terça-feira, 17 de maio de 2022

Cordas humanas, laços de amor

     Havia uma Vila das Torres. Pelos idos de 1966, cheguei a Cascadura. E ouvia falar da Congregação de Magno e do Diácono Antônio Guedes que lhes dava assistência.

   Era uma sequência ďe sobradinhos, às vezes somente cômodos térreos, espremidos entre a linha férrea, de um lado, e a horta enorme de larga e extensa, de bairro a bairro, do outro.

   Eu tinha 7 anos incompletos. Minha mãe me conduzia pela mão, de casa à igreja, bastando sair de nossa rua, atravessar a avenida do bairro, Ernani Cardoso, entrar também por outra vila, percorrê-la até a fronteira de seu muro com a horta, larga e extensa, descendo a partir da João Romeiro, a rua da Igrejinha Antiga, cercanias do Morro do Fubá, em direção aos lados de Turiaçu.

     Acompanhando o traçado da horta, morro abaixo, Cascadura em direção a Madureira, chegava-se à Vila das Torres. O garoto de 7 anos incompletos mal sabia que, um dia, quase 20 anos depois, seria pastor dessa mesma igreja. E curioso do trabalho que, na época, "seu" Guedes já fazia, mal saberia esse menino quantas lições aprenderia com a gente dessa vila.

    Ali encontrou, pelo menos, três famílias que muito lhe ensinaram, sim, porque igreja é uma troca. Milton e Edinalva, Manoel e Maria, Possidônio e Rita. Vidas marcantes, exemplos de vivência cristã e luta corajosa no dia a dia da vida.

     Certa vez seu Souza, como d. Rita chamava o esposo pelo sobrenome, pedia na igreja oração por emprego. Havia meses que careciam de nossa ajuda, porque não entrava salário. Deus atendeu às nossas orações. Veio o emprego.

    Possidônio Cirilo de Souza resolveu, no primeiro pagamento, dá-lo todo como oferta à igreja. Ora, irmão: isso não é necessário. Deus lhe compreende o esforço. Seja fiel ao dízimo, irmão, já basta.

    Não, pastor. Quem já está até agora sustentado na benção de Deus, pode continuar por mais um mês. Era assim o Souza. D. Rita, certa vez, acercou-se de mim: pastor, o Souza não quer que lhe diga, mas ele está ruim do ciático. Fez arte. Ele não queria que a esposa me incomodasse, para eu não fazer o que fiz, levá-lo, no Fusca azul céu, ao Hospital Municipal Barata Ribeiro.

    Ele também queria manter secreto. Qual arte foi? Possidônio pulou para o outro lado do par de trilhos, a chamada linha auxiliar da antiga Central do Brasil, catando restos de parafusos, restos das placas de apoio dos dormentes, o que houvesse, pondo num carrinho de mão e descendo a Conselheiro Galvão, pela calçada, na contramão do tráfego, até um ferro-velho em Turiaçu.

    Era Campanha de Missões em Cascadura. O Souza queria angariar fundos, junto com Rita, que vendia seus docinhos, balas e amendoins. Pausa. Porque há mais para contar. Manoel Marques e sua oração por todos os filhos, cada filho, cada um, cada uma com sua história.

      De como Joel largou a bebida, embora não declaradamente convertido. De como João Batista por diversas vezes, entre elas uma internação exaustiva no hospital, foi curado e pôde continuar seu trabalho na estiva. E de como, do modo como o próprio pai leu para mim, na Bíblia, numa triste manhã, Jair, como adverte o mandamento, não honrou pai e mãe e, por isso, não teve seus dias prolongados na face da terra.

     Eu saía à noite da UERJ, coladinha no Maracanã, onde estudei entre 1982-1988, chuva torrencial, como dizia meu pai, eu subia a Grajaú-Jacarepaguá, meu destino era a Estrada do Guerenguê, em Curicica para, na Rua Arália 145, encontrar Manoel Marques amparado por seu enorme guarda-chuva, o primeiro a chegar, esperando no portão. Sentava-se no Fusca ao meu lado, enquanto aguardávamos Emilzair, logo chegando, com Rafael no colo e Rogério, carregando uma sombrinha muito grande para seu tamanho.

     Era 5 de julho de 1982. Naquele dia, Milton deve ter ficado chateado comigo. Porque eu saí no Fusca azul do Meier e me mandei para a Vila das Torres. Ora, era Brasil e Itália, com aquele timão de Leandro, Júnior, Toninho Cerezo, Zico e Sócrates, entre outros. Mas Edinalva havia ligado: pastor, ele está aqui, assistindo ao jogo. Me abalei para a Vila das Torres, rapidinho, trânsito zero. Afinal, era a Copa do Mundo.

     A preocupação da esposa era advertir o esposo de que não deveria se afastar da igreja. Aliás, Edinalva fazia isso com todos os filhos. Da primogênita, Márcia, à caçula, Renata, passando pelo menino, Eneas, Liliane e Silvia. Havia dito a mim que eu cercasse Milton, escorregadio que só, e fi-lo em pleno jogo da semifinal de 1982.

     Postei-me de costas para a linha do trem, Milton defronte, de costas para o jogo, ora, muito provavelmente ele estava com atenção dispersa, era claro. Mas eu pensava, ora, haverá de entender minha estratégia, consciente que é de que, por falar em Copa, ele vive driblando o pastor. E todos esperávamos que a conversa terminasse ainda a tempo de se ver um resto de jogo, é claro, com vitória nossa.

     Mas Paolo Rossi fez o seu terceiro no mesmo jogo, contra o Brasil, e isso eu e Milton deduzimos juntos: houve grito de gol, mas não houve fogos espoucando. Assim eu e Milton conversamos naquela tarde de ressaca, armação de d. Edinalva, que deve ter sorrido um de seus sorrisos o mais bonito, tome, seu Milton, a marcação do Brasil falhou, mas eu e meu pastor, na zaga, cercamos você.

     O profeta Oseias menciona: "Atraí-os com cordas humanas, com laços de amor; fui para eles como quem alivia o jugo de sobre as suas queixadas e me inclinei para dar-lhes de comer". Oséias 11:4.  Cordas humanas, laços de amor.

    Uma característica marcante da famiia de Edinalva, pastora da casa, que punha o pastor ao encalço do marido no dia da semifinal da Copa do Mundo de 1982, eram essas cordas humanas, esses laços de amor.

    Não carece esconder que os moradores da Vila das Torres eram pessoas de menor poder aquisitivo. Muitas vezes, como ocorreu e aqui descrevemos, a igreja se dispunha a ajudar, como aconteceu com seu Souza. Mas nada foi impedimento para a família desses laços de amor.

    Não por acaso Eneas é pastor. Bem sabe o quanto deve disso a sua mãe. E cada um dos filhos privou e sabe e conhece e vivenciou todo o cuidado de Edinalva que, inclusive, nesse meio de campo, sempre cobria uma brecha ou outra que Milton deixava na defesa. E cada neto ou neta não tem como negar ou esconder a marca de fé e de amor de sua avó.

    Daí que quem encontra hoje essa família, constata sua evolução e maturidade. E constata que marcas de amor prevalecem. Quem entre eles, como a própria Bíblia adverte, teve ouvidos para ouvir, que ainda tenha, traz consigo as marcas de amor que Edinalva soube semear ao longo de sua experiência de vida.

     Brinquei ontem com o pastor da família que exortasse sua mãe, que era ovelha deste pastor longe, assim como do pr Bernardino, mais perto. Vicente de Carvalho herdou a Congregação de Magno, enquanto a urbanização do bairro ainda não implantara o Parque de Madureira.

     Edinalva transferiu-se. Na congregação do céu, o Pastor agora sabemos quem é. Antecipou-se na promessa. Ao filho disse, momentos antes, estou preparada. Cordas humanas, laços de amor. Vocês família Almeida Santos foram e estão, nós igreja de Cristo, junto com vocês, fomos e estamos amarrados por esses laços. Família de Deus. 
    

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