Costuma-se, pela não familiaridade com o texto ou por decidida intenção, desmerecer a Bíblia, frequentemente acusada culpada de males diversos.
Talvez o mais veemente, e agora, com justiça, seja a insistente faculdade dela de confrontar o ser humano com o seu próprio mal.
Se estamos certos de que, realmente, assim procedem as Escrituras, com efeito, torna-se então compreensível a razão de tanta antipatia.
Porque, pergunta-se, quem impunemente deseja ver-se, insistentemente, confrontando com sua autoria maligna?
Encontramos, entre outras, a seguinte afirmação do próprio Jesus:
²¹ "Porque de dentro, do coração dos homens, é que procedem os maus desígnios, a prostituição, os furtos, os homicídios, os adultérios, ²² a avareza, as malícias, o dolo, a lascívia, a inveja, a blasfêmia, a soberba, a loucura. ²³ Ora, todos estes males vêm de dentro e contaminam o homem." Mc 7.
Críticos liberais do texto das Escrituras costumam duvidar de que tudo o que nelas constam, como tendo sido dito por Jesus, efetivamente o foi. Mas eles definem um certo critério.
De que, muitas vezes, o mal dito (note-se bem o espaço entre estas duas palavras) é autêntico, por causa da notável sinceridade de Jesus ou pelo teste de que quanto mais estranha soe a afirmativa, mais autêntica.
Ora, então dizer que todo o mal provém de dentro do ser humano, 100% de chance de autenticidade, até para esses mais céticos.
E se presta para alguma finalidade, por assim dizer, as Escrituras aceitam, sim, pelo menos essa duas: confrontar com o mal, mas indicar sua definitiva cura.
Pelo menos. Já em seu início começa por uma aula sobre o mal. Após a rica, detalhada e, por assim dizer, poética narrava da criação, que se encerra com toda bondade, em Gênesis 1:
³¹ "Viu Deus tudo quanto fizera, e eis que era muito bom. Houve tarde e manhã, o sexto dia."
Segue-se a descrição de como nossos pais chamaram, de volta, para dentro de si (e de nós) o caos. O casal, prevenido, desmerece a advertência divina.
E o caos prossegue seu curso, no primeiro assassinato, pasmem, do primeiro primogênito, Caim, ao próprio irmão Abel.
Seguem-se assassinatos em família, agora pelo poeta bígamo Lameque, que também matou, por causas fúteis, e ainda compôs versos gabando-se.
E nessa aula bíblica inicial da maldade, prevenindo e descrevendo o seu efeito, que se espalha na humanidade, chega-se à depressão de Deus por haver criado homem e mulher.
⁵ "Viu o Senhor que a maldade do homem se havia multiplicado na terra e que era continuamente mau todo desígnio do seu coração; ⁶ então, se arrependeu o Senhor de ter feito o homem na terra, e isso lhe pesou no coração." Gn 6.
Será sempre de pasmar que algo tão medonho, a ponto de deprimir o próprio criador, não sensibilize o homem de ver, dentro de si mesmo, reconhecido do estrago que promove.
Sim, o dilúvio foi o desespero de Deus, tentado devolver a terra ao caos. Mas prevaleceu sua graça, simbolizada na vida de um homem e sua família:
⁸ "Porém Noé achou graça diante do Senhor. ⁹ Eis a história de Noé. Noé era homem justo e íntegro entre os seus contemporâneos; Noé andava com Deus." Gn 6.
Não foi o primeiro. Seu bisavô Enoque também andou com Deus. Essa virtude chegou, pela fé, a Noé. A oração de seu pai, ao nascer-lhe o filho, além de desejar nela que fosse profeta, reflete o mesmo pesar de Deus.
²⁸ "Lameque viveu cento e oitenta e dois anos e gerou um filho; ²⁹ pôs-lhe o nome de Noé, dizendo: Este nos consolará dos nossos trabalhos e das fadigas de nossas mãos, nesta terra que o Senhor amaldiçoou." Gn 5.
Esse bisavô foi tomado, por Deus, ainda novo, aos 365 anos (mais ou menos 36, numa comparação de 1/10).
²³ "Todos os dias de Enoque foram trezentos e sessenta e cinco anos. ²⁴ Andou Enoque com Deus e já não era, porque Deus o tomou para si." Gn 5.
Deverá, talvez, tê-lo arrebatado para que não presenciasse o Dilúvio, quem sabe. Seu neto Lameque, pai de Noé, terá morrido em pleno ano do começo da catástrofe.
Jesus também afirmou que o mundo continua o mesmo.
³⁷ "Pois assim como foi nos dias de Noé, também será a vinda do Filho do Homem. ³⁸ Porquanto, assim como nos dias anteriores ao dilúvio comiam e bebiam, casavam e davam-se em casamento, até ao dia em que Noé entrou na arca, ³⁹ e não o perceberam, senão quando veio o dilúvioe os levou a todos, assim será também a vinda do Filho do Homem." Mt 24.
Maior é o efeito da bondade e da graça de Deus, que sempre vence. Há cura para a maldade. Mas toda a vez em que se tomar das Escrituras, sem remédio paliativo, haverá de se ver, cada um, confrontado com o mal que jaz dentro de si mesmo. E seu antídoto em andar com Deus.
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