sexta-feira, 30 de dezembro de 2022

Um problema de foco

   Jesus conduzia sempre a conversa ao eixo correto. Se o interlocutor não acertava certeiro a pergunta, Jesus corrigia. E o assunto conduzia ao eixo certo.

  Com Nicodemos, ele interrompe o fio condutor do raciocínio do líder fariseu, elogiando Jesus por demais, para trazer o diálogo para o que era crucial na tradição farisaica: o gene.

   Nicodemos, você precisa nascer de novo. Dizer isso a quem se julgava um bem-nascido filho de Abraão, era, no mínimo, arriscado.

   Como nascer de novo? Jesus replicou, ora, o mestre não é você? Eu sou o filho do carpinteiro. Nascer de Deus era novidade na teologia farisaica.

   Na casa de outro fariseu, previamente convidado para uma arapuca, Simão e seus iguais estavam ansiosos por ter do que acusá-lo. Eis a chance de ouro: entra no ambiente uma mulher da vida.

   Procura Jesus com os olhos, localiza-o, dirige-se chorosa em direção a ele, unge com bálsamo os pés do Mestre, enxuga-os com seus cabelos e os beija. Era, para os hostis fariseus, o prato feito.

   Jesus, então, desloca o foco. Ora, vocês querem, então, medir caráter. Pois me digam: um credor que chama dois devedores, uma dívida de 500 e outra de 5000, perdoados os dois, quem ficará mais grato?

   Unânime resposta, ora, o que mais deve. Está aí, diante de vocês: teoricamente, não acham, é ela que deve mais? Por isso que mais ama. O óleo para os cabelos, o beijo e o asseio, ela o fez para meus empoeirados pés. Por isso demonstra que mais ama.

    O foco da samaritana era o que a afastava de Jesus. O de Jesus, o que o aproximava dela. Não tinha conforto em sua tumultuada vida íntima. Na vida religiosa, refletia a mesma polarização racial de ódio entre eles e os judeus.

   Jesus trouxe a conversa para o foco correto. Ele mesmo e tudo o que estava disposto a fazer. "Eu sei que virá o Messias", ela disse. "Eu, sou eu, que falo contigo", disse Jesus. Bastou para ela. Foi anunciar aos outros.

   Nem sempre trazer a conversa para o foco alegrava Jesus ou quem com ele falou. O anônimo jovem rico não saiu satisfeito do diálogo com Jesus, que o amou, como assinala o evangelista Marcos.

   Mas não foi possível chegar a um acordo. O jovem quis alto, a dúvida era legitima e a pergunta feita à pessoa certa: "Que fazer para herdar a vida eterna?" Mas, como retorno pessoal, a ênfase estava distorcida. Jesus o demonstrou com uma sutil sugestão.

   Perguntou ao jovem se conhecia os mandamentos. Ele encurtou, na resposta, afirmando que desde muito cedo conhecia todos. Jesus, então, sugeriu que se desfizesse de todos os seus bens, para então tonar-se seu discípulo.

   O jovem asustou-se. Como perder tudo? Ora, o primeiro mandamento é amar a Deus acima de todas as coisas. Não era para o jovem se retirar. Era para dizer a Jesus que não conseguia abrir mão. Bastava confessar que sim. O resto, Jesus faria.

    Sejam Nicodemos, as anônimas samaritana e a prostituta da casa do fariseu Simão, ou o jovem rico, bem conceituado, não importa: com todos eles Jesus trouxe o diálogo para o foco correto.

   O problema está em assumir o foco. Nicodemos hesitou. A samaritana, quando enxergou, creu. A mulher da casa de Simão já entrou na festa previamente convencida. E o jovem rico se afastou frustrado.

   Eu o sou, eu, que falo contigo. Qual o seu foco, no diálogo com Jesus? Qual o seu foco, no ano que entra? Acredita, mesmo, que dá para caminhar todos os caminhos na presença de Jesus? Foca nisso, neste ano.

sábado, 24 de dezembro de 2022

Feliz Natal de amor

"Ninguém tem maior amor do que este: de dar alguém a própria vida em favor dos seus amigos.[...]  Já não vos chamo servos, porque o servo não sabe o que faz o seu senhor; mas tenho-vos chamado amigos".Jo 15:13-15.

   Jesus  nos torna amigos de Deus. Porque antes de conhecer Jesus, éramos inimigos: de Deus, de nós mesmos e uns dos outros.

  Amigo é opção. Parente, por exemplo, não se escolhe. A gente é por obrigação. Mas nem todo parente é amigo. É lamentável, mas verdadeiro.

  Isso porque a gente faz uma relação de motivos para não ser amigo. E se disser que, na igreja, todo mundo é amigo, sei não. Porque amigo se é voluntariamente.

   Não é por obrigação. Como na igreja, quem escolhe é Deus, este escolhe por Seus próprios critérios. Talvez haja gente na igreja, que a gente conhece, que a gente não escolheria.

   Deus escolhe por amor. E nos faz amigos dEle. Só falta a gente não querer, nem ser amigo dEle ou, dizendo-se amigo dEle não ser uns dos outros. Amizade é subproduto do amor.

   Quem não aprendeu a amar, nunca será um amigo verdadeiro. Será simulacro. Em Jesus, Deus nos torna amigo Seu. Para aprendermos a ser amigos dEle, de nós mesmos e uns dos outros.

   Amor neste Natal. Amor a cada dia de 2023. Amor todo o tempo em nossa vida, em nome de Jesus.
   

sexta-feira, 23 de dezembro de 2022

Já não são

"Todos os dias de Enoque foram trezentos e sessenta e cinco anos. Andou Enoque com Deus e já não era, porque Deus o tomou para si." Gênesis 5:23,24.

    Dá para calcular a dimensão da idade do pessoal do tempo de Enoque, comparada à nossa, dividindo por 10.

    Na matemática antiga, como aprendi ainda no primário, retira-se um zero ou se põe uma vírgula entre último e penúltimo número.

    Então, deduz-se que morreu jovem, numa idade metade da média de sua geração, porque 365/10 = 36,5, que dá 36 anos e seis meses.

   Mas importa a qualidade de vida que viveu. Ainda que de modo lacônico, o texto atesta que "andou com Deus": excelente síntese da existência.

   Não se trata de dizer "Enoque já era", gíria depreciativa, mas "já não era". E isso de já não ser, era porque Deus o tomou para si, sem efeito visual extemporâneo, como no caso de Elias.

    Não adiantaria procurar, como Elsieu advertiu, no caso de Elias, a seus discípulos ser inútil: Enoque não mais andava por aqui, no usual deste mundo. E não foi também morte usual, mas abrupta ruptura.

    Deixou de andar neste mundo, no sentido lato, de tanto que andou com Deus, no sentido nato, num sentido de um despojamento de requintes, absolutamente natural, sem prepotência e com reciprocidade, de parte a parte.

   Não de uma intimidade forjada ou espiritualidade afetada. Nem de uma escolha seletiva de Deus, pois não faz acepção de pessoas.

     Mas também não é para gente tão egolátrica, que se acha um "Enoque". É algo espontâneo e autêntico. Mas nada vulgar ou banal, como se Deus fosse "um (ou Um) da quebrada". Não é.

   Para Moisés, Deus disse descalça as sandálias. Isaías falou "aí de mim, vi o Senhor" (e nem viu, no sentido pleno). Daniel sentiu-se faltarem-se-lhe forças. Ezequiel atendeu-lhe os desígnios contrariado.

   Há um desnível óbvio de identidade. Deus criou o homem e mulher a sua, dEle, imagem e semelhança. Deus é santo, mas o homem e a mulher são decaídos.

  Embora no mundo de hoje correção moral esteja em desuso, para Deus, está valendo. Dá parte de Deus, sem impedimentos para andar conosco. De nossa parte, todo o impedimento.

   Pois é exatamente essa distância, entre as duas, Pessoa e pessoa, que Deus estreita. Mais do que aproxima, mantém comunhão.

    Com referência ao povo idólatra de Israel, o profeta Oseias menciona que Deus "atraiu-os com cordas de amor". Deus ensina a amar. Deus, no ser humano, restaura amor, visto que este não ama a si mesmo, não ama o outro e muito menos ama Deus.

   Porém há um traço distintivo no amor de Deus: autenticidade. O profeta Jeremias disse, certa vez, que o coração humano é enganoso. Aliás, radicalizou: disse ser desesperadamente corrupto.

   Não sabemos o que é amor. Deus ensina. Compartilha. Restaura em nós essa identidade perdida. Andar com Deus significa aprender assim. Ser tomado por Ele, definitivamente, para a Sua presença.

   E já não ser, antes mesmo que venha, ocasionalmente, o (ou um) arrebatamento, confere com o que Paulo diz aos Gálatas: "Não sou mais eu quem vive, Cristo vive em mim".

   Cristo é Deus encarnado. O Verbo se fez carne. Para, desse modo, andarmos com Deus. Deus se fez homem para, por meio do Filho, nos ensinar a ser humano. E a carta aos Gálatas termina, dizendo: "Andai no Espírito".

   É possível inscrever o nome na lista dos que andam com Deus. Elias e Enoque são sinais proféticos do arrebatamento. O mesmo Deus que nos "transportou do império das trevas para o reino do Filho do seu amor", vai nos arrebatar.

   Abruptamente vai nos arrebatar. E nem os mortos serão atrasados nesse dia. E os vivos serão, nesse mesmo momento, transformados. Já não são. Porque, desde sempre, Deus os tomou para Si. 

sexta-feira, 16 de dezembro de 2022

Fé e palavra

    "Ora, disse o Senhor a Abrão"  Gn 12,1. Sim, mas disse como? Ele intuiu? Foi audível? Literalmente? Enfim. "Eu e a minha casa serviremos ao Senhor". Js 24,15c. Mas como é isso?

   E quanto a Noé? "Porém Noé achou graça diante do Senhor. Eis a história de Noé. Noé era homem justo e íntegro entre os seus contemporâneos; Noé andava com Deus." Gênesis 6:8,9.

   Simples assim. Assim as Escrituras apresentam Deus, assim como os homens, tanto os que falaram com Deus, de Deus ou com quem Deus falou.

    Isaías afirma: "No ano da morte do rei Uzias, eu vi o Senhor", Is 6,1. Mas viu como? Tecnicolor, como se dizia antigamente? Analógico ou digital?

   O autor de Hebreus talvez tenha razão, quando diz: "Sem fé é impossível agradar a Deus", Hb 11,6. Não há como se avistar com Deus, ouvi-lo ou se dizer que é seguido, sem a mediação da fé. Portanto, há que se entender, de modo claro e preciso, fé.

    No caso de Josué, que disse "eu e a minha casa serviremos ao Senhor", bela decisão, palavras de efeito, mas somente proferi-las não garantiu, sem fé, que se concretizassem.

   No caso de se dizer "disse o Senhor a Abrão", ou disse a qualquer um, e vá lá quem mais seja, sem fé que Ele tenha dito ou sem fé, da parte de Abrão, ou da parte de, com quem, Deus fala, é Fake.

   E dizer, como no caso do, assim chamado, profeta Isaías, "eu vi o Senhor", aliás, corriqueiramente, o que mais se afirma, como disse Felipe a Jesus, "mostra-nos o Pai e isso nos basta", dizer-se "nunca vi Deus, então não creio", confirma-se que, sem fé, impossível.

    E para o caso de Noé, dizer que ele "andava com Deus", por isso foi justo e íntegro, tendo "achado graça diante do Senhor", e que isso se aplique a muitos outros, sem fé, impossível.

   Mas fé, no caso, não é, como se pensa, fechar olhos para a lógica e, romântica ou ingenuamente, acreditar nesses relatos ou depoimentos.

   Há quem interprete fé deste modo. Pessoas crédulas em Deus, ou num deus, ora, todas ou quaisquer delas devem ser tratadas com respeito. Todas as religiões merecem respeito.

   Corretíssimo, para essas pessoas e para todas as religiões: merecem respeito. Mas fé é específico para o relacionamento com Deus. E provém de Deus. Nem eu ou ninguém somos, por nós mesmos, capazes ou suficientes para crer.

    Somos naturalmente incrédulos. Portanto, quem não crê, nunca saiu do natural. Nem deve se recriminar, por isso. Aliás, a própria Bíblia chama de "homem (ou mulher) natural".

    Crer é sair do natural. Gosta-se muito, também, de dizer que acreditar em Deus não é científico. Assim como não é lógico. Por extensão, nem ciência e nem filosofia comprovam ou garantem Deus.

   Pois sair do natural, para crer, não é nem anticientífico e nem antifilosófico. Porque filosofia é a ciência do pensamento lúcido, lógico e inquiridor.

    E ciência é a descrição dos fenômenos físicos, químicos, quânticos etc. Ela cuida da explicação pormenorizada do que está ao alcance dos olhos. Vai explicitar o que se percebe.

   Espera-se da ciência precisão e cessação do desconhecimento de fenômenos do mundo físico macro e microscópico. Espera-se da filosofia a capacidade ordenada de gerir o raciocínio, voltado para o conhecimento da realidade.

    Fé está relacionada tanto à ciência, quanto à filosofia. Por necessidade de ser compreendida, deve ser inteligentemente, estar afeita aos princípios da filosofia. E por ser aplicável ao mundo físico, relacionada ao ser humano e a fenômenos decorrentes dessa relação, é também científica.

   Aliás, não haveria nenhum fenômeno do mundo real, como a fé, que não estivesse associado tanto a uma, a filosofia, quanto à outra, a ciência. Mas nenhuma das duas explica, de modo completo, ou esgota a definição de fé.

    Porque o objeto da fé é Deus, que não cabe dentro dos parâmetros da filosofia e nem nos parâmetros da ciência. Porque em seu agir, Deus situa-se acima da filosofia, porque o pensamento humano não o pode conter, e Deus situa-de acima da ciência, porque o poder e os feitos de Deus não se submetem às leis do mundo físico.

   Por isso, para compreender o que de Deus é possível e essencial na revelação dEle, no grau em que Ele se permite revelar, para ouvi-lo, segui-lo ou vê-lo, a fé é específica e é suficiente. Daí dizer que Deus fala, falamos com Deus, Deus chama, enfim, Deus ama.

   E homens falaram da parte de Deus, como a própria Escritura atesta. E o que falaram? Está escrito. Por que meio ouviram e por que meio falaram? Por meio da fé. E ela, de si mesma, é fidedigna.

   E por si mesma, suficiente. "O que de Deus se pode conhecer é manifesto, porque Deus lhes manifestou". Paulo Apóstolo. Aliás, é muito interessante colocar aqui essa perícope da carta aos Romanos: 

 "Porquanto o que de Deus se pode conhecer é manifesto entre eles, porque Deus lhes manifestou. Porque os atributos invisíveis de Deus, assim o seu eterno poder, como também a sua própria divindade, claramente se reconhecem, desde o princípio do mundo, sendo percebidos por meio das coisas que foram criadas". Rm 1:19,20.

   Basear-se na criação, para confirmar que ela expõe Deus, é concordar com o texto das Escrituras que diz: "E disse Deus, haja luz". Aqui concordam a Bíblia e a ciência, pois luz é fóton. E tudo passou a existir. O autor de Hebreus afirma que:

    "Pela fé, entendemos que foi o universo formado pela palavra de Deus, de maneira que o visível veio a existir das coisas que não aparecem." Hb 11:3.

   Portando, assim entendeu João: "No princípio era o Verbo/Palavra, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus [...] "E o Verbo se fez carne e habitou entre nós, cheio de graça e de verdade, e vimos a sua glória, glória como do unigênito do Pai." Jo 1,1 e 14.

   Essa é a palavra de fé. Como diz Paulo Apóstolo, a fé vem pelo ouvir. E o ouvir a palavra de Deus. Crês tu nisto?

    

terça-feira, 13 de dezembro de 2022

Origem das bem-aventuranças

 
Origem das bem-aventuranças do justo

    A palavra hebraica traduzida por "bem-aventurança", neste primeiro Salmo, significa dizer "todas as alegrias do homem". Já se disse que, segundo Aristóteles, a finalidade da filosofia seria a busca da felicidade.

   Pois esse anônimo Salmo de sabedoria afirma que ela está na leitura meditativa contínua das Escrituras. E, como contraponto, ou seja, o que se opõe ao empenho nessa tarefa será uma opção errada e gradativa por má influência.

   A vida humana medeia entre duas opções, numa crise constante, no entrechoque pelo que penetra, vindo de fora, no entendimento humano, e o que este pode produzir de original. Muitas vezes, sem saber ou admitir, estamos apenas, já despersonalizados, repetindo aquilo a que fomos, inconscientemente, induzidos.

   Aqui o salmista fala em más influências, definindo uma gradação de atitudes: andar, deter-se, assentar-se. Menciona um contexto pré-definido de doutrinação: conselho, caminho, roda. E indica o caráter dos que se apresentam como influenciadores: ímpio, pecadores, escarnecedores.

   O antídoto será o conteúdo da lei do Senhor. O tempo deve ser gasto em sua leitura e meditação diuturna, ou seja, pela sucessão de dias e noites. E o resultado disso se apresenta em uma das mais lindas metáforas das Escrituras.

   As árvores são um milagre de vida. Além de filtrar a atmosfera, absorvendo gás carbônico e devolvendo oxigênio, acolhem aves e demais animais em sua sombra, diminuindo a temperatura em seu entorno. Grande crime ecológico violentá-las.

  E na analogia deste salmo, a fonte corrente supre as raízes da árvore bem plantada, que supre com frutos e com folhagens que nunca murcham. Jesus, em João 7,38-39, afirma como fluem riso de água viva do interior dos que nele creem.

  Na símile de Jesus, como esclarece João, esse rio de água viva é o Espírito, que habita nos que creem. É fácil associar o Espírito à palavra de Deus, neste salmo indicada como aquela que supre a vida de quem a ela se apega.

  O salmista encerra apontando para uma congregação dos justos. Enquanto os ímpios se dispersam, por sua escolha equivocada, os justos se agregam, pela escolha certa que fizeram. Sem dúvida, pode-se afirmar ser a igreja essa congregação. 

   Seja a que, no deserto, pela suficiência de Deus, em torno do tabernáculo, foi formada. Seja a que o próprio Jesus afirmou que edificaria e assim o fez. Este salmo introdutório remete o justo para todo o conteúdo do saltério, assim como o predispõe a ler, meditar e cumprir toda a Escritura.




sábado, 10 de dezembro de 2022

Manoel Marques

  Considerava Gerson, Manoel Marques e Valdemir meus companheiros inseparáveis, nesse tempo em que estive em Curicica, de meados de 1982 até sua emancipação em 1988.

   Aqui vou falar de Manoel Marques, para depois mencionar os outros dois. Ele era presença constante em Curicica, uma vez que, com o "grupo dos 11", egressos da Congregacional de Cascadura, assumiram essa congregação.

    Vinha de mãos em mãos, rejeitada  como um trabalho num lugar remoto, na época um loteamento poeirento e esburacado, na Estrada do Guerenguê, Curicica, recanto da baixada de Jacarepaguá, ao qual se tinha acesso a partir do Largo da Taquara.

   Eu vinha da UERJ, onde iniciei o curso de Letras - Português e Hebraico, em 1982. Eu me matriculava em uma ou duas disciplinas a menos, sobrando assim uma noite na semana, para a reunião de estudo bíblico e oração em Curicica.

   Pelo precário da distância, vinha eu, no Fusca azul-céu, RV 2644, de meu pai, pela Grajaú-Jacarepaguá. Despencaria na Freguesia, acharia o rumo da Taquara e, pelos labirintos aprendidos com o diácono Gerson, que palmilhava cada recanto de Jacarepaguá, eu alcançava a Rua Arália 145.

    Às vezes chovia, como dizia meu pai, torrencialmente. Eu embicava o carro para entrar no terreno, naquela época menor do que o atual, que ocupa toda a esquina, e quem eu via ali, debaixo de um guarda-chuva, primeiro que todos, por ônibus, vindo ali de onde residia, na Vila das Torres, em Magno: Manoel Marques.

   Dali a instantes chegava Emilzair, que trazia pelos braços Rafael, o caçula, ao colo, e Roberto, com uma sombrinha maior do que ele. Ela vinha também com as chaves. A gente entrava, a chuva continuava, torrencial, cantávamos, orávamos, estudávamos a Bíblia.

    Roberto dormia recostado ao colo da mãe, Rafael nesse mesmo colo. Era muito divertido, e aqui o sorriso engraçado de Manoel Marques, quando ouvia Emilzair dizer que, por causa de somente a zeladora, com a chave, o pastor, por obrigação, e o Manoel Marques, por tudo o mais, amor e prontidão, era melhor fechar essa congregação.

   Valia o sorriso de Manoel Marqeus. E o que Emilzair dizia, não quer dizer o que parece. Mulher virtuosa, de senso prático, fé inabalável e operosa. Mas era analítica.

    Porém essas suas palavras foram mais estímulo, tão certo e garantido que, hoje, está lá a igreja que, de um lote espremido, hoje tem toda a esquina ocupada e um templo ampliado construído.

    Manoel Marques contou-me sua conversão, já adulto e depois de casado, assim como o modo como orava, continuamente, pela conversão de todos os filhos e filhas. Descrevia sua vida na juventude, na zona rural onde vivia, suas valentias e a educação recebida dos pais.

    Era valentão de esnobar os rapazes da época, no lugar. Disse que punha na mão deles um porrete, deitava no chão e mandava bater, mas bater mesmo. Antes que conseguissem, já estava de pé, já havia tomado o porrete e já intimidava o agressor.

   Contou também que, nos bailes da roça, ele se alinhava com os paletós de linho da moda, com aquelas golas enormes. Ele disse que, por detrás da gola estilosa, escondia seu punhal. Mas não escondia que seu desejo era, nas brigas ocasionais que sempre havia, poder usar sua arma branca para sangrar alguém.

    Mas Manoel Marques reconheceu sempre, nessas conversas, que a providência de Deus, já nessa época, dele cuidava. E sua obediência foi fundamental. Ele contava que, embora nada soubesse do evangelho, a instrução de seu pai, como a Bíblia sempre recomenda, ele nunca esqueceu.

    O pai, disse ele, um dia o chamou e instruiu sobre três lições que ele nunca esqueceu e nunca deixou de praticar. Segundo ele, o pai o ensinou, dizendo:

    "Meu filho, sempre trabalhe com honestidade, construindo tudo por seu próprio esforço. Mantenha-se afastado da bebida, nunca prove e nunca dependa do seu vício. E quanto a mulheres, tenha sempre somente a sua, sempre respeite a filha dos outros".

   Manoel Marques nunca esqueceu e nunca deixou de praticar essas três lições. Conversando comigo no ônibus Taquara-Cascadura, ele disse:

    "Pastor, hoje reconheço como Deus me guardou na juventude, protegido do meu gênio de valentão. Nunca houve brigas nos bailes que frequentei". E dava seu sorriso celestial, lembrando como se irritava, ainda como não crente, quando sabia que, exatamente no baile que faltou, o pau havia comido.

    E ainda quando jovem, e mesmo depois de casado, sendo assediado por mulheres que gratuitamente o provocaram, sempre fugiu de relações fortuitas. E nunca provou bebida alcoólica, ainda e mesmo antes da conversão, assim como sempre praticou trabalho honesto.

   Sua luta com a quantidade grande de filhos foi dura e difícil, mas sempre leal e honesta. Manoel Marques era assíduo leitor da Bíblia. Um dos fatos mais sofridos que passamos juntos foi a perda de um dos seus filhos.

   Esses dois, Jair e Jadir, e mais a irmã Juremir, eu conheci em Cascadura desde que lá cheguei, em 1966. Certa vez, ele me chamou para conversar com Jair. Estava já adulto, mas seus pais avaliavam que não deveria estar próximo às companhias que escolhia.

   Lembro ter conversado com ele, na Vila das Torres, provavelmente num domingo à tarde, reforçando o que seus pais já o orientavam fazer. Jair me tratou respeitosamente, o seu sorriso em muito lembrava o de seu pai, de poucas palavras, concordou com tudo e foi convidado a retornar à igreja, onde já havia estado, conhecendo todos os benefícios.

    Foi a última em vez que nos vimos. Porque numa noite, eu chegava no Meier, vindo da UERJ. O telefone tocou, era d. Maria, sua mãe, dando notícia que o corpo de Jair jazia na Estda. do Portela, em Madureira.

   Manhã muito cedo cheguei à cada do irmão Manoel Marques, na Vila das Torres. Eu o encontrei de Bíblia aberta, no texto:

     "Honra teu pai e tua mãe, para que se prolonguem os teus dias na terra que o Senhor , teu Deus, te dá." Êxodo 20:12.

   E ele, então, eu ainda de pé, à porta de sua casa, ouvi-o dizer: "Pastor, Jair ouviu pai e mãe? Ele ouviu o irmão? Se ele não honrou pai e mãe, seus dias na terra não se prolongaram".

   Reconheci essa aplicação clara e direta do texto, feita pelo Pai, de coração cortado, na manhã do dia do sepultamento de seu filho. Indo ao velório, usei esse mesmo texto, soando como exortação e advertência, que a palavra de Deus se cumpre, ainda que doa, quando não atendida.

   Exemplos de orações pelos filhos, atendidas, como no caso da cura de José Batista e no trato amoroso, com Joel, a quem o Pai atribuía aquele temperamento que um dia teve, assim procedia com relação a todos, filhos e filhas. Ele sempre testemunhava a reposta favorável de Deus.

   Manoel Marques não era exibido, orgulhoso, esnobe. Homem simples, de palavra sábia, íntimo de Deus, modelo em sua família, em seu bairro, trabalho, nas igrejas por onde passou: Magno, Cascadura e Curicica.

   Como é precioso, como pastor, deparar ovelhas como essas, que tanto nos ensinam. Elas que nos são modelo. Referenciais na igreja. Igreja, como Jesus idealiza e efetiva, é um local rico em se constatar a obra de Deus realizada na vida de cada um de nós.  

Galeria Heróis da Fé

Da esquerda à direita: Paulo César, atrás, Dagoberto, Manoel Marques, Ricardo, o mais alto, e Jorge Trugilho, este membro em Curicica, como M. Marqeus.

   Falar da gente dessa geração é lembrar igreja. Com ela vamos lidar pra toda a vida. E depois, ainda, desta vida. Pois igreja somos nós, noiva de Cristo. O céu nos espera para as bodas, uma festa que nunca mais vai terminar.

   Neste texto quero falar de Manoel Marques. Eu que pensei que não tinha nenhuma foto dele. Mas seu rosto aparece ao lado de Dagoberto, na foto do texto anterior.

   Menciono minhas experiências com ele. Assim como falei de tantos outros. A gente, que é pastor, automaticamente, para usar este termo, traça um perfil de cada ovelha. Como já mencionado no texto anterior, virtudes e defeitos.

   Mas não pensem que pastores são imunes a defeitos. Aliás, em minha tentativa de fuga, coloquei-os, diante de Deus, como desculpa (esfarrapada) e argumento. Não deu certo.

    Então encarei. Minha ordenação foi solicitada numa das assembleias de Cascadura, a pedido do Presb. Jeconias. A ordenação (há um texto nesse blog sobre ela, link no final) deu-se em 2 de janeiro de 1983 e o primeiro pastorado foi indicação da igreja para a Congregação de Curicica.

Cascadura, como nos anos 60. Provavelmente a senhora seja d. Ana Jardim, mãe dos pastores Amaury e Henrique Jardim.

   Lembro do convite, que foi confirmado pelos irmãos da congregação. A vontade de fugir persistia. Certa vez, sentado no coro, em Cascadura (que ficava por detrás do púlpito), final de culto, avistei o na época diácono Gerson e seu inseparável amigo Valdemir entrando pelo portão.

Aspecto atual do templo, desativado e vendido.

   Vinham cobrar de mim uma resposta ao convite feito, lá em Curicica, no domingo anterior. E comecei lá com eles. Manoel Marques, residente e membro na congregação da Vila das Torres, em Magno, coladinha em Madureira, foi benção por onde passou.

Novo local da igreja, com outro nome. Nesse terreno, em 1972, iniciaram-se as reuniões do Clube Bíblico, posterimente em Bento Ribeiro.

   Família linda e numerosa. Eu acho que são 10 filhos. Ele e sua esposa Maria eram firmes na congregação de Magno, firmes em Cascadura, assim como em Curicica. Um casal de um sorriso celestial, os dois. Ele me contava trechos de sua vida e experiência com o evangelho.

Templo atual da Congregacional de Curicica, agora denominada Congregacional de Jacarepaguá

    Veio da zona rural do Estado para a capital, deixando a vida de agricultor, pela de operário fabril, e residia na Vila das Torres. Esse nome era por causa das linhas de transmissão da Light, que percorriam bairros sucessivos.

   Podiam ser avistadas desde lá da Rua João Romeiro, encostada ao morro do Fubá, onde começava uma horta imensa, que acompanhava o percurso das torres, com suas linhas de transmissão, por ser proibido construir casa por debaixo dessa rede de energia.

Vila das Torres sendo demolida para a construção do Parque de Madureira. Reportagem no link:

    Próximo à estação de Magno, acompanhando a linha férrea, de um lado, e o percurso dessa horta, que ia até os lados de Turiaçu, havia um alinhamento de casas, alguns sobrados, onde residiam Milton e Edinalva, Manoel Marques e Maria e o casal Possidônio e Rita.

Horta que acompanhava o percurso das torres de transmissão. Começava na João Romeiro, próximo ao Morro do Fubá, até os lados de Turiaçu.

   Pois o quilate de fé desses irmãos merece um texto à parte. E vamos detalhar o que a memória nos permitir, certos do eco que vamos reverberar na memória de tantos outros aqui que compartilharam a comunhão com esses irmãos. 

    Benção de ser igreja. Então aguardem. E no link abaixo, leia sobre a história da estação de Magno.


Sobre ordenação:

sexta-feira, 9 de dezembro de 2022

Porta do céu


  Na verdade, gente, eu queria uma foto do Dagoberto. Como sempre, compartilhar o que essa gente nos traz como recordação. E ficamos à vontade, porque é igreja. E nela, quem faz a escolha não somos nós, mas é o Pastor.

   Esse, com "P", a quem Pedro denomina "Pastor e Bispo de nossa alma", é Jesus. E como foi essa foto que achei (ele com paletó claro e gravata amorenada), resolvi recordarmos juntos todos esses rostos que aí estão. 

    Faltam muitos na foto. Mas esses bastam para que a gente, de novo, enquanto espera o céu, o dia do grande encontro, reviva essa fase tão boa de nossa vida. Creio que há marcadas, em comum, na vivência das experiências, muitas lições decorrentes dessa fase.

  Dagoberto, pelo pouco de que conheço, e que muito mais, com ele, desejaria conversar, converteu-se com o Rev. Porto Filho, em Campo Grande. Seu batismo custou um pouco, segundo um dia me contou, por seu apego ao cigarro.

   Ainda que já novo convertido, lutava contra essa dependência. Mas a paciência do pastor dele nessa época, muito ajudou. Porto Filho não o pressionava e, pelo modo típico de lidar com suas ovelhas, conquistou Dagoberto.

   Mas rápido do que ele pensava, venceu esse vício. Certa vez, também me confidenciou problemas sérios que enfrentou em seu primeiro matrimônio. Porém superou, com o vigor da fé de um agora novo convertido.

  Dagoberto era um bom de bola. Pastor Henrique Jardim, na época ainda presbítero, fosse no CEFAP, em Sulacap, ou no Quartel dos Bombeiros, no Campinho, patrocinava as famosas peladas de futebol de salão.

  Ele era o símbolo da tranquilidade e da conciliação. Seu estilo era bem característico. Pode-se dizer que não era um super craque, mas era inteligente e criativo, sempre com jogadas muito bem trabalhadas.

   Esse mesmo estilo manso, fala macia, jeito amável, um conselheiro de todo o momento, ele demonstrava em sua vida na igreja. Nunca faltava. Caso não fosse visto, ora, podem procurar saber, doença na certa.

   Visitador, amigo, companheiro inseparável do diácono, hoje presbítero Isaías. Aliás, Dagoberto colava com todos. Pedro Régis e Azarias também foram outros dois com quem visitava faltosos, evangelizava pelas ruas, enfim, dava a assistência que fosse requerida.

   De pouca fala, quase que pedindo licença para interfeir, não era de ser ouvido nas assembleias de membros. Mas caso se fizesse necessário, sua voz seria sempre de pacificação. Aliás, esse era um em quem as bem-aventuranças estavam patentes. 

   Quantas vezes compartilhou comigo sua opinião. Fui pastor dele no tempo em que estive nesse encargo em Cascadura, entre 1983 e 1994. Mas o conhecia desde que lá cheguei, em 1966. Fazia gosto ouvir suas sábias intervenções ao meu pé de ouvido.

   Dagoberto era sábio. Tenho certeza de que este texto pode ser muito mais longo, se cada um que o conheceu expuser aqui o bem que seu conselho, ponderação e presença próxima beneficiaram.

   Magno, antiga congregação dos anos 60, e Curicica, já dos anos 70 e 80, contaram com sua ajuda. Os obreiros que por ali passaram podiam contar com o apoio dele. Aliás, ao seu lado, nessa foto, aparece o rosto de outro herói de fé desses anos.

   Manoel Marques (rosto à direita de Dagoberto) esteio forte tanto em Magno, quanto em Curicica. E nessa foto aparece Ricardo (rosto acima de Manoel Marques), irmão de Heloísa, esposa de Roberto, pais de Roberta, amigo meu de infância, no Meier, convertidos e batizados em Cascadura.

   Meus sogro e sogra, que o foram a partir de janeiro de 1993, quando casei com Regina, vindo para o Acre em janeiro de 1995, onde até hoje estamos. 
  
   Minha mãe aparece no cantinho, à esquerda (coladinha a Renata). O hoje pastor (e avô) Eneas (erguendo a Bíblia), com sua irmã caçula, Renata, e Nathalie e seu pai (rosto à esquerda de Dagoberto) que, como outros nessa mesma foto, agora contando com Dagoberto, já estão com Jesus.

   A igreja continua. Ela não tem fim. Juntos todos estaremos um dia. Essa promessa tem a garantia de Jesus. E os traços que aqui, pelo poder do evangelho, marcaram e marcam nossa vida, não vão desaparecer.

   Nosso irmão e amigo vamos encontrar, com esse mesmo jeito manso, cuidadoso em mencionar qualquer assunto, ponderado e sábio em suas abordagens. 

   Havia um salãozinho, lembram, onde ficava aquele cofre enorme, blindado, do qual somente o irmão diácono Isaías, o eterno tesoureiro, e seu regra-dois, Heraldo (também na foto), sabiam o segredo.

   Mais acima, na parede de fundo, havia uma Galeria de Heróis da Fé. Um rosto feminino, de cujo nome não me lembro (acho que era Maria, avó de Marisa, bem na extrema direita da foto, com sua filha ao centro), o esposo de d. Maria Melo, ora, lembrem o nome, por favor, e outra coluna de Magno, este o diácono Guedes.

   Sim. Falta muita gente nessa galeria. Heróis e heroicas mulheres de fé. Gente como a gente. Virtudes e defeitos. Mas alvos do amor de Jesus, escolhidos  que fomos por ele. 

   Lindas marcas. Doce saudade. Saudade do céu. Como disse Jacó, certa vez, porta do céu. A essa porta comparo nossa igreja. Aliás, todas elas. Glória ao Autor de nossa fé.

    Veja no link abaixo um hino que fala de amizade e desse encontro que aguardamos. O autor é de uma geração um pouco à frente de Dagoberto, mas dessa mesma igreja, contexto e pastor que nos legou esse tão precioso irmão.



quinta-feira, 8 de dezembro de 2022

Mania de Maria

   "Respondeu-lhe o Senhor: Marta! Marta! Andas inquieta e te preocupas com muitas coisas. Entretanto, pouco é necessário ou mesmo uma só coisa; Maria, pois, escolheu a boa parte, e esta não lhe será tirada." Lucas 10:41,42.

   Texto clássico, deveras citado para enfatizar o essencial. A crítica à Marta não era porque não se deve ter nenhuma preocupação com os demais afazeres.

   Principalmente os domésticos, tão necessários e tão apreciados, marca positiva de hospitalidade. Mas também é provável que Jesus, como sempre, pretendia ir além com essa exortação a Marta.

   O "preocupada com muitas coisas" ali talvez incluísse outras que Jesus conhecia, ele sempre conhece, e quis aproveitar a chance de ampliar os efeitos de sua palavra, típico dele.

   Provavelmente a ansiedade, tão corriqueira e tão destrutiva, sobre a qual num outro texto, desta vez no chamado Sermão do Monte, sobre os efeitos dela discorreu. Paulo exagera, afirmando que não devemos estar ansiosos de coisa alguma. Dificílimo.

    Mas voltando a Maria, o que mesmo, especificamente, ela escolheu? Jesus chamou de "a melhor parte". E ela correspondia ao que o texto, pouco antes do trecho acima citado, indica, referindo-se a Marta:

   "Tinha ela uma irmã, chamada Maria, e esta quedava-se assentada aos pés do Senhor a ouvir-lhe os ensinamentos." Lucas 10:39. Mania de Maria. A questão é se hoje, quando e como ainda é possível fazer como Maria.

   Jesus tinha, melhor, tem, porque, com relação a Ele, não dá para usar o verbo no pretérito. Tem mania por ensinar. A gente pode até lembrar uma característica antiga das crianças, o gosto por histórias.

   Mas histórias contatadas por adultos, sim, até mesmo por outras crianças, pré ou adolescentes, mas criança gosta de conversa. Muito embora os adultos atuais têm posto smartphones nas mãos delas.

   Também, quem ou quais adultos ensinam coisas de Jesus a elas? O quais adultos têm hoje a mania de Maria? A preferência de Maria. Perguntaríamos, portanto, se hoje ainda é possível ouvir Jesus.

   Ou se chega límpida a nós a voz dele. Com que ruídos ela chega? Ruído, em linguística, é o que atrapalha ouvir, o que distorce a mensagem.

    Talvez seja o Espírito, prometido por Jesus, numa de suas conversas, quem cuide por manter límpido o canal por onde flui qualquer mensagem, neste caso específico, a de Jesus.

   Uma das coisas simples e essenciais é ouvir, atentamente, os ensinos de Jesus. É a melhor parte. Mania de Maria. Não lhe será tirada.

quarta-feira, 7 de dezembro de 2022

Alto e nítido

  "Eu sei, respondeu a mulher, que há de vir o Messias, chamado Cristo; quando ele vier, nos anunciará todas as coisas. Disse-lhe Jesus: Eu o sou, eu que falo contigo." João 4:25,26.

   "Eu sei", falou a samaritana, anônima na Bíblia. Pois bem, há quem não saiba, quem não quer nem saber e quem, simplesmente, nem acredita nisso.

   Mas ela sabia que o Messias (hebraico), chamado Cristo (grego) havia de vir. Mal, quer dizer, bem sabia que estava diante dele. Jesus disse a ela: "Eu o sou, eu que falo contigo".

   Nessa altura, após anos, quem sabe, séculos de tradição, a primeira pergunta besta que se faz é se podemos acreditar na literalidade desse diálogo. Eu acredito.

   A segunda pergunta, para ficar só nesta, é se ainda hoje podemos ouvir de Jesus essa mesma afirmativa, ou seja: "Eu o sou, eu que falo contigo".

   Haveria de ser muito místico quem respondesse afirmativamente. Opcional colocar aqui uma interrogação. Porque, talvez, cara a cara, como foi com essa mulher, a resposta é não.

   Mas ouvir Jesus falando hoje, não cara a cara, mas com a mesma precisão, seria possível? Com interrogação. Ora, em nome dessa posse da fala de Jesus muito, na história, já se fez, com toda a estupidez.

   A Igreja, ao longo dos séculos, quis ser dona dessa fala, quis ter a posse dessa palavra. Foi um erro histórico. Em nome da ortodoxia, muito desatino já se cometeu, aliás, ainda se comete.

    Ouvir Jesus e ouvir interpretações sobre Jesus. O primeiro erro é a usurpação da palavra. Alguém achar-se iluminado, revelado ou individualizado no acolhimento da palavra.

   A própria samaritana compartilhou o que ouviu e a autenticidade do que disse foi atestada pelos que ouviram e creram: "Vinde comigo e vede um homem que me disse tudo quanto tenho feito. Será este, porventura, o Cristo?!". João 4:29.

   E os seus companheiros atestaram: "Muitos outros creram nele, por causa da sua palavra, e diziam à mulher: Já agora não é pelo que disseste que nós cremos; mas porque nós mesmos temos ouvido e sabemos que este é verdadeiramente o Salvador do mundo." João 4:41,42.

   Mediadores aqui são João, o autor do evangelho, a samaritana e seus conterrâneos. Assim chegam a nós as palavras de Jesus. Logo no começo da vida da igreja, Lucas, outra testemunha autoral, afirma: "E perseveravam na doutrina dos apóstolos". Atos 2:42.

   Sim, a palavra de Jesus, que veio por sua boca, chega a nós por meio de pessoas como nós, que viveram na época dele, conterrâneos, mas também estranhos, depois gentes de todas as nações, mas todos testemunhas.

   Caso você não acredite em gente como você, porém, diferentemente, testemunha, não tem como ouvir de Jesus "Eu o sou, eu que falo contigo". Ele chamou de igreja, ekklesia, congregação, grei, grupo essa reunião dos que nele creem.

   Podem se reunir nas varandas do templo de Jerusalém, nas areias do Mar de Tiberíades, no jardim das oliveiras. Ou em casas, como com os Kalley, até em túmulos subterrâneos, como na Roma antiga, ou na beira do igarapé, com o casal Rosa, no Acre, em 1984.

   Mas terão ouvido a voz de Jesus. Seguem ouvindo a voz de Jesus. Aloud, como se diz no inglês. Alto e nítido, como se diz no português.

domingo, 4 de dezembro de 2022

O simples ou, mais ou menos, o que fazer do evangelho.

   "Vem e segue-me". Ouvida essa frase curta e basilar do evangelho, a gente talvez sentisse dificuldade para entender e explicar.

  Seguir Jesus. Mas o que hoje se fez desse personagem? Dizer que ele mudou a história, definiu o calendário e foi exemplo de vida, soa dispersivo e superficial.

   Compreender o que significa segui-lo, é essencial. Simples assim. Pois foi tal simplicidade e profundidade a grande perda do que significa seguir Jesus.

   O que fizemos do evangelho? Jesus veio dizendo ser uma boa nova, o sentido desse vocábulo. O sentido dessa mensagem. Que mais tem a dizer?

   Em que sentido segui-lo? Afirmou ser o caminho, a verdade e a vida. Caminho representa as escolhas da vida. Verdade está ligada ao caráter cultivado.

    E vida significa a plenitude do que a existência representa. Seguir Jesus, caso se deseje tomar como pista somente essa afirmação dele, tem, pelo menos, essas implicações.

   Portanto, seguir esse homem é estar atento ao que ele diz. Sim, porque acima de apenas garimpar as palavras ditas por ele, registradas nas Escrituras, é possível e necessário ouvi-lo hoje.

   Porque o ponto sensível de sua história é crer em sua ressurreição e que hoje ele fala. Caso não se acredite em sua ressurreição, de nada adianta buscar suas palavras.

   Porque reside no poder de sua ressurreição a capacidade de se lhe ouvir o que diz. Dar crédito, acolher e praticar. Seguir Jesus é acolher para si sua palavra.

   Mais ainda. Ter comunhão com ele. Há no poder da ressurreição dentre os mortos, esse mesmo poder que opera naquele que crê, a capacidade de se manter comunhão com Jesus.

   E para ser assim, ele ensinou que não é preciso tanto, mas o simples é essencial. A Marta, com a agitação típica de mulher, ele disse:

"Respondeu-lhe o Senhor: Marta! Marta! Andas inquieta e te preocupas com muitas coisas. Entretanto, pouco é necessário ou mesmo uma só coisa; Maria, pois, escolheu a boa parte, e esta não lhe será tirada." Lucas 10:41,42.

   Ao pai, em oração, certa vez destacou que não são a sábios e super entendidos que Deus revela seu simples:

"Por aquele tempo, exclamou Jesus: Graças te dou, ó Pai, Senhor do céu e da terra, porque ocultaste estas coisas aos sábios e instruídos e as revelaste aos pequeninos." Mateus 11:25.

   E para escândalo da mentalidade judaica de seu tempo, se já havia enaltecido as mulheres em várias ocasiões, desta vez expôs uma criança como modelo:

"E Jesus, chamando uma criança, colocou-a no meio deles. E disse: Em verdade vos digo que, se não vos converterdes e não vos tornardes como crianças, de modo algum entrareis no reino dos céus." Mateus 18:2,3.

   Difícil aprender com as crianças. Não entendemos o que é ser adulto, de modo pleno e completo. Manter a mesma curiosidade delas. Ser pronto em obedecer, aprendendo a depender dessa obediência.

  E uma vez flagrados no erro, admitir, chorar por ele e pedir perdão. Entre outras qualidade que, nelas, são espontâneas: sinceridade, companheirismo, facilidade de solucionar conflitos e disposição para aprender todo o tempo.

   Jesus foi um menino curioso pela Bíblia de seu tempo, como foram os crentes de Bereia. Hebreus diz que ele aprendeu a obedecer, ainda que seja sofrido. Também afirma Hebreus que em tudo, como nós, foi tentando, vencedor em todas as vezes.

   E como afirma Isaías, o mais experimentado em dores, o que sabe o que é parecer, e, desprezado pelos homens, intercedeu por todos eles. Um homem que era e ainda é o inverso da mídia.

   Tenhamos cuidado para não ficar com ela e rejeitar ele. Tenhamos cuidado para não aderir a ela e rejeitá-lo:

"Porque foi subindo como renovo perante ele e como raiz de uma terra seca; não tinha aparência nem formosura; olhamo-lo, mas nenhuma beleza havia que nos agradasse. Era desprezado e o mais rejeitado entre os homens; homem de dores e que sabe o que é padecer; e, como um de quem os homens escondem o rosto, era desprezado, e dele não fizemos caso." Isaías 53:2,3.

  Mas ele: 1. Tomou sobre Si as nossas enfermidades, ou seja, todo o pecado; 2. Foi traspassado, física, psicológica e espiritualmente, pelas nossas transgressões; 3. Assumiu sobre ele o castigo que nos traz a paz; 4. Foi pisado, para sermos sarados; 5. A gente se desviava no caminho, mas somos agora reunidos porque o peso da iniquidade, nossa antiga personalidade, está sobre Ele.

   6. Oprimido, humilhado, mudo, perante seus torturadores, não reclamou de todo o sofrimento em nosso lugar. Você crê nisso? 7. Foi violentamente cortado da terra pelo rotineiro juízo opressor, prática corriqueira entre os homens; 8. Ferido por minha e tua transgressão; 9. Sem injustiça ou dolo em toda a sua vida, como se fosse um perverso, foi designado à sepultura, embora acolhido por José de Arimateia.

   10. A Deus tudo isso agradou. Jesus é o único sacrifício agradável a Deus. A nossa entrega a Deus, como sacrifício vivo, por meio de Jesus, de modo racional, como diz Paulo, mais do que somente, e enganosamente, emotivo, é que nos permite atentar com o simples, mas essencial, de Deus.