sexta-feira, 23 de abril de 2021

Valor

    Quanto vale uma quitinete em Copacabana em 1992? A discussão aqui versa sobre valor. Não apenas o venal, mas também e, principalmente, o valor humano. Este muitas vezes menosprezado e menos prezado.

     Eu me lembro da luz que entrava pela janela da quitinete. Da varanda sobre a rua, era número 102. Lá passavam os carros e os ônibus da Av. N. Sra de Copacabana. Abria-se uma janela ao que era o desafio de ter, numa quitinete em Copacabana, ora vejam só, abrigados todos os sonhos que uma igreja representa.

     Havia um universo ali dentro. Como se a gente quisesse que todo o bairro, com a sua história, coubesse ali dentro. Abrigávamos, no meio de semana, dois grupos, os na época denominados NA - Neuróticos Anôninos, mais tarde autodenominados EA - Emocionais Anônimos.

      E no outro dia da semana a gente se reunia para o estudo bíblico. Estabeleceu-se uma integração entre os dois dias, porque um grupo de mulheres, a princípio seguidas por alguns homens, interessou-se por estudar a Bíblia, especificamente o Antigo Testamento, porque a influência da cultura judaica, ali representada, prevaleceu.

     Havia um grupo de mulheres judias que pediu que estudássemos Jô, os Salmos, alguns profetas, enfim, reuníamos em torno de uma mesinha desarmável, daquelas de bar, próprias para o espaço da quitinete. Ali todos nos abrigávamos e logo se estabeleceu um vínculo entre nós, sempre na expectativa do que a Bíblia podia oferecer.

     Não misturávamos EA com Bíblia, absolutamente. Seguíamos estritamente os 12 passos e as 7 tradições, pelas quais balizávamos nossas reuniões, das quais eu participava, autoassumido um neurótico, evidentemente, em maior ou menor grau. Não podemos aqui veicular o que se conversava ali. Nem nomes e nem assuntos.

     Mas vale a pena falar do grau de enfrentamento dos problemas, da variada natureza deles, da coragem, do esforço em enfrentá-los e do que o conforto recíproco de compartilhá-los ali, naquele círculo, representou. Valor. Mais uma vez aparece aqui o termo. Qual o valor? O valor da vida a gente perde e não avalia. Precisamos de Deus para redescobrir isso.

       Um dia houve uma reunião de três. Eu, Dr Fernando Campelo e d. Eunice Spiller. Eram os dois diáconos e eu. A ideia era a prosposta de d. Eunice de comprarmos a sala. O proprietário propunha. Mas como? D. Eunice falou de seu último quilo de ouro. Havia sete, como reserva de investimento, mas haviam sido usados por razões várias, principalmente para suprir as despesas da fábrica de joias, bijuterias e marcassitas que pertencia à família.

     Eu disse que não. Ela era idosa. Que não poderíamos explorar a oferta dela, visto que havia os filhos. Naquela época, o esposo já havia falecido. Não poderíamos aceitar de uma pessoa de sua idade aquela oferta. Meses depois o assunto retornou. Eu perguntei sobre ela ter falado com os filhos se, como foi combinado, anteriormente, ela os havia consultado.

     Não. Não havia falado. Mas aqui entra o diferencial de d. Eunice, que era o temperamento de seus olhos muito azuis. Não falei e nem vou falar. Porque eles fazem as coisas lá, deles, sem falar comigo ou me pedir opinião: não vou falar nada. Vou fazer por minha conta (e risco). Fizemos. Encetamos uma campanha para 22 mil dólares.

     Entrou o quilo do ouro. Peguei-o no apartamento da Tonelero e, embrulhado num saco de plástico de supermercado, no bolso, levei-o ao dono da sala, por ônibus, ao centro da cidade do Rio de Janeiro. A segunda parte do pagamento a gente conseguiria por campanha, da qual participaram o Dr. Campelo e o Pr. José Remígio Fernandes Braga.

     A quitinete, dentro da qual cabia toda Copacabana, foi arrematada por esse valor. Por que valor. Há todo o valor. Há quem reconheça e há quem não reconheça valor. Só Deus para socorrer nessa hora. Nem bem o valor venal. Mas o valor humano. História de igreja é história de valor humano. Só Deus para socorrer nessa hora. Porque ser humano não dá valor. Só Deus, para resgatar no ser humano e para o ser humano o seu valor. 

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