sexta-feira, 11 de dezembro de 2020

Desmantelo e inoperância: quando a palavra mente. A profecia de Jeremias e o descrédito do discurso

       Em linhas gerais, na primeira palavra de Jeremias, quando Deus o manda proclamar ao povo Sua demanda, o profeta enuncia a fórmula corriqueira de identidade da autêntica fala profética: koh 'amar Yhwh, "Assim diz o Senhor".

    E como já previamente visto na estrutura do texto, 2,2 indica o passado, agora renegado, de fidelidade e namoro de Yhwh com seu povo, na linha da profecia de Oseias, em 2,14-23, enquanto que 2,3, embora destacando que, naquela época, os que "devoravam Israel se faziam culpados", na fase atual, já antecede o anúncio do "ciclo do inimigo do norte", antecipando a invasão babilônica, visto que a relação do povo com Yhwh e, consequentemente, com seus inimigos havia mudado para pior.
     As quatro partes segintes do cap. 2 definem a nova relação, ao inverso, com Yhwh e os argumentos da tentativa de compreensão lógica dessa mudança. Primeiro argumento, 2,5: que injustiça vossos pais viram em mim, para que me trocassem por ídolos nulos e se anulassem neles? Segundo argumento, 2.6-7: não perguntaram pelo Deus que os tirou do Egito, guiou-os pelo ermo do deserto, para os introduzir numa terra fértil, agora por vocês contaminada.
     No terceiro argumento, em 2,8, quatro classes de líderes são indicadas por Jeremias como corresponsáveis pela falência do povo: sacerdotes, escribas da lei, pastores do povo e profetas. E visto que esse é o grau de infidelidade do povo, que troca o Senhor pelos ídolos, com tudo de repugnante que vem junto, o profeta anuncia que Deus tem um pleito com o povo. 
      Das mais absurdas, entre as contestações de Jeremias, este sugere um tour por terras estranhas, que incluem o mar de Chipre e Quedar, para ver que povos estrangeiros desmerecem seus ídolos, posto inexistirem como deuses, do mesmo modo que Israel e Judá desmerecem sua Glória, o Deus único. 
     Deus toma a palavra, por boca de seu profeta, para dizer que duas nulidades cometeram em conjunto: 1. Deixaram o Senhor Deus, manancial de águas vivas; 2. Cavaram cisternas rotas que não retém águas. 
     Aqui termina o bloco inicial do ciclo de infidelidade. Para que o profeta agora opere uma inversão de identidade, referindo-se a Israel como filho nascido em casa, mas que procura, por si, o próprio cativeiro. O povo que foi resgatado da escravidão do Egito, pelo poder de Deus, por si mesmo se torna novamente escravo da idolatria. 
     As consequências que, já na época do profeta se avizinhavam, ora com o mando egípcio, logo após a morte de Josias, assim como a troca pela babilônia, que se configurava, estão descritas na lista dos que vão, sucessivamente, pilhar o reino de Judá e sua capital Jerusalém: cidades limítrofes do Nilo, com aquelas limítrofes do Eufrates. 
      Esta unidade se encerra com uma dura advertência, com um paralelismo que acentua a parcela de Israel na relação com Deus, malícia/infidelidade, e a parte de Deus no trato com seu povo, castigo/repreensão. A experiência do povo será reconhecer quão mau e amargo será deixar o Senhor e não ter consigo o temor do Senhor.
      A unidade seguinte transparece com a denúncia de um Israel repreendido pelo desprezo com que retribuía os cuidados de Deus, que lhe rompia as ataduras e que o havia plantado como vinha dileta. Agravou-se tanto em sua prevaricação, que agora o profeta afirma que não haverá remédio para que se purifique. 
     Aparece o rastro da infidelidade do povo, prostituído após os baalins, como num desespero incontido e lascivo diante do pecado, atraído por ele, sem que preste ouvidos a qualquer exortação. Não há de guardar os seus pés de andar após seus amantes e deuses estranhos. 
     A parte final, o último quadrante da série, inicia com uma comparação entre o ladrão, flagrado em delito, com o flagrante da mesma estirpe de reis, príncipes, sacerdotes e profetas de Israel, coniventes com o culto idólatra. Tantos deuses, em Judá, quantas são suas cidades! Então, peçam a eles que o ajudem na hora da angústia que se avizinha. 
      Deus argumenta que a disciplina restauradora que perpetrou, de nada adiantou, sintoma da quantidade de profetas mortos à espada, portanto Deus indaga se ele mesmo foi cilada para o povo, como se fosse uma armadilha em forma de deserto ou densa escuridão. 
     Enganoso é o amor que buscam, como de mulheres perdidas, condenam pobres inocentes e a si mesmos se declaram inocentes desse crime, mas esse andar leviano do povo vai conduzi-lo a dois extremos significativos da geopolítica da época: ao sul, no Egito, e ao norte, na Assíria.
     Num e noutro extremo não haverá alento para o povo, de onde sairão desesperados, tendo trocado a confiança no Senhor pela confiança numa esperança frustrada, proveniente de qualquer inopinada ajuda que esses povos pudessem conceder.

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