sábado, 2 de maio de 2020

Atenção, regente: chegou o sorriso.

      Acho que é minha idade. Eu já vi alguns clãs desaparecerem. Acho até que deveria ver outros. Mas a distração me condena. 
      Mas falo dos que atravessaram meu caminho. Vou aqui mencionar um, como introdução, e outro, como tema. 
      O clã de minha prima, em segundo grau, Alerte, o marido Manoel Rangel e o filho Vanderlei. Prima de minha mãe por parte de meu avô Baldomero.
      Parentada meio distante. Mas se tornou próxima porque, a partir de 1967, Rangel passou a tratar com Cid, meu pai, os trâmites para morarmos no Méier.
     Rangel construíra o conjugado, garagem no térreo, terraço acima, ele 201 e nós no 301, este era para o Vanderlei, mas ele desfez o noivado em cima da hora.
     Bem, ficamos em cima, no 301. Morreu Rangel.  Morreu Vanderlei. Morreu, por último, Alerte. Um clã parecido com o de Dorcas, Cid e eu: resta um.
    E ontem soube que se foi o caçula do clã dos Spiller: Cláudio. Visitei a mãe, Eunice, em casa dele, na estrada do Pau Ferro, na Freguesia, Rio, RJ. Eunice foi minha diaconisa predileta. 
     Eunice Spiller, alma da Congregacional de Copacabana. Eu patoreei três IECCs: Igreja Evangélica Congregacional de Curicica, Cascadura e Copacabana. 
       A gente traz marcadas as experiências que vive nas igrejas que pastoreia. Sigo o rastro do Limeira, amigo de meu pai, cuja esposa, Clovelina, era amiga de minha mãe, na Congregacional de Nilópolis, desde que tinham 3 anos de idade.
     Certo dia, Limeira foi ao Méier me convidar para ser pastor em Copacabana. Só saí de lá, porque foi ordem de Deus. Ali encontrei Eunice Spiller. Uma das maiores mulheres que conheci. 
       Tinha sua alma na igreja e a igreja em sua alma. Fuçava pessoas que visitássemos em Copacabana. Amigas suas, crentes antigas, como as duas irmãs já idosas, filhas de um antigo pastor presbiteriano dos anos 30.
     Os problemas e angústias da igreja estavam guardados dentro dela. Queria resolver todos de uma vez. Foi com ela e com outro ancião, diácono Pedro Campelo, 85 anos, mas de uma energia diuturna, que compramos a kitnet da igreja. Claro que houve mais ajuda. Destaque para esses dois. E ainda menciono o pastor José Remígio, regente com Campelo. 
       D. Eunice deu, literalmente, 1 ķg de ouro: saí no ônibus para o Centro do Rio com a Barra dentro do bolso da calça, embrulhada num saquinho de supermercado. Eu havia dito a ela: não posso aceitar. Sua idade não permite. Há os filhos.
        Mas sobressaiu seu gênio: eles resolvem os problemas deles, sem me consultar. Eu vou resolver este, sem consultá-los. Está bem. A igreja assumiu. Semana seguinte, ela me disse que Cláudio a procurara, porque tinha destino para o quilo do ouro: precisavam investir. Eu arregalei olhos. Ela sorriu. Disse a ele que doei à igreja. E ele, angustiei perguntando. Sorriu, disse ela, e falou: "Mãe, não podia ser destino melhor".
        De Copacabana eu trago comigo, além da lembrança ativa da atividade incansável de Eunice Spiller, cada grupo com quem nos envolvemos naquele breve, mas intenso período de ministério. 
      Somente iria para o Acre, seguindo no rastro que Limeira desenhou, porque foi ordem de Deus. Se não, eu não sairia nunca. Ali Eunice me colocou no centro de seu zelo pela igreja e pelo amor de sua família. Cláudio, caçula dela, inesquecível o seu sorriso misto. 
    Matreiro, irônico, enigmático, ha ha ha, moleque mesmo, tudo se misturava nele. Uma síntese daquela época áurea da Congregacional de São João de Meriti, RJ. Ali foi gestada Copacabana, na mudança da família Spiller para aquele bairro. Foi gestada Copacabana na visão de Limeira. Foi gestada Copacabana na alma de Eunice Spiller. 
     Seguiam rastro, pioneirismo e arrojo de Limeira, que alcançou Manaus, AM, Boa Vista, RR, e Rio Branco, AC, onde estou há 25 anos. Somente deixei sozinhos meus diáconos Eunice e Pedro Campelo porque foi ordem de Deus. 
    Copacabana e seus grupos: Emocionais Anônimos, numa tarde, na salinha da igreja; mulheres da colônia judaica, com algumas católicas, estudando o Primeiro (ou Antigo) Testamento; os "rapazes", um deles, introduziu-me no grupo da Pastoral Carcerária, dentro do antigo presídio da Frei Caneca, hoje implodido.
     Histórias densas de testemunho das Escrituras e do evangelho. Com as "meninas", estudamos Jó, Isaías, Jeremias, alguns dos Profetas Menores e Salmos esparsos. No Anexo da Frei Caneca, com ex-policias apenados, fazíamos os encontros, eu e Eneias, uma vez a cada semana.
    Com a mocidade da Congregacional de Cascadura, fazíamos uma vigília de dois turnos: oração das 20 às 21h30; beira-mar, no testa a testa, na noite infindável de Copa, até as 5h da manhã. Pelo menos, umas quatro vezes foi assim. Todas as pessoas da noite ouviam o evangelho. 
      Numa delas, lembro da roupa, tamanho da barriga e da garoa fina que caía quando, já amanhecendo, eu e Regina, grávida de Isaac, começamos a combinar o regresso para o ap do Campinho. Estava encerrada mais aquela vigília em Copa. 
       Ontem soube que o último do clã Spiller se foi. Claro que a legenda da família está preservada. Não conheço com detalhes os nomes de todos. Claro que d. Eunice apresentou-me os netos e netas, um a um, na medida em que eu visitava, com ela, Paulo, Marli e Cláudio.
     Mas de minha geração e convívio em Copa foram mesmo o clã completo de pai, mãe e três filhos: Geraldo, Eunice, Paulo, Marli e Cláudio. Sentado na cama do ap da Tonelero, lembrei ao Patriarca Spiller, para animá-lo em sua enfermidade, a semelhança com Jó.
     O senhor tem facilidade financeira, agradeça a Deus, tem filhos amorosos, que se preocupam e cuidam do Sr, e a esposa que administra os seus cuidados. Jó, além da perda da saúde, perdeu todos os filhos e todos os bens.
    Cantamos juntos um hino de sua preferência. Oramos juntos. Eunice Spiller participando ali conosco. Ela insistia que nos víssemos e que orássemos juntos, para animá-lo. Assisto, com tristeza, antes ainda de minha ida para o lar, na mesma viagem, à partida de mais esse clã.
     Mas tenho certeza que, agora, todos juntos sorriem. Atenção, maestro: para o ensaio, que chegou a nota afinada regida pelo sorriso do caçula. Gargalhada de Marli ressoando com a de Jesus. Livres e leves, sem precisar de Paulo como piloto.
       Meio que calada, d. Eunice Spiller, minha super diaconisa, neste momento, folga e também sorri: todo o clã está unido com Jesus.  Eunice, alma de minha época em Copa. Paulo dizia que, em sua preocupação e afazeres com a igreja, dava continuidade ao sofrimento de Cristo. Eu pensava que era pretensão dele dizer isso, até que encontrei essa mulher que fez o mesmo.
   Na minha memória fica o sol de Copacabana, nem pela praia em si, dentro da qual, por ironia, nunca entrei. Mas pelo circuito que me levava a pé, por suas ruas, eu e minha diaconisa Eunice Spiller.
     N.Sra. de Copacabana, República do Peru, atravessa-se Barata Ribeiro, alcança-se a Tonelero, ligeira dobra à esquerda, segundo edifício. Uma rápida refeição ou pequeno lanche porque, hoje à tarde, tem visita.

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