segunda-feira, 1 de fevereiro de 2021

Só de ouvir falar

     No final de toda a sua trajetória -- e que trajetória! -- , Jó vai dizer que conhecia Deus só de ouvir falar. Ora, um homem, como definido no início de livro, "íntegro e reto, temente a Deus e que se desviava do mal" não pode conhecer Deus só de ouvir falar.

     Algumas questões podem ser enumeradas mediante essa afirmação de Jó: 1. Para ver Deus, como Jó afirma que viu, será necessário passar pelo que ele passou? 2. Somente alguns privilegiados, quer dizer, "espirituais top de linha" poderão afirmar o que Jó afirmou?

     O que significa ver Deus? Em primeiro lugar a fé: é por meio dela que todos temos acesso a Deus. "Sem fé, é impossível agradar a Deus", assim como receber galardão como retorno. E as Escrituras continuam afirmando: "Ninguém jamais viu a Deus".

     Elas dizem de Moisés que ele "via o rosto de Deus" e, de Jesus, ter sido o único que viu (quer dizer, continuamente vê) a face de Deus como Ele é. Então dizer que Jó viu Deus tem sentido figurado, apenas. A reposta será sim e não.

    Sim, porque ver Deus pelos olhos da fé é comum a todo o que crê. Não, porque ninguém viu, a respeito de Deus, tudo o que tem para ver. Quando Jó disse "agora meus olhos te veem", é porque, por exemplo, poderia, a partir dali, percorrer repetido toda a sua experiência até ali, e seria tudo totalmente novo, porque Deus torna tudo novo de novo sempre. 

     Deus renova a nossa experiência de um modo que é como se o víssemos a cada momento e de modo renovado. A experiência de Jó nos socorre para que peçamos a Deus que também seja a nossa, com nossos olhos bem abertos.

      Tão cruciante a experiência de Jó que, talvez, em algum momento, ele pode ter se enganado, achando a própria experiência ou circunstância superior ao próprio Deus. No auge de sua dor ou perplexidade, talvez Jó tenha "reinterpretado" Deus.

     Imaginemos, logo de início, a avaliação que Deus faz de tudo o que Jó havia dito: "Quem é este que escurece os meus desígnios com palavras sem conhecimento?" Jó 38:2. Será que, lendo o livro de Jó, a gente imaginou que essa era, todo o tempo, a avaliação de Deus a respeito do que dizia, todo o tempo, nosso herói?

     E logo depois, ainda nessa introdução de sua conversa com Jó, Deus pergunta: "Onde estavas tu, quando eu lançava os fundamentos da terra?" Jó 38:4. Em relação a Deus, onde estamos nós? Isaías diz que Deus tem uma espécie de "moradia dupla":

     "Habito no alto e santo lugar, mas habito também com o contrito e abatido de espírito, para vivificar o espírito dos abatidos e vivificar o coração dos contritos". Isaías 57:15.

     Vivemos um tempo semelhante ao de Jó. Muitas pessoas, em maior ou menor intensidade, estão tendo experiências de doença, impotência e perda. Deus não está indiferente e continua maior do que toda a provação, tribulação e dor que estamos enfrentando.

     Vemos Deus no momento da fé que opera a nossa salvação. Paulo Apóstolo afirmou ao rei Agripa: "Não fui desobediente à visão celestial". At 26,19. Quando, como diz Pedro em 2 Pe 1,19, "Temos, assim, tanto mais confirmada a palavra profética, e fazeis bem em atendê-la, como a uma candeia que brilha em lugar tenebroso, até que o dia clareie e a estrela da alva nasça em vosso coração".

     Esse resplendor da candeia, esse "nascer da estrela da alva" é a primeira visão de Deus. Até aí, ouvíamos falar, mas daí em diante, nossos olhos O viram. Mas haverá muito mais a ver. Por isso Jó afirma, sem se considerar "super crente", que ainda tinha muito a enxergar.

      E não existe grau de espiritualidade na igreja de Cristo. Pelo menos, não deveria existir. Para Deus, não existe espiritualidade que não seja serviço. Em sua despedida, quando simbolicamente Jesus lavou os pés dos apóstolos, quis indicar exatamente isso.

    O gesto de Jesus não foi demagógico ou apenas teatral. O mais espiritual, no sentindo verdadeiro, servo de todos e Senhor de todos. Nenhuma espiritualidade no Reino de Deus preenche a vaidade humana pessoal, mas está a serviço de todos os demais, como foi com Jesus. Como afirma João Apóstolo, em 1 Jo 4,17: como Jesus é, nós somos neste mundo.

     Nossos olhos precisam fixar-se na visão com que fomos chamados. Desde que Deus se revelou a nós, não podemos viver como quem apenas dEle ouve falar. Mas como quem "enxerga o invisível", segundo nos diz o autor de Hebreus.

     

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