quinta-feira, 3 de dezembro de 2020

Arte entre anjos

   

   Pianista novo no céu. Já era costume que a  assembléia celeste que, como Paulo afirma, se debruça para assistir aos cultos da turma aqui de baixo, se deleitasse com os teclados tocados pelo pr Dilson Mattos Pereira.

    Eu acho que ainda era meio adolescente quando chegaram a Cascadura. Magnético o sorriso dele. Prendia a gente. O casal tinha uma loirinha linda e um garoto meio tímido. E uma esposa e mãe muito compenetrada.
    Aos poucos fomos conhecendo os talentos que possuíam. O que mais nos espantava, porque eram os longes dos anos 80, ele pregar para nós usando seus volumes em Braille.
     Eram tempos sem computador ou celulares, as telas eram aquelas da TV e, no máximo, dos retroprojetores. Pr Dilson nos fascinava, percorrendo o texto pelo tato, numa proximidade que nos parecia ainda maior com a Bíblia. 
     Pacientemente nos explicava o modo de identificar os sinais e sua equivalência alfabética. Era um tamanhão de volume. Só Marcos, que é o menor entre os sinóticos, na Bíblia em fascículos do pr Dilson era mais espesso e alongado do que qualquer de nossas Bíblias. 
     Não havia impedimento para que proclamasse a Palavra de Deus. A nós fascinava, sim, mas eu aposto que esses mesmos anjos que o receberam, agorinha, quedavam-se inertes a ouvir o som que saía do piano dedilhado por ele. 
     E também nos explicava como havia desenvolvido sua mão esquerda. Ela garantia o suporte dos acordes, grandes e densos, graves e mais graves ainda, enquanto a direita dedilhava a melodia. Que saudade!
      Que saudade daquela congregação, que ainda guarda na retina, na memória e nos ouvidos aqueles cânticos, qualquer um, quando tocado por ele, ganhava contornos, arranjos e sonorização impensáveis.
    Qualquer corinho, nas mãos desse artista, ganhava ares de sinfonia. Por isso o sorriso, hoje, no céu, com os anjos comentando, entre si: Então, esse é o Dilson? E Jesus confirmando, claro, é ele mesmo, em pessoa. 
     Achegaram-se os da família que já estão lá,  disseram o seu oi, e, como sempre, a festa continua. Aqui embaixo, no intervalo de nossos cultos, a gente tem um monte de atividades. Mas lá, culto e festa constantes, só ocorre uma paradinha quando chega gente nova. 
    E por falar nos intervalos, nada era impedimento para o pr Dilson e sua esposa Lourdes. Dedicavam-se ao Instituto Benjamim Constant, na Urca, onde foram residir e onde os visitei, pelo menos, duas vezes. 
     Talvez também não saibam. Pr Dilson foi um dos mais requisitados talentos de precisão na afinação de pianos. Requisitado e conhecido por toda a zona sul do Rio de Janeiro. Sua maestria ia além de somente fazer pianos falarem, afinava-os para que se ajustassem aos mais exigentes ouvidos e, com isso, era reconhecido pela nata de gente do meio artístico carioca.
    Era nosso vizinho no Meier, foi meu parceiro em Curicica, primeira igreja que pastoreei, de 1982 a 1988, quando ele sustentou aquela congregação na fase mais difícil. A história dela é tão antiga, que o pr Zefanias, com seus 83 anos, em forma e ativo, foi estagiário lá quando seminarista. Em nossas conversas, divertia-me contando como, em suas férias, andava de bicicleta e até pilotava em rodovias, sempre em linha reta, pelo radar de ajudantes e cúmplices dele nessa outra arte que praticava.
     Mas voltando a Curicica, na Estrada do Guerenguê, era longe, num loteamento de ruas de chão, com dois ônibus, um ia, enquanto o outro voltava, e eram dois com duas vantagens: 1. O acesso, por favor, sem reclamações da barulheira das carroçarias velhas e buracos múltiplos; 2. E a poeira, agora concentrada dentro, porque as janelas de correr, quem puxasse para si, desguarnecia o passageiro da frente. 
     Como o casal, com as crianças, enfrentaram tudo isso? Rindo. Aliás, já ia esquecendo outro comentário que se ouviu no céu, hoje de manhã: isso mesmo, ele tem um sorrisão. Enquanto o de d. Lourdes se desenhava, aos poucos (deve ter sido dela que Dalton herdou a timidez), o sorrisão do pr Dilson nunca pediu licença: invadia a vida da gente. 
     Convivi com eles, mais de uma vez, quando me convidaram a conhecer o trabalho compartilhado que faziam no Benjanim Constant. Pelo menos umas duas vezes preguei lá. Interessante que o pr Dilson também me antecedeu em Copacabana. 
     Estive lá entre 1992 e 1994, quando vim para o Acre, onde estou desde 1995. Mas nos encontrávamos na Fluminense e foi numa dessas oportunidades que levamos Isaac ainda bebê para que conhecessem. Aliás, foi no Benjanim Constant que conheci a pelota com guisos e assisti ao primeiro futebol entre deficientes visuais.
      Casal totalmente dedicado, dentro e fora da igreja, ao que faziam. Dedicação total e integral. Trazemos conosco, privilegiados daquela geração, a imagem, a memória e as marcas positivas dessa família. Em nome do DuraCasca, afirmamos aqui, para a linda família de Denise e do pr Josué  Amorim, netos e netas, bisnetos e binetas, enfim.
     Transmitam a eles e também à igreja de que agora cuidam, que Dilson, esse do sorrisão, e Lourdes, sua vigilante, dedicada e idônea companheira, junto, bem junto com o filho e a nora, na congregação do céu, deixaram marcas profundas em nossas vidas. Para eles, estar na igreja era rotina e prazer e, quando fora dela, levavam-na consigo por onde andaram.
     Gratidão a Deus por esse envolvimento.

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