quinta-feira, 31 de dezembro de 2020

Agenda realista

 "Contudo, o Senhor, durante o dia, me concede a sua misericórdia, e à noite comigo está o seu cântico, uma oração ao Deus da minha vida". Salmos 42:8


Oração é necessidade: Não podemos viver sem ela. A não ser que a nossa escolha seja viver à revelia de Deus, isto é, como se Ele não existisse. Será essa sua escolha para cada dia do ano novo? A relação com Deus é vital para nós. 

Oração é maturidade: O que você vai pedir? Que tipo de vida você espera no ano novo? Uma entrega total e incondicional a Deus ou apenas jogar com o teu prognóstico? O que se diz na oração reflete nosso grau de maturidade na relação com Deus. 

Oração é capacidade: Se a prioridade para o novo ano for Deus, Jesus disse "sem mim, nada podeis fazer". Para uma vida dedicada totalmente ao Senhor dependemos da capacidade do Espírito Santo agindo em nós. Se a sua prioridade for Deus, a cada dia, somente por meio da oração, todos os dias.

      A sua posição em relação à igreja é que vai definir sua vida com Deus. Se você continuar achando que tudo na sua vida merece seu compromisso, competência e prioridade mas, com relação à sua igreja, qualquer outra desculpa supre o seu descaso, você já tem um motivo para uma grave oração e rever seu interesse e sua maturidade com Deus. 

     Se você tem a minha idade, pouco mais, pouco menos, refaça a sua agenda com Deus, porque está na reta final de sua vida e, se sobreviver ao COVID e suas novas cepas, tem, talvez, 1/3 de sua existência para aproveitar no serviço do Senhor. 

      Se tem meia idade e ainda está criando os filhos, que estão na infância, pré ou na própria adolescência, procure ensinar a eles, por meio de seu próprio exemplo, que a igreja não é uma opção na vida deles, mas deve ser a prioridade, pelo que ela representa na comunhão com Deus. 

      Para você adolescente, jovem, que está começando a compreender e a treinar as responsabilidades de sua vida, faça a sua principal escolha, entregando a Deus toda a sua vida e colocando suas decisões debaixo da sabedoria de Deus. 

     Não trate a igreja de modo irresponsável. Ali está todo o aprendizado com a Palavra de Deus, nela treinamos o amor a Deus e ao outro, que nunca se separam, e nela questionamos nossa própria maturidade e personalidade, e isso para toda a vida.

     E para você que é criança, não mais de colo, já tendo começado na escola, faça a sua escolha, independentemente do bom ou mal exemplo de seu irmão, amigo, colegas e até de seus pais, como, infelizmente, às vezes acontece: diga a Deus que Ele vai ser sua prioridade desde já, desde sua infância, porque você já entende isso.

    O ano novo de 2021 somente será prognóstico de uma loteria ou vivido ao acaso se você assim escolher. Caso você decida viver para Deus e na dependência dele, ainda que venham provações, como vieram para tantos neste ano de 2020 que termina, haverá vitória e perseverança, como ensina Tiago:

"Meus irmãos, tende por motivo de toda alegria o passardes por várias provações, sabendo que a provação da vossa fé, uma vez confirmada, produz perseverança. Ora, a perseverança deve ter ação completa, para que sejais perfeitos e íntegros, em nada deficientes". Tiago 1:2-4

     Sejamos realistas. Coloque  Deus na sua agenda. Agora, sim, com Deus, feliz ano novo.

segunda-feira, 28 de dezembro de 2020

Desmantelo e inoperância: quando a palavra mente. A profecia de Jeremias e o descrédito do discurso

      A ruptura cultural de Israel, ou o que restava dele, no reino de Judá, por ocasião da invasão dos babilônios, em 587/586 a. C., contribuiu, por um lado, para o seu desmantelamento definitivo e, por outro, para a sua reconstrução.

     O Israel que existia ou que a tradição das Escrituras do Antigo Testamento desenham, pretendia-se que fosse uma vitrine às nações, coerente entre vivência e culto ao Deus único, o Deus vivo, associado às rigorosas exigências éticas específicas.

     O conjunto dessas exigências incluía modelo de justiça social, coerência entre culto e vivência prática e a não aceitação de intercâmbio com os ídolos das demais nações. Talvez fosse exigir demais de um povo que, no Egito, como escravos, já havia compartilhado de cultos espúrios, flagrantemente contra o modelo que Moisés desejou implantar. 

      Desde o Êxodo, representado no concerto do Sinai, pretende-se para Israel um "sacerdócio às nações", ou seja, ser modelo de vivência prática com Deus e modelo ético de conduta aos outros povos. Para isso, os três códigos que lhe são legados, o Código Civil, no Êxodo, cujo núcleo são os 10 mandamentos, o Código de Santidade, no Levítico, e o Código Deuteronômico delineiam sua identidade, na relação com Deus, com as demais nações e na fixação diferenciada do cerimonial de sua religião. 

      A história das tradições escritas que vão modelar esse perfil de nação, ao mesmo tempo em que denunciam e acusam os seus desvios, definem-se por ciclos, em sua formação, deduzidos a partir da história do povo, estruturados em unidades de textos que compõem as Escrituras, no caso aqui as do Antigo Testamento. 

      Portanto, desde o desmantelamento do reino do Norte, invadido pelos assírios em 722 a. C., supõe-se que houve fuga de sacerdotes para o reino do sul, levando consigo tradições escritas daquela parte do reino como, por exemplo, o ciclo de histórias de Elias e Eliseu, assim como as profecias escritas de Oséias e Amós. 

     Processo semelhante com relação ao Pentateuco, as tradições escritas de Moisés, recolhidas e estruturadas ainda na época de Salomão, quando houve um período de paz que propiciava essa atividade, assim como outras tradições acrescentadas ao longo da história, como a da centralidade do culto no templo, típica do Deuteronômio, constituíram-se nos blocos que, continuamente, formaram os núcleos dos reagrupamentos dos textos bíblicos. 

       Com o Exílio em Babilônia, que configura o declínio total do povo, pouco se pôde manter como herança histórica e cultural, restrito aos sobreviventes, o grupo a que Isaías vai chamar de "restante fiel", surgindo um elemento catalizador, representativo da identidade do povo que, a partir dessa época, vai adquirir um valor talvez nunca antes mensurado nessa proporção, que são as Escrituras do Antigo Testamento, a Tanach hebraica. 

      Tanach é a abreviatura de Torah, lei, que se trata do Pentateuco. Os Nebihim, profetas, que trata dos livros de Josué e Juízes, Samuel, Reis, profetas maiores e menores. E os Ketuvim, a terceira e última parte do cânon judaico, incluindo Esdras/Neemias, as Crônicas do reino, Daniel e os livros poéticos. Nesta parte também estão os denominados cinco rolos, Cânticos, Rute, Lamentações, Eclesiastes e Ester, lidos nas sinagogas por ocasião das festas judaicas. 

     O despertamento para a relevância das Escrituras, a Tanach hebraica, no exílio, está representado na rapidez da menção, no livro de Daniel, de sua dedução, pelos escritos de Jeremias, da época de retorno do exílio, previamente profetizada desde os dias de Isaías, a se definir pelo decreto de Ciro, o soberano persa. Isso demonstra a importância adquirida pelos escritos de Jeremias, ainda durante o período do cativeiro babilônico que, de profeta rejeitado e desacreditado, no início desse ciclo, tem seus escritos aceitos, quando o colapso que previa efetivamente se realizou. 

      A coleção dos livros do Antigo Tratamento, coligida como fator de integração no tempo do exílio, assim como valorizada depois dele com a continuação do ministério do escriba Esdras, será um decisivo fator de identidade do povo hebreu e manutenção de sua unidade através da história. As Escrituras serão lidas em grupo, num contexto de outro micro-universo tão decisivo para a manutenção da coesão do povo, sua religião e cultura, que foram as sinagogas, surgidas nesse período e, através dos tempos, desde a antiguidade, através do império romano, da idade média e até hoje fator de unidade, agregação e identidade do povo judeu.

      Definitivamente, após o retorno do povo judeu do exílio, em 536 a. C., nunca mais se notificou idolatria em seu contexto. Aliás, documentos canônicos como Daniel e os livros de Esdras/Neemias indicam a repercussão do culto monoteísta dos hebreus no contexto da religião babilônica, assim como no contexto da religião persa, império que deu continuidade à ocupação da Mesopotâmia e que permite o retorno do povo à Palestina. 

      E no tempo da dominação grega, que se inicia por volta de 333 a. C., o período de independência dos judeus, ocorrido após a morte de Alexandre Magno, entre 168 a. C. e até o início da dominação romana, a revolução que provocou a guerra de libertação judaica, com os macabeus, é uma reação à idolatria, pela tentativa de imposição de um rei selêucida, Antíoco Epifânio IV, que queria introduzir no Templo, em Jerusalém, um culto ao Zeus grego.

     Nunca mais, na religião judaica da sinagoga, de posse das Escrituras, os judeus admitiram, nem em tom leve que fosse, qualquer traço de idolatria. Ao colapso da desconstrução por ocasião do exílio em Babilônia, a partir de 587/586 a. C., segue-se a reconstrução que se inicia ainda na Babilônia e sua consolidação no retorno, a partir de 536 a. C., com sólida feição na herança das Escriruras canônicas do Antigo Testamento, a Tanach judaica, assim como no culto e religião da sinagoga. Jeremias não estava vivo para saber, mas sua luta e denúncia contra a idolatria e sua certeza em relação ao colapso do exílio se confirmaram como remédio drástico e radical

domingo, 27 de dezembro de 2020

Desmantelo e inoperância: quando a palavra mente. A profecia de Jeremias e o descrédito do discurso

    A religião de Israel destacou-se daquelas de culturas vizinhas em torno das quais se desenvolveu a nação hebreia.

    Floresceu em meio às culturas fenícia, ao norte, egípcia, ao sul e, ao nordeste, rota do denominado "crescente fértil", em direção à Mesopotâmia.

    O patriarca Abraão migra a partir de Ur, cidade caldeia, berço dos rios Tigre e Eufrates, segue a rota do crescente fértil até Harã, nome derivado do irmão mais novo do patriarca, que ali faleceu e foi sepultado. 

    Abraão carrega consigo uma fé que apresenta características frontalmente diferentes das religiões dos povos em meio aos quais habitou com sua família. 

    Temos indicação de que seu pai, Terá, era idólatra. Portanto, sua religião não foi herança familiar. O Deus de Abraão é pessoal, não está ligado a santuários fixos, não se permite reproduzir por nenhuma imagem que o represente e se apresenta como único existente e autêntico.

     A designação "Deus vivo" é proposital e se contrapõe à de qualquer outro deus indicado, visto que, simplesmente, não existem outros. A oração repetida já há milênios pelos hebreus, a muito conhecida "Shemah", raiz do verbo "ouvir", indica essa realidade. 

     "Ouve, Israel , o Senhor nosso Deus é um (único)", em hebraico, literalmente, está escrito: "Ouve, Israel, o Senhor Deus nosso um". Esta afirmação era tão problemática para Israel em sua época histórica remota como se torna hoje.

      Atualmente, vive-se o tempo da alardeada pluralidade. Não significa que alguém se despersonalize, mas suas escolhas devem ser consideradas tão legítimas quanto a de todos os parceiros de relação. Portanto, se eu afirmo que o meu Deus é o único que existe, antecipadamente predisponho um problema a se resolver, por negar, peremptoriamente, o(s) deus(es) do(s) outro(s).

        Jeremias o profeta, em seus sermões externos, como aquele à porta do Templo, assim como os oráculos que escreveu no rolo que Jeoaquim manda queimar denuncia, em Jerusalém e por toda a Judá, a promiscuidade de deuses, a prostituição deslavada do povo, em seus festivais, em sua prática doméstica e na hipocrisia consentida do culto do Templo.
 
      Nem a propaganda contra, empreendida pelo rei modelo Josias, infelizmente morto precocemente, pôs freio à força com que se impunha o culto idólatra. Jeremias vai dizer que há mais deuses em Judá, o pequeno reino, do que cidades. Seu colega de profecia, Ezequiel, como ele um sacerdote fora de ofício, vai denunciar, falando a partir do exílio em babilônia, onde se encontra, os cerimoniais secretos, praticados por oficiantes do culto em de Jerusalém, dentro das câmaras do próprio Templo.

      Na mesma proporção de Jeremias, mas por razões diferentes, qualquer um hoje vai enfrentar resistências ao denunciar a idolatria, porque qualquer religião monoteísta, ainda mais uma que se guie pela oração do Shemah, terá dificuldades em defender seu ponto de vista pela existência ou insistência em um único Deus. 

      Portanto, os elementos básicos constituintes da religião de Abraão não se alteraram na sua expressão por boca e influência no ministério profético. Desde Isaías, Amós e Oseias, profetas do séc. VIII, a idolatria de Israel é denunciada.

     A ruptura após a morte de Salomão, com Jeroboão I inaugurando um culto espúrio com as tribos do norte, já demarca uma influência negativa que terá o seu refluxo na religião de ocasião em Judá, no sul. O profeta Elias, logo depois, no norte, denunciando a dinastia de Onri, que se instala após a morte de Jeroboão, vai se levantar contra o culto a Baal, deus fenício importado de Sidom, por Jezabel, esposa de Acabe, filho de Onri, rei de Israel.

     Jezabel era filha do rei fenício. E o culto que ela trouxe para Israel ainda existia no tempo de Jeremias, mais de 200 anos depois. No tempo de Jeroboão II, que reinou 51 anos em Israel do Norte, Amós vai reclamar dos ídolos que o povo trás para o deserto, após a saída da escravidão no Egito. Entre as coisas que Israel deveria ter deixado para trás, no Egito, estava a idolatria. 

      Oseias vai denunciar tanto a corrupção moral do sacerdócio de seu tempo, ainda no tempo de Jeroboão II, quanto a mesma idolatria, como apanágio. Isaías, cujo ministério começa, logo depois, porém em Judá do Sul, vai denunciar o nojo que Deus tem do culto que lhe é oferecido, porque falta santidade aos sacerdotes, ou seja, separação dos ídolos, prática da justiça social e cessação dos crimes de sangue, de que eles e o povo são acusados.

     E Jeremias, no seu tempo, além de denunciar os cultos aos baalins espalhados pelas cidades de Judá, herança do norte, destaca a profecia de Miqueias, contemporâneo de Amós, Oseias e Isaías, de como este profeta no sul anuncia, desde sua época, que Israel não terá paz em seu território, porque vive de trair o seu Deus e se corromper após os ídolos de que aprende a cultuar.

       A história do povo hebreu com a idolatria, como já advertia Josué, começou cedo, desde quando Abraão saiu de casa e não seguiu a religião de seu pai Terá. Passou pela desintoxicação da religião egípcia com Moisés que, ainda no deserto, como acusou Amós, teve que educar o povo no estabelecimento de um culto depurado da idolatria.

     E na fixação na Palestina, como advertiu Josué, onde todos os vizinhos eram idólatras. O povo de Deus foi convocado a marcar as nações com o diferencial de sua religião. Deus único, pessoal, não ligado a nenhum santuário e sem rosto. Mas somente vai se ver livre do vício histórico da idolatria, após o trauma do exílio, corajosa, atrevida e ousadamente anunciado por Jeremias, uma espécie de "Êxodo ao inverso", quando o povo de Deus, ou o que restou dele, volta ao cativeiro, perde sua liberdade, prefigurada no seu rei, perde a "terra prometida" e vê o Templo, símbolo de seu culto, virar cinzas, junto com toda a cidade.

sexta-feira, 18 de dezembro de 2020

Casamento em comunhão de bens

 

    De cima de minha idade, passando dos 60 e me considerando da família, sou um dos mais antigos que conhece o pessoal. 

    Já disse que d. Mira foi minha professora, na classe de crianças, no porão da Igreja Congregacional de Cascadura. 

    Aliás, essa cena eu tenho na retina. Ela, de pé, com o jeitão nordestino e o sorriso, com todo o respeito que ela merece, sempre maroto. 

   Sorriso de d. Mira sempre tem dois motivos: 1. um é o próprio sorriso, de raiz, porque todo sorriso induz sorrisos; 2. mas o outro motivo de seu sorriso é esse ar maroto, já mencionado.

    Há sempre algo de precioso escondido por detrás do sorriso de d. Mira. E daí, exatamente por isso, foi procurar uma das mais gostosas gargalhadas de que já testemunhei. Essa mesma, do Loureiro. 

   Claro que também tem marotice. Mas a diferença é o espontâneo da gargalhada dele e o simulado do sorriso dela. Já sei: foi um casamento em comunhão de humor.

    Ou comunhão de gargalhada e sorriso. Ou como tradicionalmente se diz: comunhão de bens. Casamento com comunhão de bens.

    No caso, não estamos falando de bens pecuniários. Logo pensam nisso. Mas de bens os mais preciosos. Bens eternos. Há bens que avançam pela eternidade afora.

    Mais felizes, mais seguros, mais fortes e de maior conforto, como diz Jesus, quem armazena bens para a eternidade. Como o casal Loureiro e d. Mira.

     Já mencionei o primeiro bem dos dois. Sorriso dela, gargalhada dele. Aqui, de vez em quando, a gente chora. O próprio Jesus diz "bem-aventurados os que choram". Até Jesus chorou. Pelo menos, a Bíblia fala de duas vezes. Deve ter chorado mais vezes.

     E Jesus chorou por dois tipos os mais dolorosos de sofrimento: 1. A morte; 2. A falta de fé. A morte nos faz chorar. Mas as promessas de Deus para quem crê, enchem de consolo e de esperança. 

     A riqueza do amor, que vai perdurar na eternidade, o casal Loureiro privou entre si e legaram aos filhos. Porque o casal de filhos lhes retornou cuidado, carinho, parceria, compromisso, cumplicidade e tudo o mais que só vem pelo amor.

     Esse outro bem que cultivaram aqui e conduzem para a eternidade. Tudo isso como exercício de sua fé. O retirante pai de Mira repartiu fé com sua família. As três meninas e o menino, desde muito cedo, ainda que em meio a outras carências, esta não faltou. 

     E a Bíblia diz que sem fé é impossível agradar a Deus e receber como dom o que a fé proporciona. Não faltou fé no lar de onde veio Mira. Assim como não faltou no lar de onde veio Loureiro.

     Por isso foram vitoriosos. Por isso continuam sendo vitoriosos. Porque a principal vitória de Jesus, que define o fundamento da fé, é Sua ressurreição.

     O velho Jeconias assim ensinou. Assim as meninas e o menino aprenderam e eu, ainda bem menino, testemunhei, desde ainda a Pache de Faria, no Meier. Se a caçula Mira foi minha professora na classe de crianças, ele foi meu professor na classe de adolescentes.

     E como Deus escreve certo por linhas certas, um dia a menina Lourdes casou com seu, literalmente, Heraldo, para que, num outro dia, cerca de 20 anos depois, eu entrasse para essa mesma família. 

     Comunhão de bens. A nossa família vive em comunhão de bens. Vivemos um momento de choro, de ruptura brusca, ausência e separação. Mas tudo isso tem um outro sentido se a fé faz parte de nossa experiência.

     Porque sabemos que José está com Jesus, certamente. Porque a Bíblia diz que, uma vez terminada a jornada nesta vida, no compromisso com que Loureiro assumiu, estar com Cristo é incomparavelmente melhor. 

     Essa certeza nos atende com alento. Embora tristes, há uma paz que permeia nossa expectativa. Essa é a mesma paz que, de modo pleno, Loureiro já experimenta na presença de Jesus. 

   A mesma paz que anjos sem conta anunciaram no primeiro Natal. Esse José, xará do pai adotivo de Jesus, terá o primeiro de muitos e todos os Natais mais especiais que existem: ele e o aniversariante juntos.

   

       
      

sábado, 12 de dezembro de 2020

Desmantelo e inoperância: quando a palavra mente. A profecia de Jeremias e o descrédito do discurso

      Já descrevemos, por alto, a história do povo com a palavra, nesse início do livro, no cap. 2 de Jeremias. Mas somente indo ao texto original é possível determinar todas as nuances.

    Vamos percorrer, de novo, esse trajeto, pelo menos nessa fala inicial, estabelecendo o método de abordagem. Palavra de Deus e palavra de não Deus. O que, em nome de Deus, fala o profeta? E como identificar a palavra de não Deus que ele denuncia na vida do povo?
     "A mim me veio a palavra do Senhor, dizendo: Vai e clama aos ouvidos de Jerusalém: Assim diz o Senhor", em 2,1-2a. Vamos supor, até segunda ordem,  que esse homem fala em nome de Deus. 
     Começa lembrando, como Oseias já havia feito, da afeição do povo por Deus no passado. Recapitula que o ambiente era hostil, mas Israel tinha um amor de namorada, como quando Deus, no deserto, falava-lhe ao ouvido e ao coração, como se expressou Oseias em 2,14-23.
    Em Oseias Deus promete fidelidade, Deus desposa a prostituta que o trai. Naquele tempo Israel era consagrado ao Senhor e, se alguém quisesse devorá-lo, havia proteção da parte do Senhor: quem lhe desejava o mal, era alcançado por este, confirma Jeremias.
     Mas a situação mudou. Por isso, o profeta interpela o povo e recomenda em 1,4-5a: "Ouvi a palavra do Senhor, ó casa de Jacó e todas as famílias da casa de Israel. Assim diz o Senhor". Com quem Deus anseia por estabelecer essa relação de proximidade? Que fatores impedem que isso ocorra?
     Palavra de Deus. Palavra de não Deus. A primeira pergunta que supõe o grau e o motivo do afastamento é que injustiça o povo viu em Deus para que dele se afastasse, preferindo os ídolos? Secular esse apego de Israel aos ídolos. Jeremias, um profeta do séc. VI, vai falar de baalins, que são os genéricos do culto importado de Sidom, pela filha de seu rei, Jezabel, esposa do rei Acabe, no norte, pela dinastia de Onri, ainda no tempo de Elias, no séc. IX.
      Jeremias supõe uma relação prévia com Deus, anterior a essa sua época, e uma avaliação do povo, com capacidade de opinar sobre a conduta de Deus,  "que injustiça acharam em Deus?", para que, então, prevalecesse não o diferencial da fé, mas a tradição cultural de todos os povos à volta, que fosse a idolatria. 
     Deus e não Deus. Relação com Deus e não relação com Deus. Fé e não fé. Sem fé, é impossível agradar a Deus, afirma o autor anônimo de Hebreus. E quanto a estar sempre o povo envolvido com a idolatria, Josué, sucessor de Moisés, advertia que o pai de Abraão, Terá, foi idólatra, que o povo de Israel, no Egito, estava cercado de idolatria, que aprendeu e começou a desaprender, e que na terra onde se instalou, estava, novamente, cercado por idolatria. Amós, no séc. VIII, vai anotar o que Josué, no séc. XI não havia dito: que levaram para o deserto, consigo, os ídolos do Egito. 
      Jeremias vai identificar, nas nações idólatras à volta, maior apego delas pelos deuses inexistentes do que Israel tem pelo seu Deus único e vivo. Inapelável. Deus exige exclusividade. Da parte do povo a quem, exclusivamente, revelou-se, pelo menos da parte deste exige fidelidade. Essa é a perplexidade, entre muitas outras, identificada pelo profeta. 
     A fé em Deus irrompe na cultura. Vai sempre contestar muito de seu contexto. Mas principalmente a ideia de não Deus. Isso, por si, já representa a maior contestação. Todos os povos eram idólatras, havia tantos deuses quantas eram as cidades de Judá, como vai dizer Jeremias, os quais Israel importou de fora para dentro de seu culto.
     Josias, o rei reformador, no tempo de quem o profeta foi chamado, o único que teve a coragem de violar e destruir os altos ainda do tempo do famoso Salomão, havia mais de 350 anos antes, em seu esforço, golpeou a idolatria, mas ela, segundo denuncia Jeremias, não fora extinta. Traziam-na dentro de si. Incorporaram-na a partir de todos à volta. A primeira altitude que a relação com Deus exige é uma contestação de tudo à volta. 




     

sexta-feira, 11 de dezembro de 2020

Desmantelo e inoperância: quando a palavra mente. A profecia de Jeremias e o descrédito do discurso

       Em linhas gerais, na primeira palavra de Jeremias, quando Deus o manda proclamar ao povo Sua demanda, o profeta enuncia a fórmula corriqueira de identidade da autêntica fala profética: koh 'amar Yhwh, "Assim diz o Senhor".

    E como já previamente visto na estrutura do texto, 2,2 indica o passado, agora renegado, de fidelidade e namoro de Yhwh com seu povo, na linha da profecia de Oseias, em 2,14-23, enquanto que 2,3, embora destacando que, naquela época, os que "devoravam Israel se faziam culpados", na fase atual, já antecede o anúncio do "ciclo do inimigo do norte", antecipando a invasão babilônica, visto que a relação do povo com Yhwh e, consequentemente, com seus inimigos havia mudado para pior.
     As quatro partes segintes do cap. 2 definem a nova relação, ao inverso, com Yhwh e os argumentos da tentativa de compreensão lógica dessa mudança. Primeiro argumento, 2,5: que injustiça vossos pais viram em mim, para que me trocassem por ídolos nulos e se anulassem neles? Segundo argumento, 2.6-7: não perguntaram pelo Deus que os tirou do Egito, guiou-os pelo ermo do deserto, para os introduzir numa terra fértil, agora por vocês contaminada.
     No terceiro argumento, em 2,8, quatro classes de líderes são indicadas por Jeremias como corresponsáveis pela falência do povo: sacerdotes, escribas da lei, pastores do povo e profetas. E visto que esse é o grau de infidelidade do povo, que troca o Senhor pelos ídolos, com tudo de repugnante que vem junto, o profeta anuncia que Deus tem um pleito com o povo. 
      Das mais absurdas, entre as contestações de Jeremias, este sugere um tour por terras estranhas, que incluem o mar de Chipre e Quedar, para ver que povos estrangeiros desmerecem seus ídolos, posto inexistirem como deuses, do mesmo modo que Israel e Judá desmerecem sua Glória, o Deus único. 
     Deus toma a palavra, por boca de seu profeta, para dizer que duas nulidades cometeram em conjunto: 1. Deixaram o Senhor Deus, manancial de águas vivas; 2. Cavaram cisternas rotas que não retém águas. 
     Aqui termina o bloco inicial do ciclo de infidelidade. Para que o profeta agora opere uma inversão de identidade, referindo-se a Israel como filho nascido em casa, mas que procura, por si, o próprio cativeiro. O povo que foi resgatado da escravidão do Egito, pelo poder de Deus, por si mesmo se torna novamente escravo da idolatria. 
     As consequências que, já na época do profeta se avizinhavam, ora com o mando egípcio, logo após a morte de Josias, assim como a troca pela babilônia, que se configurava, estão descritas na lista dos que vão, sucessivamente, pilhar o reino de Judá e sua capital Jerusalém: cidades limítrofes do Nilo, com aquelas limítrofes do Eufrates. 
      Esta unidade se encerra com uma dura advertência, com um paralelismo que acentua a parcela de Israel na relação com Deus, malícia/infidelidade, e a parte de Deus no trato com seu povo, castigo/repreensão. A experiência do povo será reconhecer quão mau e amargo será deixar o Senhor e não ter consigo o temor do Senhor.
      A unidade seguinte transparece com a denúncia de um Israel repreendido pelo desprezo com que retribuía os cuidados de Deus, que lhe rompia as ataduras e que o havia plantado como vinha dileta. Agravou-se tanto em sua prevaricação, que agora o profeta afirma que não haverá remédio para que se purifique. 
     Aparece o rastro da infidelidade do povo, prostituído após os baalins, como num desespero incontido e lascivo diante do pecado, atraído por ele, sem que preste ouvidos a qualquer exortação. Não há de guardar os seus pés de andar após seus amantes e deuses estranhos. 
     A parte final, o último quadrante da série, inicia com uma comparação entre o ladrão, flagrado em delito, com o flagrante da mesma estirpe de reis, príncipes, sacerdotes e profetas de Israel, coniventes com o culto idólatra. Tantos deuses, em Judá, quantas são suas cidades! Então, peçam a eles que o ajudem na hora da angústia que se avizinha. 
      Deus argumenta que a disciplina restauradora que perpetrou, de nada adiantou, sintoma da quantidade de profetas mortos à espada, portanto Deus indaga se ele mesmo foi cilada para o povo, como se fosse uma armadilha em forma de deserto ou densa escuridão. 
     Enganoso é o amor que buscam, como de mulheres perdidas, condenam pobres inocentes e a si mesmos se declaram inocentes desse crime, mas esse andar leviano do povo vai conduzi-lo a dois extremos significativos da geopolítica da época: ao sul, no Egito, e ao norte, na Assíria.
     Num e noutro extremo não haverá alento para o povo, de onde sairão desesperados, tendo trocado a confiança no Senhor pela confiança numa esperança frustrada, proveniente de qualquer inopinada ajuda que esses povos pudessem conceder.

Desmantelo e inoperância: quando a palavra mente. A profecia de Jeremias e o descrédito do discurso

   O cap.1 do livro de Jeremias pode ser considerado como o rito de consagração do profeta. Geralmente, essas perícopes que descrevem a vocação, também trazem agregadas uma introdução temática a todo o conjunto da profecia.

     No caso de Jeremias, ela aparece no corpo dos cap. 2 e 3. Constituem-se numa reunião de pequenos oráculos, sendo os deste bloco relacionados ao chamado "ciclo de infidelidade", quer dizer, ao mau exemplo da apostasia de Israel, imitado por Judá, sendo que o bloco seguinte, que se inicia em 4,5 a 6,30, está relacionado ao "ciclo do inimigo do norte".
     A pregação de Jeremias paira nesse contexto, de denúncia da infidelidade de Judá, que imita e reproduz a mesma infidelidade de sua irmã Israel, assim como a indicação recorrente que o acontecido, no norte, por meio dos assírios, em 722 a. C., está prestes a ocorrer igual, por meio dos babilônios, com o miúdo reino do sul.
     Já internamente, focando essas unidades, o trecho de 2,2-3 indica que temática será desenvolvida nos oráculos desse bloco: 2,2 anuncia os oráculos do ciclo de infidelidade e 2,3 os oráculos do ciclo do inimigo do norte.
     Essa disposição do material do livro, de modo pormenorizado e organizado, W.L. Holladay denomina "ring composition", ou seja, unidades de textos que possuem palavras-chave ou temas, que as fazem equivaler umas às outras, direcionando o conteúdo da profecia por meio desses referenciais, tornando o conjunto do livro um todo harmônico.
     Por exemplo, para o primeiro grande bloco considerado o rolo primitivo escrito por Jeremias, os referenciais dessa compilação em "great inclusio", ou seja, num grande bloco integrado, seriam a narrativa da chamada, em Jr 1,4-10.11-13, com a Confissão final do profeta, nesse bloco, indicada em Jr 20,14-18, demarcadas pela pergunta "O que vês?", em Jr 1,11.13 e em Jr 24,3.
     Portanto, para os dois ciclos iniciais, nos cap. 2-3 e 4,5 a 6,20, a seguinte subdivisão: 1. 2,2-3, o anúncio dos dois ciclos; 2. 2,5-37, quatro seções: 2.1. 2,5-13, Yhwh fonte de água viva; 2.2. 2,14-19, por que Israel, nascido em casa, comporta-se como escravo; 2.3. 2,20-25, será Israel como um animal sem controle?; 2.4. 2,26-37, tornou-se Yhwh para Israel como deserto ou negra escuridão?
     Ainda nessa seção de 2,5-37, um observador cuidadoso vai concordar com Holladay ao constatar o balanceamento referenciado entre a parte central, 2,29-32, com a imediatamente anterior, 2,26-28, e a imediatamente posterior, 2,33-37 e dessas duas com o início do capítulo, em 2,5-13.
     Quando o leitor avança ao capítulo 3, para a segunda parte do chamado "ciclo de infidelidade", vai encontrar uma estrutura poética subdividida em 4 partes: A (3,1-5) e B (3,12a-14a) com A' (3,19-20) e B' (3,21-25), do mesmo modo que as quatro partes indicadas no capítulo anterior.
    E o mesmo balanceamento, marcado ora por palavras-chave repetidas, ora pela temática, podem ser conferidos em 3,21-25, com eco em 3,19-20 e 3,12a-14a, e com 3,19-20, ecoando em 3,1-5. Exemplo de palavra-chave referencial são os verbos hebraicos shub, converter-se, em 3,21-25, com eco no verbo bush, envergonhar-se, em 2,26-27, além da referência temática do culto a Baal.
     As seções 3,14b-18 e a citação de reforço "debaixo de toda árvore frondosa" Holladay indica como exemplo de acréscimos que os revisores não se continham em fazer, mas que são naturais para o tempo e época contemporâneo ao profeta e não, como hoje, uma marca de inautenticidade.

domingo, 6 de dezembro de 2020

O querer e o realizar de Deus

 Introdução: coisas simples, mas impossíveis ao homem, somente possíveis pelo poder de Deus.


Cap. 1
Estou plenamente certo de que aquele que começou boa obra em vós há de completá-la até ao Dia de Cristo Jesus. Filipenses 1:6

Cap. 2
Tende em vós o mesmo sentimento que houve também em Cristo Jesus, Filipenses 2:5

Cap. 3
Sim, deveras considero tudo como perda, por causa da sublimidade do conhecimento de Cristo Jesus, meu Senhor; por amor do qual perdi todas as coisas e as considero como refugo, para ganhar a Cristo Filipenses 3:8

Cap. 4
Finalmente, irmãos, tudo o que é verdadeiro, tudo o que é respeitável, tudo o que é justo, tudo o que é puro, tudo o que é amável, tudo o que é de boa fama, se alguma virtude há e se algum louvor existe, seja isso o que ocupe o vosso pensamento. Filipenses 4:8

Assim, pois, amados meus, como sempre obedecestes, não só na minha presença, porém, muito mais agora, na minha ausência, desenvolvei a vossa salvação com temor e tremor;
porque Deus é quem efetua em vós tanto o querer como o realizar, segundo a sua boa vontade.

Filipenses 2:12,13

1. Aspecto individual do desenvolver a salvação;
2. Aspecto coletivo;

3. Deus opera o querer e o realizar segundo a sua boa vontade.

A) Aspectos dos sentimentos que Jesus aprendeu:
1. Bondade (Mc 10,18);
2. Amor (Jo 15,9-10);
3. Obediência (Hb 5,8-9)
4. Diálogos de Jesus (Jo 4,25-26; Lc 7,48e50; Mt 15,24e28).

B) O querer de Deus e o não querer de Deus: o não querer se baseia em dizer não à vontade de Deus.
O querer de Deus:
Rogo-vos, pois, irmãos, pelas misericórdias de Deus, que apresenteis o vosso corpo por sacrifício vivo, santo e agradável a Deus, que é o vosso culto racional. E não vos conformeis com este século, mas transformai-vos pela renovação da vossa mente, para que experimenteis qual seja a boa, agradável e perfeita vontade de Deus. Romanos 12:1,2

O não querer de Deus
Vendo a mulher que a árvore era boa para se comer, agradável aos olhos e árvore desejável para dar entendimento, tomou-lhe do fruto e comeu e deu também ao marido, e ele comeu. Gênesis 3:6

C) O realizar de Deus 
C.1) Na igreja de Antioquia:
Havia na igreja de Antioquia profetas e mestres: Barnabé, Simeão, por sobrenome Níger, Lúcio de Cirene, Manaém, colaço de Herodes, o tetrarca, e Saulo.
E, servindo eles ao Senhor e jejuando, disse o Espírito Santo: Separai-me, agora, Barnabé e Saulo para a obra a que os tenho chamado.
Então, jejuando, e orando, e impondo sobre eles as mãos, os despediram.
Atos 13:1-3

C.2) Na vida de Paulo 
Teve Paulo durante a noite uma visão em que o Senhor lhe disse: Não temas; pelo contrário, fala e não te cales;
porquanto eu estou contigo, e ninguém ousará fazer-te mal, pois tenho muito povo nesta cidade. Atos 18:9,10

C.3) Na vida de qualquer igreja
E perseveravam na doutrina dos apóstolos e na comunhão, no partir do pão e nas orações.
Em cada alma havia temor; e muitos prodígios e sinais eram feitos por intermédio dos apóstolos.
Todos os que creram estavam juntos e tinham tudo em comum.
Vendiam as suas propriedades e bens, distribuindo o produto entre todos, à medida que alguém tinha necessidade.
Diariamente perseveravam unânimes no templo, partiam pão de casa em casa e tomavam as suas refeições com alegria e singeleza de coração,
louvando a Deus e contando com a simpatia de todo o povo. Enquanto isso, acrescentava-lhes o Senhor, dia a dia, os que iam sendo salvos. Atos 2:42-47

C.4) Na vida de igrejas específicas 
Éfeso 
Lembra-te, pois, de onde caíste, arrepende-te e volta à prática das primeiras obras; e, se não, venho a ti e moverei do seu lugar o teu candeeiro, caso não te arrependas.
Apocalipse 2:5

Filadélfia 
Ao anjo da igreja em Filadélfia escreve: Estas coisas diz o santo, o verdadeiro, aquele que tem a chave de Davi, que abre, e ninguém fechará, e que fecha, e ninguém abrirá: Conheço as tuas obras — eis que tenho posto diante de ti uma porta aberta, a qual ninguém pode fechar — que tens pouca força, entretanto, guardaste a minha palavra e não negaste o meu nome.

Apocalipse 3:7,8

quinta-feira, 3 de dezembro de 2020

Arte entre anjos

   

   Pianista novo no céu. Já era costume que a  assembléia celeste que, como Paulo afirma, se debruça para assistir aos cultos da turma aqui de baixo, se deleitasse com os teclados tocados pelo pr Dilson Mattos Pereira.

    Eu acho que ainda era meio adolescente quando chegaram a Cascadura. Magnético o sorriso dele. Prendia a gente. O casal tinha uma loirinha linda e um garoto meio tímido. E uma esposa e mãe muito compenetrada.
    Aos poucos fomos conhecendo os talentos que possuíam. O que mais nos espantava, porque eram os longes dos anos 80, ele pregar para nós usando seus volumes em Braille.
     Eram tempos sem computador ou celulares, as telas eram aquelas da TV e, no máximo, dos retroprojetores. Pr Dilson nos fascinava, percorrendo o texto pelo tato, numa proximidade que nos parecia ainda maior com a Bíblia. 
     Pacientemente nos explicava o modo de identificar os sinais e sua equivalência alfabética. Era um tamanhão de volume. Só Marcos, que é o menor entre os sinóticos, na Bíblia em fascículos do pr Dilson era mais espesso e alongado do que qualquer de nossas Bíblias. 
     Não havia impedimento para que proclamasse a Palavra de Deus. A nós fascinava, sim, mas eu aposto que esses mesmos anjos que o receberam, agorinha, quedavam-se inertes a ouvir o som que saía do piano dedilhado por ele. 
     E também nos explicava como havia desenvolvido sua mão esquerda. Ela garantia o suporte dos acordes, grandes e densos, graves e mais graves ainda, enquanto a direita dedilhava a melodia. Que saudade!
      Que saudade daquela congregação, que ainda guarda na retina, na memória e nos ouvidos aqueles cânticos, qualquer um, quando tocado por ele, ganhava contornos, arranjos e sonorização impensáveis.
    Qualquer corinho, nas mãos desse artista, ganhava ares de sinfonia. Por isso o sorriso, hoje, no céu, com os anjos comentando, entre si: Então, esse é o Dilson? E Jesus confirmando, claro, é ele mesmo, em pessoa. 
     Achegaram-se os da família que já estão lá,  disseram o seu oi, e, como sempre, a festa continua. Aqui embaixo, no intervalo de nossos cultos, a gente tem um monte de atividades. Mas lá, culto e festa constantes, só ocorre uma paradinha quando chega gente nova. 
    E por falar nos intervalos, nada era impedimento para o pr Dilson e sua esposa Lourdes. Dedicavam-se ao Instituto Benjamim Constant, na Urca, onde foram residir e onde os visitei, pelo menos, duas vezes. 
     Talvez também não saibam. Pr Dilson foi um dos mais requisitados talentos de precisão na afinação de pianos. Requisitado e conhecido por toda a zona sul do Rio de Janeiro. Sua maestria ia além de somente fazer pianos falarem, afinava-os para que se ajustassem aos mais exigentes ouvidos e, com isso, era reconhecido pela nata de gente do meio artístico carioca.
    Era nosso vizinho no Meier, foi meu parceiro em Curicica, primeira igreja que pastoreei, de 1982 a 1988, quando ele sustentou aquela congregação na fase mais difícil. A história dela é tão antiga, que o pr Zefanias, com seus 83 anos, em forma e ativo, foi estagiário lá quando seminarista. Em nossas conversas, divertia-me contando como, em suas férias, andava de bicicleta e até pilotava em rodovias, sempre em linha reta, pelo radar de ajudantes e cúmplices dele nessa outra arte que praticava.
     Mas voltando a Curicica, na Estrada do Guerenguê, era longe, num loteamento de ruas de chão, com dois ônibus, um ia, enquanto o outro voltava, e eram dois com duas vantagens: 1. O acesso, por favor, sem reclamações da barulheira das carroçarias velhas e buracos múltiplos; 2. E a poeira, agora concentrada dentro, porque as janelas de correr, quem puxasse para si, desguarnecia o passageiro da frente. 
     Como o casal, com as crianças, enfrentaram tudo isso? Rindo. Aliás, já ia esquecendo outro comentário que se ouviu no céu, hoje de manhã: isso mesmo, ele tem um sorrisão. Enquanto o de d. Lourdes se desenhava, aos poucos (deve ter sido dela que Dalton herdou a timidez), o sorrisão do pr Dilson nunca pediu licença: invadia a vida da gente. 
     Convivi com eles, mais de uma vez, quando me convidaram a conhecer o trabalho compartilhado que faziam no Benjanim Constant. Pelo menos umas duas vezes preguei lá. Interessante que o pr Dilson também me antecedeu em Copacabana. 
     Estive lá entre 1992 e 1994, quando vim para o Acre, onde estou desde 1995. Mas nos encontrávamos na Fluminense e foi numa dessas oportunidades que levamos Isaac ainda bebê para que conhecessem. Aliás, foi no Benjanim Constant que conheci a pelota com guisos e assisti ao primeiro futebol entre deficientes visuais.
      Casal totalmente dedicado, dentro e fora da igreja, ao que faziam. Dedicação total e integral. Trazemos conosco, privilegiados daquela geração, a imagem, a memória e as marcas positivas dessa família. Em nome do DuraCasca, afirmamos aqui, para a linda família de Denise e do pr Josué  Amorim, netos e netas, bisnetos e binetas, enfim.
     Transmitam a eles e também à igreja de que agora cuidam, que Dilson, esse do sorrisão, e Lourdes, sua vigilante, dedicada e idônea companheira, junto, bem junto com o filho e a nora, na congregação do céu, deixaram marcas profundas em nossas vidas. Para eles, estar na igreja era rotina e prazer e, quando fora dela, levavam-na consigo por onde andaram.
     Gratidão a Deus por esse envolvimento.

segunda-feira, 30 de novembro de 2020

Desmantelo e inoperância: quando a palavra mente. A profecia de Jeremias e o descrédito do discurso

 A mim me veio, pois, a palavra do Senhor, dizendo: Antes que eu te formasse no ventre materno, eu te conheci, e, antes que saísses da madre, te consagrei, e te constituí profeta às nações. Então, lhe disse eu: ah! Senhor Deus! Eis que não sei falar, porque não passo de uma criança. Mas o Senhor me disse: Não digas: Não passo de uma criança; porque a todos a quem eu te enviar irás; e tudo quanto eu te mandar falarás. Não temas diante deles, porque eu sou contigo para te livrar, diz o Senhor. Depois, estendeu o Senhor a mão, tocou-me na boca e o Senhor me disse: Eis que ponho na tua boca as minhas palavras. Olha que hoje te constituo sobre as nações e sobre os reinos, para arrancares e derribares, para destruíres e arruinares e também para edificares e para plantares. Jeremias 1:4-10

      Jeremias trata em primeira pessoa sua vocação. Irrevogável. Deus se refere ao chamado como antes ainda de nascer. O profeta tenta dissuadir.

     Usa o argumento da imaturidade e do atropelo em sua fala. Deus o repreende. Não digas não passo de uma criança.

     Assim escrito, não dá para ouvir o timbre de voz dessa palavra de Deus. Mas, certamente, foi veemente. "A mim me veio, pois, a palavra do Senhor".

    Assim o profeta retrata seu chamado, aponta a justificativa que o faz se dizer profeta, anota sua tentativa de dissuasão e termina por dizer irredutível sua vocação. 

     Como "palavra do Senhor"? Autêntica, da parte de Deus, ou atribuída a Deus por circunstâncias externas? O que sai da boca de Jeremias, no livro, a denominada ipsissima verba, temos como palavra de Deus a Jeremias ou palavra de Jeremias atribuída a Deus?

     A problemática da palavra. Por si, traz sentido. Situa-se num contexto. É assumida e a ela se confere significado. Jeremias a diz proveniente de Deus. 

     Pelo menos, no tempo de Jeremias, uma parte significativa dos que o ouviam, negavam-lhe o status de profeta, quanto mais atribuir sua palavra a Deus. 

    Mas outra parte lutou para preservar o que Jeremias disse e, como já vimos, ele fala, seus biógrafos falam e os redatores posteriores também falam. 

    Há um contexto que recebe as palavras do profeta, acolhem-nas, inclusive fazendoa-as chegar até nós. Houve quem acreditasse que, realmente, a Jeremias veio a palavra de Deus. 

     Pelo menos, podemos distinguir em sua profecia a palavra de Deus e a não palavra de Deus. Quando, por exemplo, Jeremias denuncia idolatria, ainda no tempo dele, já no século VI, culto a Baal, ainda do tempo de Elias, pelo menos há 150 anos atrás, essa é a palavra de não Deus. 

    Simples equiparar a fé de Jeremias e, portanto, sua rejeição do não culto exclusivo ao Senhor. E derivado dessa troca, de Deus por não Deus, toda uma denúncia se torna decorrente e recorrente.

     O povo que rejeita o Senhor, em função de sua escolha, enfileira uma sequência de erros e desmandos que o profeta atribui à escolha errada. Seria tão difícil, assim, identificar qual seria, então, a palavra de Deus?

     E quais seriam os resultados da opção pela palavra de Deus, em comparação aos não resultados ou, para falar de outra maneira, os resultados da opção pela palavra de Deus comparados ao da opção pela não palavra de Deus? 

    Será fácil ou difícil, na profecia escrita de Jeremias, identificar onde o profeta reclama essa rejeição da palavra de Deus, acusando suas consequências, do mesmo modo que indica, preferencialmente, quais seriam os resultados inversos, caso a opção fosse pela palavra de Deus?

     Como já mencionamos que diz Paulo Apóstolo, não se pergunte como? Como subir ao céu, para trazer do alto o Cristo? Ou como, palavra de Deus? Como discernir palavra e não palavra de Deus?

    Ele mesmo responde: a palavra está perto, na boca e no coração, a palavra da fé que pregamos. Falta colocar fé na palavra de Deus. A fé, diz Paulo, vem pelo ouvir a palavra de Deus.

    Jeremias disse que a ele veio a palavra do Senhor. Houve quem desacreditasse. Mas, por outro lado, houve quem acreditasse. Por isso, chegou aos nossos dias a palavra dessa profecia. E podemos aprender a discernir, com facilidade, entre palavra de Deus e não palavra de Deus.

quinta-feira, 26 de novembro de 2020

Desmantelo e inoperância: quando a palavra mente. A profecia de Jeremias e o descrédito do discurso

    No texto bíblico, a vocação ou chamado de Deus são perícopes bem circunscritas, indicando a primeira e surpreendente fala de Deus ao vocacionado. 

    Vocacionar significa chamar. Deus escolhe e convoca.  Desde Noé, a quem Pedro Apóstolo chama de profeta para a sua geração, a Abel, a respeito de quem o autor de Hebreus diz que, mesmo depois de morto, ainda fala.

    Ainda que seja expresso por uma única frase, como ocorre, por exemplo, aos profetas menores, "palavra do Senhor que veio a", e segue o nome do profeta, esses homens recebem de Deus um chamado e autoridade para falar em nome dEle.

     No Novo Testamento, Paulo Apóstolo vai dizer, aos coríntios, que toda a igreja deve profetizar. E define profecia como "falar aos homens" tendo, como conteúdo, "edificação, exortação e consolo".

     No grego, oikodomene, paraklesin e paramuthian que, respectivamente, significam "dar (a vida) estrutura", "pôr-se junto advertindo" e "encorajamento".

     Portanto, o tripé da profecia que a igreja, em conjunto, deve praticar e, para isso, buscar preparo e assistência do Espírito Santo, implica construir, estruturar vidas, colar junto incomodando, se for o caso, e conceder encorajamento. 

     O profeta se interpõe, para dizer que Deus edifica, Deus se coloca ao lado, para até importunar, admoestar, que significa "estar ao lado molestando", ações no sentido de exortação, assim como o próprio Deus, em Pessoa, consola.

      A profecia existe para advertir de que Deus se interpõe, Ele mesmo, diante de cada um dos viventes, é assim desde sempre, desde o Éden, pela viração do dia. Com o derramamento do Espírito, como indicou Joel em sua profecia, destacado por Pedro, no primeiro sermão após a ressurreição de Jesus, toda a igreja é (ou deveria ser) constituída por profetas, para indicar essa postura e posição de Deus diante dos homens e das mulheres. 

     Voltando ao Antigo Testamento, fosse uma convocação curta, expressa por uma frase, como ocorre, por e exemplo, com Jonas e Abraão, ou perícopes reelaboradas, como ocorre com Moisés, Ezequiel e, em menor escala, com Isaías e Jeremias, as descrições e expressões desse chamado indicam, em linhas gerais, a tarefa do profeta e o contorno da situação a enfrentar.

      A Abraão, uma síntese do que Deus esperava dele, "de ti farei uma grande nação". A Moisés, "vi a aflição do meu povo e desci a fim de livrá-lo", com respeito a Israel, no Egito, e a Jonas, "ir à grande cidade de Nínive e pregar contra ela".

      A Jeremias, "velo sobre minha palavra para a cumprir", expresso na visão de uma vara de amendoeira que dá o seu broto inadvertidamente. E do "rolo compressor" que vem do Norte, detalhado na descrição que Joel já havia feito dos exércitos dos impérios do oriente, assírios, em 722 a. C., e agora, no tempo de Jeremias, a partir de sua vocação ainda em tempos do rei Josias, os babilônios. A visão simbólica que ilustra essa hecatombe é de uma panela que se entorna a partir e na direção que indica o norte.

      Em linhas gerais, esse é o panorama da profecia de Jeremias. Vai reafirmar, em termos políticos, a realidade que se impõe, a partir da Mesopotâmica, do jogo de forças que compõe a geopolítica de sua época e, em meio à constatação dessa ameaça sobre o minúsculo reino de sua gente, delinear o quadro de rejeição da palavra do Senhor, em função dos falsos discursos de ocasião e seus respectivos porta-vozes.  

      Como comentou Paulo Apóstolo aos coríntios, muitas são as vozes no mundo, nenhuma delas sem sentido. Em meio a tantas vozes, destaca-se a de Deus. Cumpre ouvir, distinguindo-a entre todas as demais. 

terça-feira, 24 de novembro de 2020

Desmantelo e inoperância: quando a palavra mente. A profecia de Jeremias e o descrédito do discurso

     Para conhecer a estrutura do livro de Jeremias, ou seja, o modo como chegaram até nós as coleções de textos que o compõem, é necessário debruçar sobre os estudos mais recentes. 

    O que significa recuar até 1901, com Duhm, depois avançar até 1914, com Mowinckel e, finalmente, alcançar Rudolph, em 1947. Em linhas gerais, as pesquisas desses autores nos darão pistas seguras para nos situarmos em meio às classes distintas de textos do livro. 

     Pelo menos três grupos principais, aos quais Mowinckel classificou pelas letras A, B e C, representam as modalidades gerais de textos: A, textos poéticos e narrativas em prosa, autobiográficas, diretamente atribuídos ao profeta.

     Os textos B, quase metade do livro, com narrativas biográficas em 3a pessoa, escritas por Baruque, seu escriba, mas também por outros autores desconhecidos. Podem ser colocados em ordem cronológica: cap. 26, 609 a. C.;19,1-20,6; 36; e 45, estes em 605; 51,59-64, 594; Jeremias X Ananias, cap.28 e Carta aos Exilados, cap. 29, em 593; o assédio à Jerusalém, 34,1-7, em 587; e demais acontecimentos, nos cap. 37-44, em 586.

     Os textos C, que segundo Rudolph são 8 em forma homilética e mais 2 como discursos narrativos, pertenceriam aos revisores da chamada escola deuteronomista, teoria esta que procura definir uma gama de autores presentes nos arranjos finais dos textos bíblicos, desde a última edição do Deuteronômio, passando pelos demais livros históricos e alcançado os textos proféticos. 

     Deve ser compreendido que os autores bíblicos, por exemplo os profetas, quando não escrevem, de lavra própria os seus livros, têm quem o faça, discípulos ou outros redatores que buscam preservar suas palavras. Na antiguidade, juntar esses escritos aos originais dos profetas não era fraude ou plágio, mas cuidado, preservação e detalhamento de um tesouro inestimável.

         Os grandes blocos do livro, portanto, compreendem, inicialmente, os textos de 1-25,13a, sendo que a partir daqui, na LXX, estão intercaladas as chamadas Profecias às Nações, 46-51, nesta numeração atual no texto hebraico. Neste primeiro bloco se encontra a coleção principal dos oráculos do profeta, constantes no chanado 1o rolo, antes que o rei Jeoaquim, filho de Josias, o queimasse, e fosse ordenado a Jeremias a sua segunda escrita, como 2o rolo, levada a cabo por Baruque. 
 
        O segundo bloco é o chamado Livro de Consolação,  cap. 30-33, que procura ser um alento, após as carregadas denúncias dos pecados de Judá e Jerusalém nas seções anteriores. A parte final, já mencionada, são os chamados Oráculos contra as Nações, 46-51, faltando mencionar e discriminar o conteúdo dos capítulos que medeiam esses três blocos. 

      Nicholson classifica o trecho de 26-36, de fora, como já vimos, 30-33, como uma coleção de oráculos e ditos proféticos de Jeremias, em sua maioria em prosa narrativa, contando "a história da palavra de Deus proclamada pelo profeta e rejeitada em bloco pela nação".

     Por exemplo, o trecho de 7,1-8,3 seria o Sermão do Templo, como apresentado por Jeremias, segundo a redação da escola deuteronomista, portanto um texto da família C, de Mowinckel, e o capítulo 26 seria a narrativa biográfica do contexto desse sermão, um texto pertencente à classe B, segundo o mesmo autor. 

      E a parte de 37-45 vai cobrir, também por textos predominantemente em prosa, o período da vida de Jeremias entre a queda de Jerusalém, em 587, e sua atividade em meio aos que não foram para o exílio, a rebelião que assassina Gedalias, governador imposto pelos babilônios, e o rapto do profeta na fuga desses conspiradores para o Egito. 

     O capítulo 52 é um apêndice histórico baseado  em 2 Reis 24,18-25,30. Em linhas gerais, a palavra de Deus tradicionada por Jeremias se encontra nessa forma estrutural. Cabe, agora, trafegar dentro de cada coleção, analisando cada trecho, porque foi desse modo que Deus falou, fala e vai continuar falando.

        "Pois velo sobre a minha palavra, para a cumprir", disse o Altíssimo a Jeremias, no ato da vocação desse profeta. 

    

segunda-feira, 23 de novembro de 2020

O mesmo e o Outro em tempos de COVID

   Cada um de nós tem o que dizer, o que contabilizar sobre esse tempo. Afetou a todos nós. Aliás, ainda afeta.

    Desde a mudança de rotina, até o lado mais assustador, que é o medo de contrair o vírus, até ao encontro com a realidade. 

     Para contabilizar quem contraiu e venceu, ou teve amigo, parente ou conhecido, que o valha, porque também venceu, ou porque, em meio a tantas mortes, anônimas ou com nome, alguém próximo também partiu. 

     Temos muito e pouco, ao mesmo tempo, a dizer. Alguma coisa, se formos descrever, com algum detalhe, as perdas, as próximas a nós ou de alguém ou alguns que conhecemos. 

     Ou então podemos falar de nossa agenda, já ajustada à nova rotina, mas não tão descuidada que permita uma brecha para o risco. Não poderemos deixar de falar de Deus. Porque continuamos, mesmo em meio à pandemia, a ter comunhão com Ele, crentes que somos. 

     O que mudou em relação à igreja? Sim, mudou a rotina nossa e dela. Mas continuamos a ver nela, como diz o salmista, vontade de que seja a nossa casa? A internet a trouxe para mais perto. Mas falta algo que a internet não traz.

      E Deus? Mudou alguma coisa, com a pandemia? Sim e não. Não, porque continua a ser amor. Sim, porque Deus sempre se renova e sempre nos surpreende. Não está imóvel e nem indiferente a tudo, como muitos estão pensando e outros não entendendo. 

      A primeira pista de que Deus continua em dia com Sua agenda somos nós mesmos. Em meio a toda essa pandemia, temos mudado para melhor? Continuamos os mesmos? A Bíblia diz que Deus tem uma agenda em nós. Estamos na agenda de Deus. 

    O planeta, todas as pessoas, todas as nações, agora tão parecidas em sua rotina, estão na agenda de Deus. A prioridade de Deus continua sendo nós, todos e cada um em Sua agenda. Deus não está indiferente a nenhum de todos nós. 

     Alguém poderia perguntar pelo vírus. Mas essa reposta nós já temos. O endereço do vírus, a intimidade dele, suas idas e vindas, sim, a rotina e até mesmo sua agenda está mais do que conhecida. Se há uma coisa, entre muitas outras, que não é assunto de Deus é esse vírus. 

    Pois está aí. A gente não vive achando que Deus e ciência não combinam, que ciência e Deus estão em campos opostos, que aquela não confirma Este? Pois COVID é coisa da ciência. Não tem nada a ver com Deus. COVID é coisa aqui de baixo, é coisa nossa. 

     A ciência, que também é coisa nossa, não faz mais do que sua obrigação em querer saber das origens dele, de sua parentada viral, suas idas e vindas, exatamente para planejar o seu fim. Essa é a obrigação e a finalidade da ciência.

     Não ponham o COVID na conta de Deus. Mas se queremos ser pessoas melhores, vamos pôr isso na conta de Deus, que Ele, por isso, se empenha, com ou sem COVID.

     Não podemos deixar que o vírus revele ainda mais e maior a nossa rotineira mesquinhez. Já basta o vírus. Vamos permitir que Deus opere em nós Sua agenda, como diz Paulo Apóstolo, opere em nós o Seu querer e o seu realizar, segundo Sua (sempre boa) vontade. 

     Não vivemos pelo vírus. Vivemos pelo Senhor nosso Deus. Vamos tomar todos os cuidados que a velha ciência recomenda. Vamos torcer e orar pela vacina para liquidar com (mais) esse vírus.

     Mas esperando em Deus que esta ou qualquer circunstância nos encontre incluídos na agenda dEle, que continua sendo o mesmo e ao mesmo tempo o Outro. 

domingo, 22 de novembro de 2020

Desmantelo e inoperância: quando a palavra mente. A profecia de Jeremias e o descrédito do discurso

     Se Deus existe, fala. De nada adiantaria um Deus distante, enigmático ou mudo. E sua fala está perto e fácil de ser entendida.

    No Antigo e Novo Testamentos há afirmações sobre a natureza desse diálogo com o homem. A palavra de Deus está no diálogo com o homem.
 
     Paulo Apóstolo diz que a palavra está perto, na boca do homem, ou seja, ao alcance da compreensão humana, no boca a boca com Deus. 

    E o autor de Hebreus diz que Deus fala de muitas maneiras e, para completar, falou pelo Filho. Todas as falas anteriores sempre foram autênticas, a fala pelo Filho foi seu ápice e todas as falas posteriores também são autênticas.

     Como identificar as falas anteriores, a autêntica fala pelo Filho e as falas posteriores? Ou Deus nunca falou, o Filho é uma fraude e as falas em nome do filho são blefe?

    Não existe uma palavra dada, estática, da qual o homem faça um print e compartilhe, cabendo ao traço final dessa operação sua compreensão. 

    O diálogo de Deus com o homem é dinâmico. Alguns personagens das histórias bíblicas ilustram esse dinamismo. Josué, por exemplo, a ele foi dito ser necessário meditar, cumprir e proclamar. 

     Deus está presente, com o homem, nessas três instâncias: o diálogo no silêncio da meditação, o suporte no momento do esforço para cumprir e a autoridade para proclamar.

     A voz da gutural fala de Deus uma única vez foi ouvida. No ensaio do Sinai, quando se supôs ouvir, o povo instituiu Moisés como profeta. Não que fosse novidade, porque muito antes Noé foi considerado profeta à sua geração e ainda antes dele Abel que, mesmo depois de morto, ainda fala.

     Daí para a frente, Moisés ficou encarregado de transmitir ao povo a palavra de Deus. Foi assim instituído o ministério profético. Deus até achou interessante a solução sugerida pelo povo, no Sinal, mas descreu da facilidade deles em acatar e obedecer a palavra dEle transmitida por boca de profetas. 

     Ilustrativo, na história do rico e de Lázaro, contada por Jesus, supor que o milagre de um morto ressuscitando, para pregar aos entes queridos, seria um facilitador da fé. Jesus autorizou o ministério profético em curso, afirmando que, se não creem nos profetas, ainda que ressuscitasse um dentre os mortos, para pregar aos vivos, a descrença prevaleceria.

     Boca a boca, a palavra de Deus está acessível e compreensível ao que crê, ao que prega a palavra e ao que ouve. Em Jeremias vemos a cobrança pela palavra profética não ouvida, a autenticação da palavra pregada, frente aos discursos da demagogia, e a palavra sendo escrita, em curso, para servir como referência às gerações futuras. 

sábado, 21 de novembro de 2020

Desmantelo e inoperância: quando a palavra mente. A profecia de Jeremias e o descrédito do discurso

    "Velo sobre minha palavra para a cumprir", diz o Senhor a Jeremias quando o vocaciona. Qual é a palavra,  como ouvir ou dizê-la e quem a transmite?

    Esse era o destaque da profecia de Jeremias. Por isso aparece na introdução do livro, na narrativa de sua vocação. O contexto do ministério de Jeremias tem a regência da palavra de Deus. 
    Josias foi guindado à posição de rei pelo grupo "povo da terra", do qual se conhece pouco de sua identidade, mas se tem certeza de sua força política. 
     Garantem o menino no trono, contra uma conspiração que assassinou Amom, seu pai, mal completara 2 anos no trono. Com 16, afirma o texto das Crônicas, Josias dispõe o coração para buscar a palavra do Senhor.
   Em meio às reformas que manda empreender, exatamente na faxina do templo de Jerusalém, encontram um rolo que, levado a Josias, torna-se chave no empenho de legitimar as reformas que já empreendia. 
      Por todos os lados cercam as palavras. As que impulsionam o adolescente Josias, neto de Manassés, símbolo do que foi pior como rei, em Judá, apontado como causa do exílio por vir. E bisneto de Ezequias, rei que resiste, em oração, ao cerco de Senaqueribe, em 701 a. C., rente às muralhas de Jerusalém, limite até onde vem o assírio.
     Palavra escrita no rolo do Deuteronômio, encontrado esquecido em meio aos entulhos, dentro do templo. Tradição que vem, de etapa a etapa, sendo reeditada pela escola canônica de reformistas, até alcançar o reinado do último rei piedoso antes do colapso.
      Desde a fuga de egressos do reino do norte, colapsado pelos assírios em 722 a.  C., quando trouxeram o que se supunham ser as tradições escritas no período de prosperidade de Salomão, reunidos agora em rolo os escritos que darão sobrevida ao povo, de 586 a 536, no período do exílio em Babilônia, até ao retorno e valorização da Torah, sob Esdras e Neemias, a palavra de Deus escrita dá contínuo suporte ao povo de Deus. 
     E agora com o naar Jeremias, esse a quem Deus repreende por se dizer ser muito jovem, querendo escapar de sua irredutível responsabilidade, com ele somam-se à palavra previamente escrita e tradicionada, a autêntica e atual palavra do Senhor dirigida àquele povo.
    Quem fala, como fala, de que modo fala, qual é a palavra de Deus por boca de Jeremias? E Deus ainda hoje fala? Então, do mesmo modo, quem, como, de que modo e quando, por boca de quem e de quantos? É nítida essa palavra? Discerne-se a palavra e a não palavra de Deus? 
     Urge identificar que discursos são não palavra, quando esta cumpre o papel de confundir. Cumpre seu papel ao inverso e deve ser desacreditada. A não palavra e o não discurso trazem em si mesmos os indicativos de sua hipocrisia.
     No tempo e época de Jeremias, no tempo e época de hoje. Jeremias ensina a identificar onde e como estão estruturados os discursos de falsidade. Questiona e denuncia todas as pseudo autoridades de seu tempo, do rei ao ancião caduco e corrupto, do príncipe ao falso juiz, do sacerdote idólatra, vendido e imoral ao falso profeta.
     Desmascara. Porque Deus vela sobre sua palavra para a cumprir. E essa palavra é martelo que esmiuça a penha.
     

sexta-feira, 20 de novembro de 2020

Desmantelo e inoperância: quando a palavra mente. A profecia de Jeremias e o descrédito do discurso

       Na vocação de Jeremias, Deus lhe diz "velo sobre minha palavra, para a cumprir". E vota que Jeremias seja um "cara dura", contra tudo e contra todos. 

    Em Judá de seu tempo, o que restava, na virada do séc VII para o VI a. C, do povo judeu, no reino de sul, cuja capital era Jerusalém, a vida política se resumia na conjunção entre trono e sacerdócio.

     Ele começa no tempo de Josias, um rei de autoridade forte, garantido politicamente por um grupo misterioso, denominado "povo da terra", que, após o assassinato de seu pai, Amon, em apenas dois anos de reinado, garante sua subida ao trono, com apenas 8 anos de idade.  

     Rei reformista, que contrariou uma gama de religiosos mistos, simuladores da religião de Israel, mas servidores nos templos idólatras, os chamados "altos", que eram templos de religiões alienígenas, inaugurados ainda por Salomão, e mantidos até essa época. 

      Josias foi o único com coragem para profanar as sepulturas dos antigos sacerdotes desses cultos, desenterrando e queimando seus ossos nos altares desses templos. Poupou uma única sepultura, quando foi informado de que ali repousava um profeta que anunciara esses dias. 

     Jeremias, sacerdote fora de função e, por isso mesmo, odiado entre seus iguais, começa seu ministério nessa fase alvissareira. Sofonias havia profetizado pouco antes e não poderia haver clima melhor para a vida de qualquer profeta. Até Hulda, uma mulher guindada a essa mesma condição de profetiza, apoia as reformas de Josias, com respaldo no livro que foi encontrado nas faxinas do templo em Jerusalém, muito provavelmente um rolo do Deuteronômio.

     Com garantia e força política, a palavra desses profetas tinham eco e efeito garantido para fazer valer o empenho em sanear uma sociedade tão intrincadamente corrupta, hipócrita e de fé esquizofrênica. Pelo que Jeremias e Ezequiel denunciam em sua profecia, a respeito do lado de dentro da estrutura moral daquela sociedade, somente o cataclisma que se avizinhava no horizonte poderia fazer com que toda a chaga desaparecesse. 

     Como bem havia definido Isaías, quase um século e meio antes, Israel, naquela época ainda dois tronos, Norte e Sul, era, "do alto da cabeça à ponta dos pés" uma chaga só, não cuidada e nem tratada com a profilaxia de uma fé genuína e saneadora. A única solução mais amena seria a conversão ao Altíssimo, desde os tempos de Amós, Oseias, Isaías e Miqueias, profetas contemporâneos, reclamada, mas nunca atendida. 

     Ao tempo de Jeremias, o que Judá viu acontecer a Efraim, em 722 a. C., diz o profeta, de nada adiantou e, como bem descreve Joel em sua curta profecia, os mesmos gafanhotos destruidores, babilônios ao sul, tanto quanto foi com os assírios ao norte, vão pôr fim ao que restou do último reino, do miúdo reino da dinastia e casa real de Davi. 

     Ao final da sequência de livros canônicos do Antigo Testamento, o aporte histórico indica perda total: a "terra prometida", a (meia) liberdade política do trono, já tributário de egípcios e babilônios, desde a morte precoce de Josias, em 609 a. C., e a demolição e incêndio do pavilhão do templo e toda a cidade, em 586 a. C., marcando um desfecho que nenhum profeta desejaria confirmar. 

      Jeremias punha-se, como que meio forçado pela não pesada de seu parceiro, como muralha e, semelhante a Ezequiel, com cara de diamante diante de tudo e de todos, em Jerusalém, indicando que há palavras e palavra. E sobre esta última, há zelo, da parte de Deus, o parceiro do profeta, em que seja mantida e cumprida.