quinta-feira, 12 de março de 2020

Maninha - mais ou menos assim

 
     90 anos, o que dizer? Que o contrário de meus 62? Mais ou menos 27 anos à frente, a idade que Dorcas tinha quando eu nasci, em 1957? Jogos matemáticos.
   90 anos é número redondo. Marca do nascimento dessa menina em 1930. Por ser a segunda dos 12 nascidos, a mais velha entre as meninas, apelidaram-na Maninha.
    Era a Maninha que ajudou a criar os mais novos e que assim ficou conhecida alhures. Dorcas foi nome complicado, homenagem à  avó materna, de mesmo nome.
    Junto a Merinho, de Baldomero, o mais velho, e Ebinho, de Eber, segundo homem dentre os três nascidos, todos diminutivos, todos muito grandes, trabalharam juntos na ajuda do sustento à extensa família.
    O designativo diminutivo encaixou-se como luva, de que até o noivo Cid lançava mão, do mesmo modo como esposo, do que testemunhei pela vida em fora, expressão esta cunhada por ele.
    Temperamento baldomérico. A fórmula que uniu Baldomero e Eunice, os pais dela e dos demais três homens e cinco mulheres nascidos, certamente foi contrabalançada por Eunice.
     Mistura de doçura, sempre que preciso, mas também de tenacidade e franca opinião, quando necessário. Era uma espécie de filtro da autoridade do esposo.
    Nem seria preciso interferir, porque Eunice teria todo o expediente. E se, por acaso, Tula, apelido dele, se enrolasse, mesmo que não demonstrasse, Eunice chegava, oportunamente, com a chave de toda a solução.
    Cada filho, cada filha herdou um pouco desse misto de temperamentos, outros mais, outros menos Eunice ou Baldomero. Daí a expressão "temperamento baldomérico". Aliás, há pouco descobrimos essa origem.
    São Baldomero. Por nascer nas cercanias desse dia, foi batizado assim, talvez pela mãe Joana. Gislaine, a segunda de mesmo nome, visto Lane ter-se ido, muito cedo, aos 12 anos, ouvira do pai essa explicação.
    Maninha preenchia com sua presença o ambiente por onde andasse. Mãe somente de um, este que escreve, argumentou com Deus para que houvesse, pelo menos, esse um. Abortara dois, um deles já se sabia feminino, tendo sepultado Cid Araujo de Oliveira, primeiro parto e único nascido antes de mim, num ano assim bissexto.
   Maninha tinha 26 anos. Aliás, num dia como hoje, dia do aniversário, foi e voltou do cemitério, em 12 de março de 1956, para sepultar o menino, apenas há 13 dias nascido.
    Maninha deve ter lutado com Deus. Nascimento difícil, hemorragia ainda no HSE - Hospital dos Servidores do Estado, em maio de 1957, Deus foi fiel, ouvindo sua oração de Ana, por sinal, nome de nossa filha Ana Luísa.
    Diminutivo, sim, mas grande em força, firme nas provações, sempre alegre e empolgada com a vida. E com a igreja, principalmente com a igreja.
   Dividia seu tripé entre lar, escola e igreja. A partir de 1963, argumentou com o marido que voltaria a trabalhar fora, para ajudar nas despesas. Levaria o menino, de Cascadura a Nilópolis, by bus, uns 20 km, ela para o Curso Normal, no Nilopolitano, o menino de 6 anos para o Jardim de Infância, no Instituto Filgueiras.
    Peregrinaria por escolas em Belford Roxo, Nova Iguaçu, Queimados, Éden e Nilópolis, até que se efetivasse no Aydano de Almeida, já no último concurso público que fez.
    Contrato, na época, pagava em julho e depois em dezembro. Certa vez, para ir by bus a Nilópolis, domingo, para a igreja, fui vender jornais na "Vendinha", botequim/bar no final da Mendes de Aguiar: a volta, após o culto, à noite, estaria garantida por ajuda de um dos irmãos ou cunhados.
    Para nunca faltar, como nunca faltou, para o pagamento do financiamento da Caixa, no Méier, a partir de 1967, Maninha passou a ser conhecida por vender joias e/ou roupas. Entre um calote e outros, foi assim que ajudou o esposo a quitar o ap.
    Nada disso afastava Maninha da igreja. Caso no domingo, fosse em Nilópolis, desde a mais tenra idade, ou em Cascadura, a partir de 1966, alguém não encontrasse Dorcas na igreja, poderia direto procurar no hospital: certamente, seria doença.
   E assim criou seu filho. Dizia que trocava as fraldas de pano, aquelas mesmas, laváveis e quaráveis ao sol, postas em forma de triângulo e presas por alfinetes (broches, como chamam os acreanos), nem para isso tirava Cid Mauro de dentro do templo, mas se deslocava ao último banco.
    E seu apego à denominação levou Eunice, a mãe, ainda em 1949, no início do namoro, prevenir-lhe que não prosseguisse, porque Cid era seminarista batista, e todos sabiam que ela, jamais, trocaria sua denominação por nenhuma outra.
    União Infantil, Juvenil, UMEC, COMEC, União Feminina, enfim, não há departamento por onde Dorcas não tenha, com louvor, passado, sempre por todos e tudo aproveitando. Para ela, igreja era algo que trazia consigo, bem ao jeito e modo de inspiração do Espírito.
   Tudo o que se referisse a igreja lhe dava prazer, todo o tempo, a todos estimulava, em tudo se envolvia, em todas as etapas e instâncias. Nos seus derradeiros anos, eu no Acre desde 1995, até sua partida para o lar em 2016, em todos os telefonemas ou em todas as conversas pessoais o assunto era Fluminense, suas amigas, a União Feminina, Vida Cristã, a denominação congregacional, enfim.
    No leito do hospital queria que eu escrevesse o texto de Tesouros da Vovó, transportando-me para uma linguagem infantil, para contar a história da conversão da neta do pastor. Uma das suas fotos naquele leito foi com aquele mãozão segurando o número recente da revista.
    Tenho de parar por aqui. Fica a marca de seu sorriso. A certeza de ter inundado nossas vidas com suas orações. Costumo dizer que ainda caminho sob a inércia delas, eu e Regina, pois foi nossa conselheira desde o namoro. Assustei-os, em 1967, quase com a perda de minha perna esquerda. Nem sei ao certo, como enfrentou. Só sei que sempre ao meu lado, por 3,5 meses, em 1967, no mesmo HSE onde nasci.
    Lembro-me de uma última altercação com ela. Era domingo. Não estava bem. Insisti que era melhor ficar em casa, descansando. A reposta foi não. Sinto-me melhor e bem na igreja. E lá há ainda mais gente que me poderá ajudar.
    E outra altercação bem a caracteriza. Com esta, vou terminar. Há fuso de diferença de 2h a menos aqui no Acre. Isaac, neto de Dorcas, colocou-a 2h da manhã no voo para o Rio: 3,5h até Brasília, uma espera de 1,5h, com mais 1,5h hora até o Rio.
    "Isaac", chamei. Pelo tom, ele já preveniu bronca. "Que foi desta vez, pai?". O tom era de resignação. "Como você coloca a vó num voo 2h da manhã? Ela vai chegar no Rio para lá de 9h! Não vê que é uma idosa, de mais de 80 anos!?"
    Veio a reposta: "Ela pediu, pai: amanhã é dia 06/09. Ela nem quer dormir, nem de manhã, nem à tarde. Vai ganhar tempo, ela disse, limpando o ap e fazendo os enroladinhos e pãezinhos para a Pedra de Guaratiba. É dia do Seminário". Entendi, Isaac, eu respondi: eu entendi.
     Dia 07/09 tocou o fixo lá em casa, umas 17h30 do Acre, 19h30 do Rio. Atendi. Do outro lado, uma voz, aquela mesma, nítida e efusiva: "Cid Mauro, nossa barraca arrecadou mais de 1.200,00. Foi a que mais arrecadou. Uma benção!". Mais ou menos assim foi Dorcas, também conhecida como Maninha.

5 comentários: