sexta-feira, 20 de outubro de 2023

Dez lições do casal Kalley

                                         

Rev. Maurício Amazonas, OSE, o mais congregacional dos anglicanos

O casal britânico que esteve no Brasil entre 10 de Maio de 1855 e 10 de Julho 1876, Robert Reid Kalley e Sarah Poulton Kalley, morava em Petrópolis e de lá descia para o Rio de Janeiro, onde instalaram a “primeira Igreja Evangélica de fala portuguesa e em caráter permanente”, como costumam dizer os historiadores kalleyanos. Trata-se da Igreja Fluminense, no Rio, em 11 de Julho de 1858. Os Kalley inauguraram a segunda igreja protestante no Brasil, sendo essa no Recife, chamada de Igreja Pernambucana, em 19 de Outubro de 1873, que funciona atualmente na Rua do Príncipe. O casal pioneiro deixou muitas lições sobre sua missão no Brasil. Vamos enumerar dez dessas lições.

1. Reconhecer o valor das crianças. A primeira coisa a se organizar foi uma classe de Escola Dominical para crianças, em 19 de Agosto de 1855. Nela, estudavam crianças brasileiras e estrangeiras, filhas de trabalhadores, escravos e diplomatas.

2. Interpretar a lei a seu favor. Era proibido pregar aos brasileiros. Os anglicanos poderiam pregar aos ingleses, nas suas capelas; e os luteranos, para os alemães. Com inteligência estratégica, Dr. Kalley trouxe famílias portuguesas protestantes. À medida que Kalley realizava os ofícios, os brasileiros entendiam a pregação e as letras dos cânticos.

3. Instituir liderança leiga. Os portugueses, mais algum inglês ou estadunidense, vieram para trabalhar como colportores vendendo Bíblias e folhetos com porções das Escrituras. Eles eram pregadores para quem dona Sarah muitas vezes escreveu os sermões. Esses homens tinham o grande desafio de vender Bíblia para um povo pobre, com muitos analfabetos. Por isso o Dr. Kalley precisava sustentá-los com seus recursos. Logo alguns bispos e padres romanos começaram a dizer que as Bíblias de Londres eram falsas e seus fiéis estavam proibidos de ter acesso a elas.

4. Usar a imprensa. Kalley resolveu usar o meio de comunicação de sua época para responder aos ataques e defender as Bíblias de Londres. Além disso, ele foi o primeiro tradutor de John Bunyan (1628-1688) para o português, e o fazia em pequenos espaços pagos no Correio Mercantil. “A Viagem do Cristão” se tornou tão popular que ele precisou publicar um trecho a cada dois dias. Além disso, Kalley usava teatros e salões de recital para falar acerca da Cidade Santa, como o fez no Teatro de Santo Antônio, quando esteve no Recife, e na casa real de veraneio em Petrópolis, por solicitação do próprio Dom Pedro II.

5. Receber apoio de aliados. Intelectuais e liberais começaram a ver na pregação evangélica de Kalley um caminho para emancipação do pensamento que até então estava atrelado à Igreja ultramontana e à Coroa. Kalley era moderno e combinava mais com os anseios republicanos de então. Ele aceitou que maçons e jornalistas ajudassem na causa de defesa das Bíblias, como fez Abreu e Lima, por exemplo.

6. Conhecer as leis do País. Kalley entendeu que não bastavam os colportores vendendo Bíblias nas ruas e ele se defendendo dos ataques de Roma através da imprensa, com apoio de amigos. Resolveu se explicar perante as leis do País e do Parlamento, mediante contratação de 3 advogados de notório saber jurídico, entre eles Joaquim Nabuco. Após o questionamento de suas 11 perguntas, ficou estabelecido pelo Parlamento, que não era crime, como antes se julgava, explicitar a fé protestante para qualquer brasileiro que buscasse explicação, uma vez que ele pregava para portugueses que, por acaso, falavam a mesma língua que os brasileiros.

7. Antecipar eventos libertários. Dr. Kalley exigiu que os membros da Igreja Fluminense libertassem seus escravos sob pena de exclusão. Alguns escravos foram libertos, mas alguns senhores deixaram a igreja por causa dessa condição. Vale destacar que isso aconteceu 23 anos antes da assinatura da Lei Áurea. Também convém lembrar que Dr. Kalley, na condição de médico, cobrava muito bem dos ricos e consultava os pobres de graça, além de lhes doar o medicamento, muitas vezes. 

8. Fraternidade confessional. Dr. Kalley sabia diferenciar as coisas. Antes de vir ao Brasil, foi missionário na Ilha da Madeira. Ali, fez amizade com o bispo romano que era seu paciente, que facilitava entrada de Bíblias na alfândega e avisava das intenções dos bispos de Portugal. No Brasil, foi amigo de padres. Seu revisor de texto era romano e o convidou para um casamento: os Kalley atenderam. Muito contribuiu com os presbiterianos recém-chegados dos EUA. Aceitou ajuda pontual de anglicanos no Rio. Seu pastor auxiliar, Rev. Richard Holden, era ex-sacerdote anglicano. Deu carta de transferência para um jovem que veio a ser o primeiro pastor presbiteriano ordenado no Brasil. Não podemos dizer que Dr. Kalley era ecumênico, pois ainda não existia o termo, mas ele tinha esse espírito.

9. Música aliada à missão. Foram os Kalley os pioneiros na confecção de um hinário brasileiro em português, o Salmos & Hinos. Também instituíram o canto coral a quatro vozes ao publicarem o Salmos & Hinos com música.

10. Saber a hora de sair de cena. Talvez esta seja a lição mais difícil, pois não é fácil estabelecer os limites da nossa atuação pública no ministério. Sarah e Kalley prepararam a igreja, a liderança e um sucessor que estudou teologia, para ser pastor da Igreja Fluminense.

Estes pontos nos mostram missionários sensíveis à conjuntura brasileira e uma postura comprometida com a radicalidade do Evangelho, enfrentado os desafios com os recursos disponíveis no seu tempo. Assim, abriram o caminho para formação de uma liderança nacional e deixaram duas igrejas com bases sólidas para um crescimento real e genuíno.

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