quinta-feira, 26 de março de 2020

Lição 4 (I e II) - Panorama da igreja - At 2,42-47; 4,32-35; 9,31.

Atos 2,42-47; 4,32-35; 9,31.

E perseveravam na doutrina dos apóstolos e na comunhão, no partir do pão e nas orações.
Em cada alma havia temor; e muitos prodígios e sinais eram feitos por intermédio dos apóstolos.
Todos os que creram estavam juntos e tinham tudo em comum.
Vendiam as suas propriedades e bens, distribuindo o produto entre todos, à medida que alguém tinha necessidade.
Diariamente perseveravam unânimes no templo, partiam pão de casa em casa e tomavam as suas refeições com alegria e singeleza de coração,
louvando a Deus e contando com a simpatia de todo o povo. Enquanto isso,  acrescentava-lhes o Senhor, dia a dia, os que iam sendo salvos". Atos 2,42-47.

Da multidão dos que creram era um o coração e a alma. Ninguém considerava exclusivamente sua nem uma das coisas que possuía; tudo, porém, lhes era comum.
Com grande poder, os apóstolos davam testemunho da ressurreição do Senhor Jesus, e em todos eles havia abundante graça.
Pois nenhum necessitado havia entre eles, porquanto os que possuíam terras ou casas, vendendo-as, traziam os valores correspondentes
e depositavam aos pés dos apóstolos; então, se distribuía a qualquer um à medida que alguém tinha necessidade. Atos 4:32-35

A igreja, na verdade, tinha paz por toda a Judeia, Galileia e Samaria, edificando-se e caminhando no temor do Senhor, e, no conforto do Espírito Santo, crescia em número.  Atos 9:31.

 Introdução 
 
      A avaliação que Lucas faz da igreja, nesse início do livro de Atos, sintetiza-se nas referências  bíblicas acima. Aspectos notáveis são enumerados, o que nos conduz a uma natural comparação com a história atual da igreja.
 
         Que valores podemos estabelecer nessa relação?  Será possível avaliar uma pela outra, quer dizer, a chamada "igreja primitiva" e a contemporânea? 
 
    Sejamos realistas, uma e outra apresentam vícios e virtudes, porque são imperfeitos os crentes de ambas as épocas. Mas a comparação nos permitirá enumerar aspetos da igreja do passado que a atual não deve deixar de preservar.

   Passamos e indicar as qualidades ressaltadas por Lucas, pelo modo como a igreja dava continuidade ao seu ministério, no suprimento do Espírito e na identidade com Jesus.


1. Rotina diária da igreja primitiva e seus efeitos

1.1. "Diariamente perseveravam unânimes no templo, partiam pão de casa em casa e tomavam as suas refeições com alegria e singeleza de coração, louvando a Deus", At 2,46-47a.

       Vamos analisar, passo a passo, as observações feitas por Lucas, sobre a agenda da igreja:

1.1.1. Diariamente iam ao templo: não havia ainda templo, no sentido atual, para aqueles irmãos. O Templo de Jerusalém era um conjunto arquitetônico imenso, possuindo variados recantos de encontro, que o próprio Jesus utilizou, Lc 19,46-48:

"Diariamente, Jesus ensinava no templo; mas os principais sacerdotes, os escribas e os maiorais do povo procuravam eliminá-lo; contudo, não atinavam em como fazê-lo, porque todo o povo, ao ouvi-lo, ficava dominado por ele".

      A Igreja aqui seguia a própria rotina de Jesus, que era diária. Talvez a vida moderna não nos permita estar "diariamente no templo". Azar o nosso. Se não substituirmos a necessidade, de que não podemos abrir mão, de "diariamente perseverar unânimes no templo", ainda achamos que haverá uma outra compensação?

       Essa rotina da igreja é vista. Empresas, TV, governos, Bancos e Bolsa de Valores, enfim, tudo tem rotina. Qual a rotina da igreja? Ela precisa acontecer e ser vista pelo mundo, agindo não automatizada, formalmente, por obrigação, mas retirar dessa rotina todo o proveito. O Salmo 1,1-3 diz:

"Bem-aventurado o homem que não anda no conselho dos ímpios, não se detém no caminho dos pecadores, nem se assenta na roda dos escarnecedores. Antes, o seu prazer está na lei do Senhor, e na sua lei medita de dia e de noite. Ele é como árvore plantada junto a corrente de águas, que, no devido tempo, dá o seu fruto, e cuja folhagem não murcha; e tudo quanto ele faz será bem-sucedido".

          Que "sucesso" a igreja de hoje almeja? Que rotina hoje, devido à vida moderna, poderá suprir essa falta? Uma das coisas que a Igreja praticava, nessa "perseverança unânime", era "perseverar na doutrina dos apóstolos".

    A Igreja de hoje é festeira e pretensamente soberba, ou prioritariamente perseverante na palavra? Porque da Palavra de Deus tudo decorre: (1) a identidade da igreja, (2) sua missão e (2) o conteúdo de sua mensagem. A palavra é prioridade.

       Havia, sim, louvor, mas vinha por último,  decorrente de toda a responsabilidade. Veja, acima, a ordem na avaliação de Lucas. Como diz Paulo em Rm 12,1-2, o louvor era decorrência do "culto racional". Em outro lugar, Paulo também menciona essa mesma ordem, Cl 3,16.:

"Habite, ricamente, em vós a palavra de Cristo; instruí-vos e aconselhai-vos mutuamente em toda a sabedoria, louvando a Deus, com salmos, e hinos, e cânticos espirituais, com gratidão, em vosso coração".

   Vamos conferir a ordem? 1. Habitar, ricamente em nós, a palavra; 2. Instrução e aconselhamento mútuo, em toda a sabedoria; 3. Culto: louvor, salmos, cânticos espirituais; 4. Gratidão no coração, de nossa parte e da parte de Deus.

1.1.2. Louvando a Deus: A Igreja atual inverteu a ordem. Uma das heresias modernas, que tem drenado as energias da igreja e enchido os bolsos, com dinheiro, de promotores de shows, empresários e cantores "gospel, gospel, gospel" (aqui eu lembro de gollum, gollum, gollum), é achar que cantar 2h seguidas, chamando isso de "louvor", para reservar 10 a 15min para as "palavras de ordem" ou "legendas de auto-ajuda", ao final, que não pode ser chamado sermão, tudo em tom de soberba pretensiosa, manifesta nessas "palavras (ao vento) de ordem", chamam isso de culto.

     Interessante Paulo mencionar três gêneros musicais: (1) salmos; (2) hinos; (3) cânticos espírituais. Salmos, há 150 no Antigo Testamento, inspirados pelo Espírito Santo. Hoje, se você pergunta a um "animador gospel" quantos versículos de Salmos ele conhece, vai ser um vexame. Hinos, quando de bom conteúdo e talento, por seu tamanho e estrutura, por si só, são uma aula de rápido recado, cuja repetição do coro fixa, na mente de quem ouve, a mensagem. Inúmeras conversões se deram dessa forma.

   E cânticos espirituais expressam a flexibilidade tão reclamada. Aqui, sim, pode entrar o gospel inteligente, e não o gollum, gollum, gollum da tosse desse próprio personagem. Quando se canta, não é para que se saia da igreja, ao término do culto, com uma rala e aguada sensação de euforia,  como se tivesse sido enganado, mas com uma mensagem bíblica gravada na mente, para que faça efeito no coração.

      Um poderoso meio de proclamação da mensagem do evangelho é a música, porém usada com sabedoria, em todo o seu enquadramento: (1) gênero musical compatível ao contexto, da parte de quem a compõe, assim como da parte de quem vai ouvir; (2) conteúdo também compatível, letra e poesia, em seu significado.

    Para isso, deve haver arte e talento específicos, e não somente plágio, a partir do popular, não no sentido legítimo e restrito, mas no sentido vulgar, como tem invadido a igreja atual e, de modo lastimável, poluído e diluído o conteúdo e a propriedade de sua voz e mensagem.

    Igreja não é lugar de puro entretenimento, reuniões das quais saiamos eufóricos, porém vazios. Empolgação com prazo de validade. Quer assim? Vá à Marquês de Sapucaí ou ao Rock In Rio. Porém a igreja está no mundo para fazer pensar, proclama uma palavra de autoridade que faz refletir, que promove "alegria no Senhor", que é permanente, ainda que debaixo de provações, como diz Tiago, Tg 1,2-3, e que é "a nossa força", como fala Neemias, Ne 8,10.

1.1.3. Partiam pão de cada em casa: Partir pão de casa em casa e tomar refeições nem precisa motivar os crentes para isso. Mas o sentido aqui também é estratégico para o crescimento da igreja, e não só diletante. Ir de casa em casa não é para pôr a fofoca em dia (aliás, hoje, pode-se fazer a distância, como satanás sempre fez) e as refeições não só para municiar o rebanho de sobrepeso.

     Quando o casal Robert e Sarah Kalley chegaram ao Brasil, em 1855, usaram a estratégia do "de casa em casa", mesmo porque a lei do império tinha a Igreja Católica como religião oficial e não permitia a construção de templos evangélicos, protestantes ou de acatólicos. Eles usaram a estratégia de células na única forma legítima. Esse casal lia a Bíblia, cantava Salmos & Hinos e orava. Nalgumas vezes, a casa onde estavam foi cercada, com pedras e franca hostilidade do lado de fora, atrasando ou impedindo o seu retorno para a sua própria residência. Mas nunca houve medo e nem sua agenda foi alterada.

        A oportunidade de outras atividades da igreja, sejam de lazer ou festa, assim como visitação e cultos nos lares sempre deve ser proveitosa, inteligente, prazerosa, sempre como decorrência de sua identidade, vocação e papel essencial no mundo. Pela descrição de Lucas, vemos como o encadeamento de todas as atividades se autosuprem, cada uma decorrente da outra, reforçando-se entre si, permitindo um todo harmônico, bem articulado e rico em suprimento. 

2. Estado de crescimento e aceitação da igreja primitiva 

     Lucas ressalta as qualidades da igreja, que indicam o modo como dava continuidade ao seu ministério, no suprimento do Espírito e na sua identidade com Jesus.

2.1. "...contando com a simpatia de todo o povo", At 2,47a. A palavra "simpatia" é tradução de "charin" que, por sua vez, tem "chaíro" e "charis" em sua origem. A tradução seria "plenitude de alegria", para a primeira, e "graça", para a segunda. Significa que a igreja era acolhida por todos à volta. A palavra "graça" aplicada a Deus significa sentimento compartilhado. Deus acolhe o homem com "favor", porque tem a repartir com ele tudo: Paulo fala dos atributos de Deus, Rm 1,20, entre os que ele reparte com o homem. Seu amor, principal e único diferencial de sua identidade, Ele reparte com o homem. Usar aqui uma palavra derivada de "charis", graça, para indicar o grau de aceitação da igreja, é dizer que era reconhecido pelo povo da época tudo o que a igreja tinha a oferecer, que aquele povo aceitava com gratidão. A palavra simpatia significa "ser visto ou aceito como agradável", ou "ser positivamente afetado pelo sentimento do outro". Havia reciprocidade e uma consciência coletiva dos benefícios que a igreja proporcionava: de si, é sinal, alvo e veículo da graça de Deus. 

Lições atuais: a igreja atual carece desse mesmo reconhecimento. Ele está relacionado ao que se espera da igreja e o que ela tem a oferecer. E o que a igreja tem a oferecer está estreita e diretamente ligado à sua identidade e exercício restrito de seu ministério. A igreja não tem um expediente humano a realizar, esforçando-se por se adaptar às exigências do século onde se situa ou de atender às expectativas de mídia que dela são exigidas. Testemunho de Jesus decorre de sua identificação com ele, o Senhor da igreja, aquele que afirmou que a edificaria, Mt 16,16-17:

"Então, Jesus lhe afirmou: Bem-aventurado és, Simão Barjonas, porque não foi carne e sangue que to revelaram, mas meu Pai, que está nos céus.
Também eu te digo que tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei a minha igreja, e as portas do inferno não prevalecerão contra ela".

      A Igreja não terá, de modo legítimo, como granjear esse mesmo sentimento na atualidade, caso não resgate o específico de sua missão, que é ser Jesus no mundo. Paulo afirmou aos crentes de Corinto, 1 Co 11,1, "Sede meus imitadores, como também eu sou de Cristo". 

     Não se trata de arremedo ou como se fosse uma dublagem de Jesus, atendendo a uma imagem distorcida de quem é Jesus, ainda que socialmente de consumo. A Igreja vive a comunhão com Jesus, reconhecendo de que deve apresentá-lo ao mundo, de modo coerente com sua vocação. Paulo Apóstolo afirma aos Gl 2,20, "... logo, já não sou eu quem vive, mas Cristo vive em mim; e esse viver que, agora, tenho na carne, vivo pela fé no Filho de Deus, que me amou e a si mesmo se entregou por mim". Ou assim, ou perdeu sua condição de testemunha. 

2.2. "...acrescentava-lhes o Senhor, dia a dia, os que iam sendo salvos". Atos 2:47b.

        Esse aspecto, no texto, aparece após a expressão "enquanto isso", o que o indica como decorrência de tudo o que foi dito antes. As qualidades e ações conjuntas da igreja, mencionadas no texto, contribuem para seu natural crescimento. 

       Não ocorre um inchaço ou anomalia, como se a igreja se convertesse num outro tipo de grupo, cujo fator de coesão interna fosse qualquer outro, que não a comunhão promovida pelo Espírito. 

      Seria um crescimento anômalo, determinado por fatores estranhos, que atraíssem pessoas, mas não os incrementos resultantes da ação do Espírito Santo, na ação conjunta de todos os índices descritos por Lucas como causa em cadeia do ingresso de novos e autênticos crentes. 

Lições atuais: vários fatores têm contribuído para o aumento em quantidade de várias igrejas ou movimentos de avivamento, mover, ministérios, enfim, sendo esse o fator indicado como principal comprovação do "sucesso" ministerial. Esta avaliação está equivocada. Aumento em quantidade não significa, implicitamente, em qualidade. E, neste caso específico, o controle de qualidade muitas vezes não está ao alcance de nossa avaliação. 

    Jesus perdeu seguidores, quando eles avaliaram que não suportariam para si mesmos o discurso do Mestre. Um dos problemas da igreja atual reside, exatamente, no seu discurso e o que ela está oferecendo como objeto de consumo. Veja, em Jo 6, os textos sobre essa rejeição:

1. v. 27:  "Trabalhai, não pela comida que perece, mas pela que subsiste para a vida eterna, a qual o Filho do Homem vos dará; porque Deus, o Pai, o confirmou com o seu selo". Aqui ele estabelece a distinção entre pão terreno, que se adquire pelo trabalho, e pão do céu, Jesus, ao alcance da fé. Começa a rejeição, porque queriam um "Jesus de consumo", que satisfizesse os seus caprichos;

2. v. 41: "Murmuravam, pois, dele os judeus, porque dissera: Eu sou o pão que desceu do céu". Aqui os judeus evocam Moisés, agumentando ter-lhes dado "pão do céu" (o maná), enquanto Jesus diz ser Deus que dá o pão da vida. Não estavam interessados nem em salvação e nem nos frutos do reino de Deus, mas em necessidades imediatistas;

3. v. 59-60: Estas coisas disse Jesus, quando ensinava na sinagoga de Cafarnaum. Muitos dos seus discípulos, tendo ouvido tais palavras, disseram: Duro é este discurso; quem o pode ouvir?". Aqui, na evolução do raciocínio, Jesus explica que dará sua vida pelo mundo, escandalizado-os por se referir ao batismo em sua morte/ressurreição, de modo simbólico e propositalmente escadaloso,  em "comer sua carne e beber o seu sangue". 

4. v. 66: "À vista disso, muitos dos seus discípulos o abandonaram e já não andavam com ele". E aqui Jesus completa a sua argumentação, dizendo que maior escândalo do que dizer que Ele veio do Pai é dizer que vai voltar para o Pai. O ponto central na palavra de Jesus é que a salvação se opera nEle: ou aceitamos esse ministério e o compromisso com Jesus, ou o abandonamos e inventamos um "Jesus de consumo", o que se constitui também em idolatria. 

       A igreja de hoje, colocando ênfase na acumulação de pessoas no seu rebanho, altera seu discurso para não perdê-las. Jesus, ao contrário, manteve o seu discurso original, que foi determinante para que, como mostram os textos, num crescendo, houvesse descontentamento e debandada. 

       Não quero afirmar, com isso, que a Igreja deva provocar a saída dos seus membros por um discurso legalista com respeito a costumes, fundamentalista com respeito às Escrituras ou restritivo e não "liberal" com respeito ao mundo. Ela precisa ajustar-se a sua herança em Cristo, praticando a originalidade de seu discurso, ministério e missão, para que o seu aumento seja autenticamente orgânico, como diz Paulo Apóstolo, em Efésios 4:15,16:
"Mas, seguindo a verdade em amor, cresçamos em tudo naquele que é a cabeça, Cristo, de quem todo o corpo, bem-ajustado e consolidado pelo auxílio de toda junta, segundo a justa cooperação de cada parte, efetua o seu próprio aumento para a edificação de si mesmo em amor".

     Lucas indicou, até essa altura de sua descrição, de onde procede esse caminho para o crescimento orgânico autêntico da igreja. Vejamos a seguir. 

3. Fatores de crescimento da igreja primitiva 

3.1. "...perseveravam na doutrina dos apóstolos", At 2,42a.

     Os apóstolos eram os arquivos vivos da palavra de Jesus. Quando prometeu o Espírito Santo, Jesus havia afirmado, Jo 14,25-26: "Isto vos tenho dito, estando ainda convosco; mas o Consolador, o Espírito Santo, a quem o Pai enviará em meu nome, esse vos ensinará todas as coisas e vos fará lembrar de tudo o que vos tenho dito".

     Portanto, "perseverar na doutrina dos apóstolos" era seguir a orientação de Jesus. O Espírito ensina, iluminando o entendimento, de forma a lembrar sobre o que foi dito anteriormente. No caso da igreja atual, a Bíblia é a fonte autorizada dessa palavra que Jesus deixou.

       Desde os tempos da Reforma, que completou 500 anos em 2017, entendemos que aquela que se autodenominava "Igreja", naquela época, estava distante das Escruritas, fora delas. Então, com o retorno à Bíblia, somos novamente responsáveis por seguir, com sabedoria, os seus ensinamentos. E é o Espírito Santo que vai nos presidir, fazendo-nos lembrar o que nela está escrito. Não sem antes conhecermos e perseverarmos em guardar, como foi dito, há mais de 3 mil anos, a Josué, perfeitamente válido para a igreja de hoje, Js 1,7-8:
"Tão somente sê forte e mui corajoso para teres o cuidado de fazer segundo toda a lei que meu servo Moisés te ordenou; dela não te desvies, nem para a direita nem para a esquerda, para que sejas bem-sucedido por onde quer que andares. Não cesses de falar deste Livro da Lei; antes, medita nele dia e noite, para que tenhas cuidado de fazer segundo tudo quanto nele está escrito; então, farás prosperar o teu caminho e serás bem-sucedido".

3.2. "e na comunhão, no partir do pão e nas orações", Atos 2,42b.

      Esse encadeamento lógico e propositivo de ações da igreja (denominada) primitiva não prescinde um elo do outro: ou todos ocorrem ao mesmo tempo, numa reação em cadeia, ou não ocorre o crescimento verificado. Não se trata de uma fórmula pronta, como essas de "auto-ajuda", tão comumente vendidas como resultado rápido, pronto e artificial que, infelizmente, são veiculados, aceitos e praticados pela igreja inchada e contemporânea.

       Três fatores acima mencionados agregam a igreja em torno de sua autenticadade, como assembleia, eclésia, igreja de Jesus: "comunhão, partir do pão e oração": só podem ser realizados em conjunto. 
  
         Em Jo 17,20-21, Jesus afirma que comunhão define igreja, indica a natureza dessa comunhão e sua finalidade. Se não houver o tipo especificado por Jesus, e não qualquer outra "comunhão", não haverá nem igreja autêntica e nem será alcançada a finalidade final dela: "ser testemunha de Jesus":

"Não rogo somente por estes, mas também por aqueles que vierem a crer em mim, por intermédio da sua palavra; a fim de que todos sejam um; e como és tu, ó Pai, em mim e eu em ti, também sejam eles em nós; para que o mundo creia que tu me enviaste".

      Jesus está dizendo que roga, que ora intensamente por (1) "estes" (os apóstolos), mas também por "aqueles" que vierem a crer em mim (igreja, em geral, nós incluídos); (2) "a fim de que 'todos' (apóstolo + todos nós  = igreja) sejam um; e como és tu, ó Pai, em mim e eu em ti, também sejam eles em nós" (definição de igreja: mesma comunhão que Jesus tem com o Pai, nós tenhamos com o Pai e entre nós); (3) "para que o mundo creia que tu me enviaste": única maneira da igreja cumprir sua missão: "ser tetenunha", anunciando Jesus ao mundo, de maneira autêntica e convincente. 

      "Partir o pão" e "orar" são elementos físicos dessa comunhão que começa por meios espirituais. Paulo Apóstolo, por exemplo, aos Efésios 4,3, "esforçando-vos diligentemente por preservar a unidade do Espírito no vínculo da paz", está indicando que a manutenção da "unidade do Espírito", ou seja, que deriva do Espírito e é mantida pelo Espírito, depende de esforço comum nosso e diligente, ou seja, ativo, zeloso e cuidadoso. No grego, "diligente" é "syndemos", ou seja, "estar amarrado junto" fazendo, operando juntos, em conjunto.

      "Partir pão" não é só praticar "santa ceia", mas experimentar de modo prático tudo o que ela representa. E oração nunca é isolado. Lembrando as palavras de Jesus, Mt 5,23-24:

"Se, pois, ao trazeres ao altar a tua oferta, ali te lembrares de que teu irmão tem alguma coisa contra ti, deixa perante o altar a tua oferta, vai primeiro reconciliar-te com teu irmão; e, então, voltando, faze a tua oferta".

      E na (chamada) oração do "Pai Nosso", pedir "dai-nos o pão de cada dia" não é esperar "cair do céu" mas, pelo esforço conjunto e honesto, conquistar e verificar, na comunidade, se há falta dele para alguém. É também fator de comunhão, amor e cuidado para com o irmão. E essa igualdade que Jesus  deseja ver manifesta na igreja, deve ser projetada para o contexto social em que a Igreja de encontra, em justiça social e justa manifestação profética da ação da igreja. 

3.3. "Em cada alma havia temor; e muitos prodígios e sinais eram feitos por intermédio dos apóstolos", At 2,43.

       Paulo afirma, em Fp 2,12: "Assim, pois, amados meus, como sempre obedecestes, não só na minha presença, porém, muito mais agora, na minha ausência, desenvolvei a vossa salvação com temor e tremor". O "temor do Senhor" não é uma sensação de medo interno fabricada. Uma simulação de santidade artificial, expressa numa "máscara facial de contrição" ou numa relação de palavras e termos de efeito pré-fabricados.

     Temor do Senhor se cultiva ao longo da vida. Paulo aqui, por exemplo, menciona "obediência" e "salvação". É recomendação específica para a igreja "desenvolver a salvação", o que requer obediência. Salvação, decorrente da obediência, tem origem em Deus. E à igreja compete "lançar-se com afinco no esforço de desenvolvê-la (kataergo = aplicar-se ao trabalho) com temor e tremor.

     Soa como um trocadilho, no português, e no grego correspondem a "fobus", daí fobia,  medo, e "tromu", daí tremer ou tremor, "comoção interna provocada pelo medo". Significa avaliar o grau de santidade e reverência com que a salvação deve ser considerada, por sua origem em Deus, e trabalhar por seu crescimento, de modo diligente, esforçado e consciente, em obediência a Deus. 

     Quanto a sinais e prodígios, Pedro já havia afirmado em seu sermão, At 2,22, que Jesus fora aprovado por Deus por meio dos "milagres, prodígios e sinais" que realizou. Do mesmo modo, a Igreja, primeiramente os apóstolos e, posteriormente, quaisquer dentre eles, como ocorreu com o diácono Estêvão, At 6,8, "Estêvão, cheio de graça e poder, fazia prodígios e grandes sinais entre o povo", tem a sua autoridade e comissão por Cristo confirmadas e indicadas pelos sinais que lhe foi concedido realizar.

  Cuidado aqui. Vamos mergulhar na realidade social, para enxergar as necessidades à volta, agindo no mundo, entendendo que, no poder do Espírito, toda a ação da igreja, em nome de Jesus, serão "sinais e prodígios". E não somente a expectativa de superpoderes, como somente se vê na tela do cinema.

4. As demais avaliações da igreja.

3.1."Todos os que creram estavam juntos e tinham tudo em comum. Vendiam as suas propriedades e bens, distribuindo o produto entre todos, à medida que alguém tinha necessidade", At 2,44-45.

"Da multidão dos que creram era um o coração e a alma. Ninguém considerava exclusivamente sua nem uma das coisas que possuía; tudo, porém, lhes era comum [...] Pois nenhum necessitado havia entre eles, porquanto os que possuíam terras ou casas, vendendo-as, traziam os valores correspondentes e depositavam aos pés dos apóstolos; então, se distribuía a qualquer um à medida que alguém tinha necessidade", At 4,32.34-35.

      As afirmações de Lucas, agrupadas por tema nos versículos acima, podem ser subdivididas, em síntese, em quatro tópicos naturalmente encadeados:

1. Os que creram estavam juntos e tinham tudo em comum;
2. Vendiam propriedades e bens e distribuíam a renda obtida entre si;
3. Um era o coração e sua alma, de modo a ter tudo em comum;
4. Não havia necessitados, pois eram supridos pela renda obtida.

       Podemos, ainda mais indicar, pela sequência de palavras a seguir, o ponto central da sequência acima: "era um o coração e a alma", "tudo lhes era comum" e "à medida que alguém tinha necessidade".

Lições atuais: isso aí acima é sobrenatural, mas as iniciativas são todas da própria igreja. Há outros lugares na Bíblia onde pessoas se permitem mover pelo Espírito e se doam. Na congregação do deserto foi assim. Moisés fez o apelo, Ex 35,5:

"Tomai, do que tendes, uma oferta para o Senhor; cada um, de coração disposto, voluntariamente a trará por oferta ao Senhor". E a reposta do povo foi, Ex 35,20-21: "Então, toda a congregação dos filhos de Israel saiu da presença de Moisés, e veio todo homem cujo coração o moveu e cujo espírito o impeliu e trouxe a oferta ao Senhor para a obra da tenda da congregação, e para todo o seu serviço, e para as vestes sagradas".

Na igreja primitiva a condição de vida daqueles irmãos era:

1. Decorrente e formando um só conjunto com sua espiritualidade;
2. Baseada na voluntariedade;
3. Movidos interna e individualmente pelo coração.

    Essa consciência e manifestação prática de comunhão, no Espírito, revela um grau de maturidade que não se obtém, autenticamente, nem por êxtases grupais ou download de espiritualidade. Mas por um conjunto, um todo harmônico encadeado e levado a efeito, na prática, por um esforço conjunto de irmãos que aprendeu a "desenvolver a salvação com temor e tremor".

5. Conclusão

"Com grande poder, os apóstolos davam testemunho da ressurreição do Senhor Jesus, e em todos eles havia abundante graça".

"A igreja, na verdade, tinha paz por toda a Judeia, Galileia e Samaria, edificando-se e caminhando no temor do Senhor, e, no conforto do Espírito Santo, crescia em número". At 4,33 e 9,31.

        Lucas completa sua panorâmica falando de três outras qualidades que aqueles irmãos reuniam consigo:

1. Poder para testemunhar de Jesus, como Ele mesmo falou em sua despedida, At 1,8;

2. Graça plena, abundante, junto ao Senhor e da parte do Senhor, que também corresponde ao que Jesus falou aos discípulos, sobre tudo de que a igreja precisa para o desempenho do seu ministério, Jo 14,13-14;

3. A Igreja tinha a paz de Jesus, Jo 14,27, edificava-se no temor do Senhor, cada um desenvolvendo sua salvação, Fp 2,12, e o Espírito Santo cumpria nela o seu papel de consolador, como Jesus falou em Jo 14,25-26.

       Lucas constatou em sua pesquisa, com seu olhar de médico, arguto repórter e historiador que a Igreja primitiva estava no rastro de seu Mestre Jesus. Davam plena continuidade ao ministério dEle, porque reunia consigo todas as qualidades, recomendações e exortações que lhe foram feitas por Jesus.

       Aspectos dessa igreja não podem faltar à igreja de hoje. Mesmo estando nós a cerca de 1950 anos de distância, se achamos que os Atos foram escritos por volta de 80 d.C., reconhecemos que a avaliação de Lucas foi lúcida, caro Teófilo ("amigo de Deus"), e suficientemente guiada pelo Espírito Santo para que, até hoje e para o futuro, sirva-nos como advertência. "Lâmpada para os meus pés é a Tua palavra, e luz para os meus caminhos"? Sl 119,105.

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