sexta-feira, 23 de abril de 2021

Notáveis

 As pessoas foram chegando. Hoje são como companheiros de jornada, a maioria, talvez, nem mais entre nós. Uma delas eu visitava constantemente em Copacabana, além da própria Eunice Spiller: Hilede Cantanhede. Na última vez que nos encontramos, ela estava com 89 anos.

Numa outra vez, o porteiro nos informou que havia ido morar com o irmão em Cabo Frio. Ela testemunhou a história, quando morava na rua Tonelero, próxima ao túnel Martim Vaz, assim chamado anos depois do assassinato desse major, na tentativa de atingirem Carlos Lacerda, em 1954.

Contava a história do dia em que cruzou com JK nos elevadores de seu prédio, com aquele sorrisão e toda a simpatia. E também de como eram as recepções no casarão da família, em Botafogo, nos dias de sua infância. Ora, assim vamos alcançar pouco depois de 1925. Chegou a falar de histórias de assombração num desses casarões.

Era católica. Autenticamente católica. Mas assídua aos nossos estados bíblicos. Compartilhávamos as diferenças entre os modos de crer e nossa amizade se aprofundava. Conheceu-me solteiro, foi ao meu casamento, conheceu meus filhos, convivendo juntos ela, eu, Eunice e Jassira.

Essas três me foram fiéis escudeiras, a diáconisa congregacional e as duas outras católicas, sem que a amizade não deixasse de ser profunda. Estiveram no Meier, no culto de apresentação do Isaac, no ap de Dorcas. Essas foram as mulheres. Vamos aos homens.

Com Geraldo Spiller conversávamos no ap da Tonelero. D. Eunice havia contratado duas enfermeiras, uma para a semana inteira e outra para os finais de semana, para dar assistência ao esposo. Eu sentava e líamos a Bíblia, ele bastante incomodado com sua imobilidade, devida ao AVC de que foi vítima.

Era regente do coral em São João de Meriti, época áurea da Igreja Evangélica Congregacional naquele município, pastoreada pelo Limeira. Cláudio, seu caçula, ainda solteiro na época, tocava no conjunto recém-criado, ao estilo banda de rock, uma novidade para aqueles anos, herança do boom dos Beatles, na metade final da década anterior.

Eu dizia a ele, meu caro Geraldo, o seu caso em muito é ainda melhor do que o de Jó, porque ele perdeu tudo: filhos, bens e saúde. O Sr perdeu, sim, sua saúde, mas ainda tem recursos, e muito mais, filhos amorosos e esposa dedicada. A custo conseguíamos amainar seu inconformismo.

Urias e Eneias. O personagem bíblico tinha, na época, ora, lá vão mais de 30 anos, a idade que tenho hoje, 63. E queria ser como um garotão com 40 anos menos. Uma figura esse xará do general amigo de Davi, personagem de triste história. Não com esse Urias que conheci. Lutava, como Eneias, com relação às neuroses de que nós três admitimos ser portadores, participando conosco dos estudos bíblicos e do grupo do NA.

Eneias foi primoroso. Além de me ser guia por Copacabana, certo dia me levando a sua própria residência, juntos tínhamos entrada no sistema prisional, na antiga e hoje já implodida penitenciária da Frei Caneca, 1850-2010. Eneias me levou à pastoral católica, apresentando-me ao responsável, que me assinou uma carteira, a qual me franqueva entrada no Complexo Penitenciário.

Nossa assistência era no Anexo, assim nomeado o setor de ex-policiais apenados. Eles ficavam numa unidade deslocada, pela óbvia impossibilidade de os ter misturados aos demais apenados. Até minha entrada deveria ser por outro portão de acesso, que não o principal, evitando que minha caminhada célere, entre todos os demais presidiários, indicasse exatamente o meu rumo, atiçando uma eventual represália.

Raramente essa regra foi seguida. E também nenhuma represália verificada. Enquanto Eneias, no andar de cima do Anexo, aonde certa vez me conduziu, coordenava com os internos um grupo de NA, encerrando a reunião com sua célebre oração da "energia da luz violeta" eu, no térreo, reunia-me com a turma do estudo bíblico, que incluía figuras notáveis, cono Canabarro, de quem somente guardei o sobrenome, e Baleia, de quem somente guardei o apelido.

As mulheres escudeiras, Eunice, Hilede e Jassira, e os homens de parelha, Geraldo, com semi mobilidade, Urias e Eneias cumpriram esse meu grupo núcleo duro das jornadas por Copacabana e pelos ministérios à parte delas derivados.



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