domingo, 27 de dezembro de 2020

Desmantelo e inoperância: quando a palavra mente. A profecia de Jeremias e o descrédito do discurso

    A religião de Israel destacou-se daquelas de culturas vizinhas em torno das quais se desenvolveu a nação hebreia.

    Floresceu em meio às culturas fenícia, ao norte, egípcia, ao sul e, ao nordeste, rota do denominado "crescente fértil", em direção à Mesopotâmia.

    O patriarca Abraão migra a partir de Ur, cidade caldeia, berço dos rios Tigre e Eufrates, segue a rota do crescente fértil até Harã, nome derivado do irmão mais novo do patriarca, que ali faleceu e foi sepultado. 

    Abraão carrega consigo uma fé que apresenta características frontalmente diferentes das religiões dos povos em meio aos quais habitou com sua família. 

    Temos indicação de que seu pai, Terá, era idólatra. Portanto, sua religião não foi herança familiar. O Deus de Abraão é pessoal, não está ligado a santuários fixos, não se permite reproduzir por nenhuma imagem que o represente e se apresenta como único existente e autêntico.

     A designação "Deus vivo" é proposital e se contrapõe à de qualquer outro deus indicado, visto que, simplesmente, não existem outros. A oração repetida já há milênios pelos hebreus, a muito conhecida "Shemah", raiz do verbo "ouvir", indica essa realidade. 

     "Ouve, Israel , o Senhor nosso Deus é um (único)", em hebraico, literalmente, está escrito: "Ouve, Israel, o Senhor Deus nosso um". Esta afirmação era tão problemática para Israel em sua época histórica remota como se torna hoje.

      Atualmente, vive-se o tempo da alardeada pluralidade. Não significa que alguém se despersonalize, mas suas escolhas devem ser consideradas tão legítimas quanto a de todos os parceiros de relação. Portanto, se eu afirmo que o meu Deus é o único que existe, antecipadamente predisponho um problema a se resolver, por negar, peremptoriamente, o(s) deus(es) do(s) outro(s).

        Jeremias o profeta, em seus sermões externos, como aquele à porta do Templo, assim como os oráculos que escreveu no rolo que Jeoaquim manda queimar denuncia, em Jerusalém e por toda a Judá, a promiscuidade de deuses, a prostituição deslavada do povo, em seus festivais, em sua prática doméstica e na hipocrisia consentida do culto do Templo.
 
      Nem a propaganda contra, empreendida pelo rei modelo Josias, infelizmente morto precocemente, pôs freio à força com que se impunha o culto idólatra. Jeremias vai dizer que há mais deuses em Judá, o pequeno reino, do que cidades. Seu colega de profecia, Ezequiel, como ele um sacerdote fora de ofício, vai denunciar, falando a partir do exílio em babilônia, onde se encontra, os cerimoniais secretos, praticados por oficiantes do culto em de Jerusalém, dentro das câmaras do próprio Templo.

      Na mesma proporção de Jeremias, mas por razões diferentes, qualquer um hoje vai enfrentar resistências ao denunciar a idolatria, porque qualquer religião monoteísta, ainda mais uma que se guie pela oração do Shemah, terá dificuldades em defender seu ponto de vista pela existência ou insistência em um único Deus. 

      Portanto, os elementos básicos constituintes da religião de Abraão não se alteraram na sua expressão por boca e influência no ministério profético. Desde Isaías, Amós e Oseias, profetas do séc. VIII, a idolatria de Israel é denunciada.

     A ruptura após a morte de Salomão, com Jeroboão I inaugurando um culto espúrio com as tribos do norte, já demarca uma influência negativa que terá o seu refluxo na religião de ocasião em Judá, no sul. O profeta Elias, logo depois, no norte, denunciando a dinastia de Onri, que se instala após a morte de Jeroboão, vai se levantar contra o culto a Baal, deus fenício importado de Sidom, por Jezabel, esposa de Acabe, filho de Onri, rei de Israel.

     Jezabel era filha do rei fenício. E o culto que ela trouxe para Israel ainda existia no tempo de Jeremias, mais de 200 anos depois. No tempo de Jeroboão II, que reinou 51 anos em Israel do Norte, Amós vai reclamar dos ídolos que o povo trás para o deserto, após a saída da escravidão no Egito. Entre as coisas que Israel deveria ter deixado para trás, no Egito, estava a idolatria. 

      Oseias vai denunciar tanto a corrupção moral do sacerdócio de seu tempo, ainda no tempo de Jeroboão II, quanto a mesma idolatria, como apanágio. Isaías, cujo ministério começa, logo depois, porém em Judá do Sul, vai denunciar o nojo que Deus tem do culto que lhe é oferecido, porque falta santidade aos sacerdotes, ou seja, separação dos ídolos, prática da justiça social e cessação dos crimes de sangue, de que eles e o povo são acusados.

     E Jeremias, no seu tempo, além de denunciar os cultos aos baalins espalhados pelas cidades de Judá, herança do norte, destaca a profecia de Miqueias, contemporâneo de Amós, Oseias e Isaías, de como este profeta no sul anuncia, desde sua época, que Israel não terá paz em seu território, porque vive de trair o seu Deus e se corromper após os ídolos de que aprende a cultuar.

       A história do povo hebreu com a idolatria, como já advertia Josué, começou cedo, desde quando Abraão saiu de casa e não seguiu a religião de seu pai Terá. Passou pela desintoxicação da religião egípcia com Moisés que, ainda no deserto, como acusou Amós, teve que educar o povo no estabelecimento de um culto depurado da idolatria.

     E na fixação na Palestina, como advertiu Josué, onde todos os vizinhos eram idólatras. O povo de Deus foi convocado a marcar as nações com o diferencial de sua religião. Deus único, pessoal, não ligado a nenhum santuário e sem rosto. Mas somente vai se ver livre do vício histórico da idolatria, após o trauma do exílio, corajosa, atrevida e ousadamente anunciado por Jeremias, uma espécie de "Êxodo ao inverso", quando o povo de Deus, ou o que restou dele, volta ao cativeiro, perde sua liberdade, prefigurada no seu rei, perde a "terra prometida" e vê o Templo, símbolo de seu culto, virar cinzas, junto com toda a cidade.

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