quarta-feira, 28 de junho de 2023

A síndrome da serpente

1Ora, a serpente era o mais astuto de todos os animais selvagens que o Senhor Deus tinha feito. E ela perguntou à mulher: "Foi isto mesmo que Deus disse", Gn 3,1a.

 Querendo-se ou não, por detrás da narrativa de Gênesis 3, há reflexos da personalidade da serpente na nossa própria personalidade.

   No hebraico é chamada HANACHASH, quer dizer, "a serpente": HA, é o artigo "a" e NACHASH o substantivo traduzido "serpente". CH tem o mesmo som de /j/ no espanhol "hijo", filho.

   E o SH o mesmo som do antigo refrigerante CRUSH, dos anos 60/70. E o verbo que a ela se refere é o HAYAH, com esse H soando como /h/ no inglês "house", casa.

   O texto conta a história da serpente, apresentando-a com a mais astuta, sagaz entre seus iguais no campo, HASADEH, mesmo raciocínio, HA sendo o artigo "o", invariável, no hebraico, e SADEH, campo.

   Por isso aparece na tradução a palavra "alimárias", generativo que não aparece no original. <ARUM MICOL HAYAT HASADEH, no hebraico, /</ uma aspiração grave, e <ARUM traduzida "sagaz", MI + COL, com MI indicativo de sua origem entre "todos, os demais", COL, "os que havia", HAYAT, no campo, daí a tradução "entre as alimárias".

    Uma serpente, ou "a serpente havia sagaz entre os(as) demais alimárias". Nem se sabia que a existência dela se constituiria numa prova para o casal. Que deve ser visto em seu conjunto, assim como individualmente.

   Mas deixando o casal, vamos abordar que reflexos da personalidade da serpente, segundo demonstra a narrativa bíblica, foram herdados pelos descendentes do casal que, para as Escrituras, somos todos nós.

   A primeira interpelação dela, "a serpente que havia", pergunta: KI-'AMAR HELOHIM, "assim falou Deus?". A sugestão é de introduzir uma dúvida. Atualizada, seria perguntar: "Se Deus existe, ele fala? Como fala? Nítida ou supostamente?"

    Mas na economia da narrativa, Deus havia falado: MICOL ETS-HAGAN 'AKOL T'OKEL, "dentre todas as árvores do jardim comer comerás". UMEETS HADA<AT TOV VARA< LO TOKAL. Traduzido: U + ME + ETS, e + da + árvore, do conhecimento, HADA<AT do bem, TOV, e + mal, VA + RA<, "não comerás".

    E acrescenta: BeYOM 'AKALeKA MIMENU MOT TAMUT. A palavra YOM é "dia" e Be é a preposição "em". Traduzido: No dia em que comeres verbo "comer", 'AKAL + KA, pronome "dela", MOT TAMUT, verbo MUT, morrer, traduzido "morrer morrerás".

   Então Deus havia dito "morrer morrerás", mas a serpente, contra-argumentando com a mulher, afirmou "Não morrer-morrerás". Porque Deus sabe que no dia em que comeres dele, vão se lhes abrir os olhos e sereis como Deus conhecedores do bem e do mal".

    Resumindo, a serpente: 1. Pôs em dúvida a validade do que Deus havia dito; 2. Contradisse o que Deus havia afirmado; 3. Sugeriu que o casal seria como Deus; 4. Podemos incluir que despertou a curiosidade para o mal.

   Talvez esta última sugestão, a simpatia para com o mal, seja o que mais exerce fascínio sobre o ser humano. Pois caminhando de volta, para abarcar toda a sugestão da serpente, tem-se que:

    Seriam como Deus, "conhecedores" do bem e do mal. Não. Não precisa fazer o que Deus sugere: não faça ou faça o inverso. Qualquer palavra apenas suspeita de ter origem divina, duvide, ponha em dúvida, nem se ocupe disso.

    Estamos no alvorecer do século XXI. Embora o Iluminismo tenha ocorrido no século XVIII, como rescaldo do Renascimento, este do século XVI, os efeitos dessa revolução perduram até hoje.

   A razão venceu. Por isso, dizer que Deus fala soa pueril. Afeito mesmo a essas histórias de serpentes que falam. Mitos, no mínimo, literariamente assim classificados. Ainda que essa história tivesse algum crédito, fora da mera especulação de gênero literário, ora, como Deus fala?

    Com quem fala? Como autenticar Sua fala? Critérios filosóficos? Teológicos? Jurídicos? Místicos? As Escrituras sugerem uma solução, na introdução da carta (anônima) aos Hebreus:

   "Havendo Deus falado muitas vezes e de muitas maneiras aos pais, pelos profetas, nestes últimos dias nos falou pelo Filho, a quem constituiu herdeiro de todas as coisas e por meio de quem fez o universo."

   Para as Escrituras, basta afirmar isto. Porém daqui para adiante e para fora, inicia-se outra jornada. E mantida está, incorporada à nossa experiência, a síndrome da serpente:

   Foi isso mesmo que Deus disse, se é que diz alguma coisa. Se diz, nem ligue, faça de conta que não diz ou, então, contrarie. E não se preocupe: existindo ou não existindo, seja deus você mesmo. 

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