limites bem definidos para ofertantes, sacerdotes e o lugar definitivo representativo da presença de Deus em meio ao povo. Área externa cercada em quadrilátero, com uma entrada para o encontro no altar dos holocaustos.

       Ali ofertante e sacerdote se encontravam e se afastavam. O sacerdote ali oferecia os sacrifícios prescritos na lei cerimonial do Levítico. Entre esse altar e a entrada da tenda, propriamente dita, uma bacia de broze com água purificadora. Na parte anterior da tenda, antessala do santíssimo lugar, situava-se o santo lugar, com mesa dos pães, à direita de quem entra, o candelabro, à esquerda, e bem defronte o altar de incenso.

    Este pertencia ao santíssimo lugar ou santo dos santos, mas ficava para frente da cortina, de modo a não se violar o santíssimo, por detrás da cortina, cada vez que nele o sacerdote viesse oferecer queimados os incensos. E, finalmente, no mais interior, por detrás da cortina, no interior do santíssimo, repousava a arca da aliança, tendo dentro todos os elementos representativos da aliança no Sinai.

     Assim construída, Moisés, ao entrar nela, no dia aprazado para a consagração, não pôde permanecer dentro dela. Porque a glória do Senhor, ela mesma, a consagrou. Deus perto. Acampado no meio do povo. Desde a crise da idolatria, quando Moisés ainda havia demorado no monte, e o povo pressionou Arão para o culto do bezerro do Egito, suas festas, orgias e bebedeiras, Deus disse que não mais seguiria no meio do povo.

    Moisés argumentou: "Então, lhe disse Moisés: Se a tua presença não vai comigo, não nos faças subir deste lugar. Pois como se há de saber que achamos graça aos teus olhos, eu e o teu povo? Não é, porventura, em andares conosco, de maneira que somos separados, eu e o teu povo, de todos os povos da terra? Ex 33:15,16.

   Assim. Grudado ao seu povo. Em Cristo, misturado ao seu povo. Fazendo reluzir sua glória no rosto do seu povo, agora representado na igreja de Cristo. Essa é a atual visão. Atenta para a visão. 





quarta-feira, 7 de abril de 2021

Jesus e as estrelinhas - ser ou não ser cego - 3

      Em meio ao burburinho da hora, o homem cego ouviu: "Enquanto estou no mundo, sou a luz do mundo". Apurou os ouvidos, como a captar detalhes de sons, rotina do modo como formava imagens mentais.

    Foi quando. Porque ao soerguer o rosto, como num movimento circular, pelo seu radar natural, na direção da fala, expôs os olhos e facilitou o trabalho do estranho. Apenas sentiu, encaixado na cavidade dos olhos, primeiro num, depois no outro, arranhando, sem saber, um polegar que pressionava terra mistutada a saliva.

     Quem à volta enxergava, estupefez-se: que molecagem fizeram ao ceguinho, para não usar o termo chulo. Os apóstolos, perto, também sem entender nada, já estavam acostumados com Jesus, surpreendiam-se a toda hora, então respeitaram o inusitado.

      Outros comentavam entre si: o que foi? Ora, o galileu cuspiu no chão, lambuzou de lodo, ai, que nojo, o olho do cego, e mandou ele se lavar no tanque. Olhos se entreolhavam e voltavam, agora, atentos ao desfecho.

     O homem cego disse um Ei! exclamação de espanto, sentiu o incômodo, por instinto levou as mãos à meia altura, mas sem tocar os olhos, e ouviu o "Vai e lava-te no tanque de Siloé".

    Lacônico: "Ele foi, lavou-se e voltou vendo". Mas ainda vale a pena deter-se entre o Ei!, do toque, da hesitação, entre o tato e a obediência ao comando, o deslocar-se, duplamente cego, porque sem ainda compreender toda a trama, estupefação mental, suspense, para o lavar regenerador, quando paulatinamente a areia, retirada, parou de arranhar, e a luz definitiva veio entrando.

     Desta vez, ao soerguer o rosto viu, pela primeira vez, nitidamente, a luz e o foco, contornos, cores e formas, viu suas próprias mãos, os olhares espantados à volta, folgou, em alegria, a mente ainda ordenando as peças do último acontecimento, mais uma das que Jesus aprontava.

     E todos à volta perguntavam a ele. E não se cansava de dizer: "O homem chamado Jesus fez lodo, untou-me os olhos e disse-me: Vai ao tanque de Siloé e lava-te. Então, fui, lavei-me e estou vendo". Simples assim. Onde está esse homem? Por enquanto, não sei seu paradeiro. Mas quero muito reencontrá-lo.

     Correu a notícia. Chegou aos fariseus. Como assim? Ora, como assim, não estamos dizendo: era cego de nascença, de nascença, enfatizavam. Temos de tomar providências. Pensando na própria reputação que, para eles, sempre vinha em primeiro lugar, resolveram investigar.

     Trouxeram o homem. Sim, o que ocorreu? Estão falando que... Você confirma? De novo, lacônico, preciso e repetitivo: "Aplicou lodo aos meus olhos, lavei-me e estou vendo".

     Resolveram, então, entrar numa discussão teológico-doutrinária sobre a guarda do sábado. Deu em nada com o homem. E começaram, entre si, esse homem não é de Deus, porque mandou quebrar o sábado com tarefa. Não, diziam outros, se não fosse de Deus, não faria o milagre. Mas que milagre?

     Olhos espantados, olhares entre si mas, como dizia meu pai, aguentaram firmes, não passaram recibo e, até o final, apostavam na fraude. O que você diz, queriam saber para que lado da discussão penderia o ex-cego. Pendeu para nenhum dos dois: tinha opinião própria. Lacônico: é profeta.

     Chamem os pais. Vieram os pais. Esse aí é filho de vocês? Ora, mas sim. Verdade que nasceu cego? Sim, de nascença. Mas como está vendo? Ora, só perguntando a ele.  É maior de idade, pode dizer.

     É nosso filho. Nasceu cego. Mas como está aí, olhos arregalados, mas vendo, isso não sabemos. Perguntem a ele. Idade tem e pode responder. Sabemos. Ouvimos. Não precisa repetir. Os pais mantinham o "padrão fariseu" de isenção, quando se tratava de Jesus.

    Então, voltaram-se para o homem, dando por encerrada a polêmica e definindo os parâmetros do caso: quanto a você, dá glória a Deus, mas esquece esse homem, porque é pecador, e a prova disso é que violou o sábado.

     Bem, embora não pedissem a opinião, desta vez o homem avançou, ora, se é pecador, eu não sei, o que sei é que era cego e agora vejo. Arregalavam-se os olhos, de novo, por duas razões: o atrevimento do homem e a insistência do testemunho, em que não queriam acreditar.

      Meio que sem saída, sem ter o que dizer, perguntaram de novo, mas como mesmo te fez o homem? Para que provocaram: já disse. Então, para que repetir? Querem a confirmação para também crer nele? Tornarem-se discípulos, como a dizer, porque eu, já o sou.

     Injuriaram-no e o expulsaram. Não sem antes dizer, somos discípulos de Moisés, e não desse estranho. E ouvir: estranho é exatamente vocês o desconhecerem. Porque abriu os meus olhos, cego de nascença, em dois sentidos, o que não acontece todo sábado.

     Deveriam crer nele. É de Deus. Puseram-no para fora. Jesus o soube, foi-lhe ao encontro, para perguntar: "Crês tu no Filho do Homem?". Preciso saber quem é, porque estou ansioso por crer. Santa ansiedade.  Eu sou. Aqui, falando contigo. Sim, claro, creio e te adoro. Jesus, então, falou, em duplo sentido: eu vim para abrir os olhos aos cegos.

     O fariseus sentiram-se provocados e passaram recibo: está nos chamado de cegos? Jesus, irônico, replicou: não, vocês enxergam. Eu vim mesmo para abrir os olhos dos que, verdadeiramente, se consideram e se reconhecem ser cegos. 

terça-feira, 6 de abril de 2021

Jesus e as estrelinhas - o chamado dos apóstolos - 2

     Sem dúvida, os 12 apóstolos tipificam os grupos que hoje, a si mesmos, intitulam-se igreja.  Se a gente focar, ainda que, em alguns casos, com poucas pistas, vai delinear traços de sua personalidade.

     Por exemplo, para começar pela letra "z", de zelota, esse Simão mas parecia um ativista de ideologia radical. Porque os zelotas tinham esse perfil. Para ssr um deles, não tinha como incorporar meios-termos.

     De cara, concordava com as bem-aventuranças em parte.  Essa história de dizer que os "mansos herdariam a terra", duvidava peremptoriamente. Para ele, ser humilde era dificílimo, chorar era fraqueza e gostava mesmo daquela que dizia ter "fome e sede de justiça".

      Quanto a ser perseguido, até admitia, mas vivia dizendo: "Vou encarar". Os dois mais, literalmente, "filhinhos de papai" eram os irmãos Tiago e João.  A mãe, é claro, queria um à direita e outro à esquerda de Jesus.

     Já dizia Salomão, tudo é vaidade. Ah, se ela soubesse que João seria chamado "discípulo do amor". Ia acabar querendo era Jesus à direita dele. E achar que os filhos eram AAA em espiritualidade, sem que seja a única a estabelecer esse tipo de critério.

    Fazer o quê, ela diria: são os melhores. Muito embora os irmãos Pedro e André, também pescadores, muito provavelmente emprestados à empresa do pai deles, Zebedeu, nem mais ligassem, acostumados a essa mania de elitização da mãe dos amigos, filhos de empresário da pesca.

    Os dois levavam numa boa. Talvez até rissem. Aliás, João mesmo registra que foi André quem o convenceu, aguçando sua curiosidade, por acharem Jesus. Ouviram a respeito dele no círculo de João, o "batizador", daí o apelido Batista. Esse queria mesmo era se livrar de discípulos, empurrando-os (ainda bem) para Jesus. André, tendo primeiro achado o próprio irmão Pedro, arrastou também João a seguir, este sim, vocacionado a ser Mestre.

      Mas Felipe foi, pessoalmente, chamado pelo próprio Jesus que, afinal, em termos absolutos, chamou a cada um. Era de Betsaida, cidade desses mesmos irmãos André e Pedro, e encontrou e convidou Natanael, mexendo com a imaginação dele, já dizendo tratar-se do Messias.

     Também chamado Bartolomeu, era meio avoado, vivendo distraído e pensativo debaixo de figueiras. Jesus usou dessa distração para bem indicar a ele que conhecia bem, de antemão, aqueles a quem chamava. E a dupla era tão chegada, André e Felipe, que estavam juntos no cálculo da multiplicação dos pães e na hora que gregos quiseram safar Jesus de sua hora crucial.

     Também foi Felipe que ouviu de Jesus, na hora da despedida deste, "há tanto tempo estamos perto", como dizer, então, "mostra-nos o Pai: quem me vê a mim, vê o Pai". Faltou mencionar Tomé, o cético todo o tempo, Mateus, que todos queriam no lugar de Judas, para cuidar da bolsa, mas a teimosia de Jesus prevalecia sempre, porque tinha seus planos, na maioria das vezes incompreensíveis por eles.

      E Judas, coitado, que a vida toda teve de dizer não, não fui eu: eu sou o outro, Judas Tadeu. Aquele era o Iscariotes. Matias, que entrou por eleição, e o temporão Paulo, por chamado direto de Jesus já ressuscitado, como que nascido fora de tempo.

     E, para terminar, falta citar Tiago, o menor, para ver como esse negócio de "elitização espiritual", ou qualquer outro tipo, pega pra valer. Jesus mesmo, que gostava de pôr apelidos, não concordava com esse tão depreciativo para o rapaz.

     Dois Simão, o Pedro e o Zelota; dois Judas, o Tadeu e o "da bolsa"; dois Tiago, o menor e o maior (segundo a mãe dele); Mateus, o tesoureiro preterido, Tomé, o cético, Natanael, o Bartolomeu sonhador, e a dupla inseparável André e Felipe, e, para não  esquecer, João, o caçulinha, xodó de mamãe.

     Matias e Paulo entram depois, mais tarde até Barnabé é chamado apóstolo, porque eles mesmos foram os primeiros a entender que esse título, mais do que status adquirido, era ser considerado "aquele a quem Jesus envia". Isso bastava para eles.

    

     

segunda-feira, 5 de abril de 2021

Jesus e as estrelinhas - bate-papo com Nicodemos - 1

     A questão é a disparidade que pode existir entre o que vai formulado, como padrão, e o que, na realidade, se processa. Esse foi, mais ou menos, o substrato da conversa entre Jesus e Nicodemos.

    Nicodemos vinha com o formulado, enquanto Jesus vinha com o prático, real e exequível. Não que se esteja contrariando o que está formulado, mesmo porque o que conhecemos dessa conversa entre Jesus e Nicodemos é a formulação dela.

    Mas o modo como se entende. Aliás, esse "modo como se entende" tem um padrão, exatamente como está formulado nas Escrituras.

    Assim como outra diferença, justamente aquela entre "made by God", com "trade mark", ou seja, o "feito por Deus", com "marca registrada", e o supostamente atribuído a Deus. Sim, porque se há Alguém com costas largas é Deus. Ah, se fosse cobrar o que de falso lHe é atribuído. Haja cobrança.

     Jesus cobrou de Nicodemos, o mestre entre mestres, fariseus, que a si mesmos se consideravam "a nata", basta conferir na descrição a si mesmo autoatribuída, feita por Paulo Apóstolo, no tempo em que vestia essa camisa.

    Puro pedigree. Ora, como Jesus gostava desses, como se dizia antigamente, desbundes. Duas cobranças, pelo menos, Jesus fez a Nicodemos: a primeira, como não saber o que é nascer de novo?

     E a segunda, como desconhecer, assim, tão taxativamente falando, o "GPS" do Espírito? Ele não era mestre? Que viesse, então, com as respostas. Tá aí o perigo de pôr formas (leia com /ô/) em Deus (leia também com /ó/, vai dar no mesmo).

     Jesus dizer que o Espírito é como o vento, que não se sabe dizer de onde vem ou para onde vai, absolutamente quer dizer que o Espírito seja um tremendo free lancer, o "improvisador" da Trindade. Não.  Muito pelo contrário. Porque Pai, Filho e Espírito Santo, os três, que são um, seguem, em conjunto ou em separado, o "padrão Trindade", segundo formulado nas Escrituras.

    Quis dizer que, ao contrário do que disse a (que gostava de ser chamada) presidenta, não dá para pôr o vento (ou o Espírito) na garrafa. Enquadrar o Espírito. Como o pessoal gostava daquele trecho das Escrituras "onde está o Espírito do Senhor, aí há liberdade"!

      Mas, como diz o outro, o uso faz a boca torta, daí inverter o sentido do que diz o versículo, exatamente pelo uso indevido. Entenderam que qualquer coisa pode ser atribuída a uma ação do Espírito, porque está posta uma liberdade. Mas é isso que diz o texto?

     Pode até ser por legítima reivindicação, mas o uso do texto se tornou indevido, como legitimação, e vai por aí que se descobre que a terceira Pessoa da Trindade também tem costas largas (e muita, mas muita paciência mesmo).

       Leia-se nas entrelinhas. Jesus quis dizer a Nicodemos que "nascer de novo" está, sim, prescrito no manual, mas é ação exclusiva de Deus. E que o nascido de Deus adquire liberdade no e pelo Espírito, mas não é para fazer badernas (nem as doutrinárias), mas para andar no Espírito.
  
     Que são duas coisas, quais sejam, nascer de Deus e andar no Espírito, marca registrada divina, registradas nas Escrituras, mas que não devem ser confundidas em seu contraponto, que são, todos eles, em sua totalidade, falsos.

      Imitação (sempre barata) de "nascidos de novo" ou dos que "andam (ou se atribuem 'cheios' do) no Espírito.  Leia-se nas entrelinhas. O que tem o selo de Deus, nunca se presta ou se apresenta falsificado. Basta de atribuir, fora de forma (com /ó/ ou da forma, com /ô/) a Deus (ou ao Espírito) o que não passa, por que não dizer, de reles humano.

      Ora, mas não é essa mesma a atribuição, por excelência, do Espírito? Ele é o selo de Deus. Fique ligado. Onde há o selo, há autenticidade. Onde há o selo, pode repetir agora, há liberdade. Mas sem usá-la, como comenta Paulo, para dar lugar ao falível bem humano, sem o selo de Deus. 

     Foi (tudo) isso que Paulo considerou como perda, para ganhar a Cristo. Entendeu, Nicodemos? Está nas entrelinhas. 

domingo, 4 de abril de 2021

O túmulo vazio

               

     Talvez, duas maneiras de se constatar uma fraude num túmulo.  Se estiver vazio, sem restos mortais de alguém que nunca foi ali anteriormente posto.

    Ou se, realmente, tenha sido profanado, quer dizer, violado, retirados os restos mortais ou utensílios ali postos, como entre os saqueadores de múmias.

    Mas não. O túmulo vazio de José de Arimateia foi, sim, ocupado pelo corpo sem vida de Jesus. Morto antes das 18h de sexta, ressuscitado antes das 6h de domingo.

    Guardas que estavam de prontidão foram cooptados para dizer que o corpo havia sido furtado. Eram os primeiros a saber que não. Mesmo porque os apóstolos Pedro e João, este mais ligeiro no pique, acharam os lençóis que o cobriam.

      Quem profanaria um túmulo para roubar seu cadáver, detendo-se para desembrulhar de seus lençóis, ainda sob a vigilância de guardas, mesmo que estivessem cochilando?

    E quem registraria, por escrito, em livros, o relato de mulheres que voltassem contando a história de que viram anjos, ou de uma outra que, sim, avistara o morto, mas estava vivo, confundido com o jardineiro e indentificado por ter chamado o nome dela? 

    Histórias de mulheres. Pedro e João conferiram. João percebeu mais rápido. Pedro vasculhou os panos no interior do túmulo. Depois deste túmulo vazio, cabe uma advertência: todos os demais ficarão vazios. E ainda que haja mortos sem túmulo, onde houver, ressuscitarão.

     Jesus derrotou a morte. Porque antes, havia derrotado o pecado. Jesus destruiu as obras do diabo. A partir da ressurreição de Jesus, está decretada a falência da morte. Essa ressurreição é o ponto central da fé. Batizados em Jesus e sua morte, aplica-se a nós a ressurreição dEle.

    Preste atenção: fé não é acreditar em "coisas futuras" vagas e imprecisas. Fé é para esta vida. Paulo Apóstolo dizia "este viver vivo pela fé". Jesus é a garantia da fé. Não pelo medo da morte. Mas pela disposição de vida. Vida que começa agora e se estende para a eternidade. 

sábado, 3 de abril de 2021

Sábado

      Os acontecimentos todos se precipitaram naquela última semana. A rotina de Jesus era a mesma de sempre, pernoitar no monte das Oliveiras e amanhecer, cedo, ensinando nas varandas externas do templo de Jerusalém.

    Havia provocação da parte dos saduceus, partido religioso mais ligado à administração central do templo, e dos fariseus, de influência espalhada pelas sinagogas, inimigos político-religiosos ferrenhos.

      Mas numa coisa concordavam: tinham que calar Jesus. Olha aí, o que aproveita? O povo todo atrás dele. Ora, importa que um morra, para evitar problema maior. Não tinham do que o acusar. Mas a intriga era constante.

     Haviam combinado com um deles, entre seus discípulos, exatamente o que cuidava da pouca renda que o grupo recebia, prometendo as 30 moedas prescritas na profecia de Zacarias.

     Jesus já os havia prevenido, de que satanás tentaria sua colheita entre eles. O orgulho de alguns, a fé vacilante de outros, a cobiça pelo dinheiro ou a covardia e o medo eram recursos que o inimigo poderia usar.

     Sábado. Estava tudo terminado. Dera tudo certo, como friamente planejado, para as autoridades judaicas. Um "juízo opressor", como havia profetizado Isaías. Judeus e romanos se aliaram, de um modo que uns jogavam nos outros a culpa que nenhum dos dois admitia.

     Mas se havia culpa, era de todos. A verdadeira culpa, por causa da qual Jesus se entregou e as Escrituras afirmam que Deus, pelo seu "determinado desígnio e presciência" permitiu, é a culpa coletiva de todos nós. Todos os seres humanos de todas as épocas.

     Romanos e judeus estavam dispostos a esquecer todo o ocorrido. Estes, envolvidos no cerimonial do sábado, que era mais um dos pontos de conflito com o  crucificado. O problema estava resolvido.

    Aqueles, também se tranqulizavam, por mais uma querela resolvida com os incômodos judeus. Ora, o que era mais um crucificado, por nada, por uma confusão entre eles mesmos, uma implicância com as manias de um louco?

     Mas como foi aquele sábado para os seguidores de Jesus? Que tipo de consolo alentaram? Era necessário ter prestado muita atenção ao que o Mestre havia dito. Porque em suas palavras havia prometido que somente um sábado duraria seu tempo naquele túmulo.

      Sábado simboliza descanso. A polêmica de Jesus com os judeus era para dizer que o Pai, Deus trabalhava todo o tempo por salvar cada um. Descansou apenas um sábado, porque o trabalho estava feito.

     Como na criação, de tudo o que Deus fez, descansou apenas num sábado. Este dia existe para lembrar que há um descanso que livra do peso de toda a culpa. Deus deparou em Jesus o descanso. Entra-se nele pela fé.
  
     Lembrando do hino que diz: "É Teu, somente Teu, todo o trabalho. E o meu trabalho é descascar em Ti". Deus deparou o descanso ao qual cada um, individualmente, tem acesso, pela fé, preço pago por meio de todo o trabalho realizado em e por meio de Jesus.