quarta-feira, 17 de fevereiro de 2021

Sem enganos pré-fabricados

 Tal conhecimento é maravilhoso demais para mim: é sobremodo elevado, não o posso atingir". Salmos 139:6


     Certo pastor de minha época de juventude, aliás meu professor quando, com 21 anos incompletos, ingressei no Seminário, em 1978, escreveu um sermão iniciando: "Certa vez, enganou-se o salmista de Israel".

     Decerto não foi um única vez que eles se enganaram. Principalmente, falando sobre Deus. É muito fácil nos enganarmos ao falar com Deus, ao falar de Deus ou falar sobre Deus.

     O outro salmista a que me refiro é esse do versículo acima, que diz: "Tal conhecimento é maravilho demais para mim". Ora, enganado porque o demonstrativo "tal" está se referindo a um conhecimento específico.

     E a minha pergunta é qual conhecimento sobre Deus não seria "maravilhoso demais" para qualquer um de nós? O salmista expõe sua fragilidade nessa afirmação. Fala em nome de todos nós. Não dá para discordar dele.

    Em relação ao assunto deste salmo, "tal conhecimento", assim como em relação a qualquer outro. Neste tempo em que vivemos, pouco sabemos dele. Apenas perplexidade e reflexão.

     Vamos enumerando narrativas atrás de narrativas, um colar de histórias, de gente de nosso circuito, outras que chegam pela mídia, as tentativas de pormenorizar os avanços das pesquisas, a indicação dos resultados práticos, a expectativa da vacinação e nossa torcida para que não se torne vacilação.

     E logo vem a frase do outro salmista: "E o teu Deus, onde está?". Tal conhecimento é maravilhoso demais para mim. O que significa dizer "sobremodo elevado": não o posso atingir, apenas parafraseio o salmista, nosso amigo de horas certas e incertas.

    Deus não se importa que o procuremos, seja em hora certa, ou em horas incertas. Não vai nos "jogar na cara" essa vocação que temos para torná-lo, como fez Raquel, um "deus portátil", carregado em nossa bagagem.

    Seria o "deus talismã", para o qual viveríamos sem dar, para ele, a mínima satisfação. Mas numa hora de aperto -- e que aperto é nessa hora! -- a gente recorreria a ele. Um deus sem personalidade. Talismãs, "deuses de sorte", escondidos em algum canto da bagagem que levamos, ao longo da vida, em nossas mudanças.

     Jacó foi rigoroso por demais ao proferir: "Não viva aquele com quem achares os teus deuses". Isso porque quem de nós nunca foi tentado a carregar "ídolos do lar", essas "miniaturinhas de sorte", encaixadas nos nichos da vida, para na hora do medo, sermos "salvos" por nossas superstições.

    Trata-se do deus domesticado que todos desejamos, para pôr nele a culpa de todo o infortúnio de ocasião, esquecendo-nos dele quando a sorte, ou o que chamamos sorte vier. Ou até se, do ídolo lembrarmos, contentarmo-nos em pôr no "cantinho do deus" algumas continhas, para enfeitar o altar.

    Assim, como Labão e Raquel, cada um tem a religião que merece, tal pai, tal filha. Definitivamente, Jacó foi, por demais, rigoroso. Deus implode com nossa religião. A realidade vem mais dura do que parece. É melhor encarar Deus.

    Para, então, como o salmista, concordar que, diante de Deus, sempre será maravilhoso demais, sobremodo elevado e inatingível. E vai requerer que estejamos à Sua disposição, vivendo debaixo de Sua providência e cuidado, e que abandonemos essa ideia de "deuses à tiracolo", sujeitos aos nossos caprichos.

     Ídolos do lar, deuses domésticos, levados à tiracolo, sujeitos aos nossos caprichos, objeto de nossa religião. Deus nos quer sem religião nenhuma. Nus diante dele, como cobrou do primeiro casal quando os procurou no jardim. Ali, na invenção do primeiro ritual, Deus mandou aparecer nu diante dele.

     E no último livro, no Apocalipse, aconselha à sétima igreja a que abram os olhos, comprem ouro somente com Deus e peçam outrras roupas para si. A realidade é essa que está nas ruas. Diante de Deus, primeiro, saindo sem medo ao encontro dela.

     Mas com máscara, no sentido literal, porém sem nenhuma máscara, no sentido figurado. Sem a síndrome de Labão e Raquel, que levavam (e furtavam) deuses a tiracolo, com eles alimentando medo e superstição. Porém munidos da franqueza, sinceridade e intrepidez (ainda que ocasional) de Jacó, que buscava o Deus maravilho demais para ele.

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