segunda-feira, 28 de dezembro de 2020

Desmantelo e inoperância: quando a palavra mente. A profecia de Jeremias e o descrédito do discurso

      A ruptura cultural de Israel, ou o que restava dele, no reino de Judá, por ocasião da invasão dos babilônios, em 587/586 a. C., contribuiu, por um lado, para o seu desmantelamento definitivo e, por outro, para a sua reconstrução.

     O Israel que existia ou que a tradição das Escrituras do Antigo Testamento desenham, pretendia-se que fosse uma vitrine às nações, coerente entre vivência e culto ao Deus único, o Deus vivo, associado às rigorosas exigências éticas específicas.

     O conjunto dessas exigências incluía modelo de justiça social, coerência entre culto e vivência prática e a não aceitação de intercâmbio com os ídolos das demais nações. Talvez fosse exigir demais de um povo que, no Egito, como escravos, já havia compartilhado de cultos espúrios, flagrantemente contra o modelo que Moisés desejou implantar. 

      Desde o Êxodo, representado no concerto do Sinai, pretende-se para Israel um "sacerdócio às nações", ou seja, ser modelo de vivência prática com Deus e modelo ético de conduta aos outros povos. Para isso, os três códigos que lhe são legados, o Código Civil, no Êxodo, cujo núcleo são os 10 mandamentos, o Código de Santidade, no Levítico, e o Código Deuteronômico delineiam sua identidade, na relação com Deus, com as demais nações e na fixação diferenciada do cerimonial de sua religião. 

      A história das tradições escritas que vão modelar esse perfil de nação, ao mesmo tempo em que denunciam e acusam os seus desvios, definem-se por ciclos, em sua formação, deduzidos a partir da história do povo, estruturados em unidades de textos que compõem as Escrituras, no caso aqui as do Antigo Testamento. 

      Portanto, desde o desmantelamento do reino do Norte, invadido pelos assírios em 722 a. C., supõe-se que houve fuga de sacerdotes para o reino do sul, levando consigo tradições escritas daquela parte do reino como, por exemplo, o ciclo de histórias de Elias e Eliseu, assim como as profecias escritas de Oséias e Amós. 

     Processo semelhante com relação ao Pentateuco, as tradições escritas de Moisés, recolhidas e estruturadas ainda na época de Salomão, quando houve um período de paz que propiciava essa atividade, assim como outras tradições acrescentadas ao longo da história, como a da centralidade do culto no templo, típica do Deuteronômio, constituíram-se nos blocos que, continuamente, formaram os núcleos dos reagrupamentos dos textos bíblicos. 

       Com o Exílio em Babilônia, que configura o declínio total do povo, pouco se pôde manter como herança histórica e cultural, restrito aos sobreviventes, o grupo a que Isaías vai chamar de "restante fiel", surgindo um elemento catalizador, representativo da identidade do povo que, a partir dessa época, vai adquirir um valor talvez nunca antes mensurado nessa proporção, que são as Escrituras do Antigo Testamento, a Tanach hebraica. 

      Tanach é a abreviatura de Torah, lei, que se trata do Pentateuco. Os Nebihim, profetas, que trata dos livros de Josué e Juízes, Samuel, Reis, profetas maiores e menores. E os Ketuvim, a terceira e última parte do cânon judaico, incluindo Esdras/Neemias, as Crônicas do reino, Daniel e os livros poéticos. Nesta parte também estão os denominados cinco rolos, Cânticos, Rute, Lamentações, Eclesiastes e Ester, lidos nas sinagogas por ocasião das festas judaicas. 

     O despertamento para a relevância das Escrituras, a Tanach hebraica, no exílio, está representado na rapidez da menção, no livro de Daniel, de sua dedução, pelos escritos de Jeremias, da época de retorno do exílio, previamente profetizada desde os dias de Isaías, a se definir pelo decreto de Ciro, o soberano persa. Isso demonstra a importância adquirida pelos escritos de Jeremias, ainda durante o período do cativeiro babilônico que, de profeta rejeitado e desacreditado, no início desse ciclo, tem seus escritos aceitos, quando o colapso que previa efetivamente se realizou. 

      A coleção dos livros do Antigo Tratamento, coligida como fator de integração no tempo do exílio, assim como valorizada depois dele com a continuação do ministério do escriba Esdras, será um decisivo fator de identidade do povo hebreu e manutenção de sua unidade através da história. As Escrituras serão lidas em grupo, num contexto de outro micro-universo tão decisivo para a manutenção da coesão do povo, sua religião e cultura, que foram as sinagogas, surgidas nesse período e, através dos tempos, desde a antiguidade, através do império romano, da idade média e até hoje fator de unidade, agregação e identidade do povo judeu.

      Definitivamente, após o retorno do povo judeu do exílio, em 536 a. C., nunca mais se notificou idolatria em seu contexto. Aliás, documentos canônicos como Daniel e os livros de Esdras/Neemias indicam a repercussão do culto monoteísta dos hebreus no contexto da religião babilônica, assim como no contexto da religião persa, império que deu continuidade à ocupação da Mesopotâmia e que permite o retorno do povo à Palestina. 

      E no tempo da dominação grega, que se inicia por volta de 333 a. C., o período de independência dos judeus, ocorrido após a morte de Alexandre Magno, entre 168 a. C. e até o início da dominação romana, a revolução que provocou a guerra de libertação judaica, com os macabeus, é uma reação à idolatria, pela tentativa de imposição de um rei selêucida, Antíoco Epifânio IV, que queria introduzir no Templo, em Jerusalém, um culto ao Zeus grego.

     Nunca mais, na religião judaica da sinagoga, de posse das Escrituras, os judeus admitiram, nem em tom leve que fosse, qualquer traço de idolatria. Ao colapso da desconstrução por ocasião do exílio em Babilônia, a partir de 587/586 a. C., segue-se a reconstrução que se inicia ainda na Babilônia e sua consolidação no retorno, a partir de 536 a. C., com sólida feição na herança das Escriruras canônicas do Antigo Testamento, a Tanach judaica, assim como no culto e religião da sinagoga. Jeremias não estava vivo para saber, mas sua luta e denúncia contra a idolatria e sua certeza em relação ao colapso do exílio se confirmaram como remédio drástico e radical

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