quinta-feira, 29 de fevereiro de 2024

Pobre diabo (ops!), ou melhor (ou pior): A síndrome de Caim

 Por mais irônico que possa parecer, esse termo se refere a pessoas. Algo como "pobre coitado". Quanto a mim, às vezes o menciono quando desejo afirmar que o demo não mais tem toda a culpa.

   Algo como afirmar que, a essa altura da existência humana, não precisamos do diabo para ser maus e a simples existência (ou não existência) de Deus não nos torna melhores.

  Claro que, teologicamente falando, Deus existe e é o Sumo bem. Por causa dEle, e somente por causa dEle, há possibilidade de sernos bons, vai depender de nossa escolha.

  Porém, graças ao império de nossa vontade, ó, como é poderosa essa nossa vontade, a escolha é nossa. Desde a conversa com Caim, quando o autor dessa narrativa assim afirmou, existe e está posta essa possibilidade de escolha. 

   ⁶ "Então, lhe disse o Senhor: Por que andas irado, e por que descaiu o teu semblante? ⁷ Se procederes bem, não é certo que serás aceito? Se, todavia, procederes mal, eis que o pecado jaz à porta; o seu desejo será contra ti, mas a ti cumpre dominá-lo." Gênesis 4.

  Já o autor de Hebreus refere-se à virtude de Abel que, afirma ele: ⁴ "Pela fé, Abel ofereceu a Deus mais excelente sacrifício do que Caim; pelo qual obteve testemunho de ser justo, tendo a aprovação de Deus quanto às suas ofertas. Por meio dela, também mesmo depois de morto, ainda fala." Hebreus 11.

   Mas talvez não interesse a nós ser um Abel morto, vamos continuar sendo um Caim vivo, mesmo que, ainda que eventualmente, assim supondo, afastemo-nos para longe da presença de Deus, como ele, finalmente, escolheu fazer.

   Mais vivo do que nunca. Mesmo porque, temos a ligeira impressão de que, a escolha pela fé, essa mesma feita por Abel, nos tornaria frágeis como ele. Evidente que nunca vamos admitir ter escolhido igual a Caim, esse, que sobreviveu.

     Mas fez-se a si mesmo de pobre diabo, ao invés de se arrepender, quando falou a Deus: ¹³ "É tamanho o meu castigo, que já não posso suportá-lo. ¹⁴ Eis que hoje me lanças da face da terra, e da tua presença hei de esconder-me; serei fugitivo e errante pela terra; quem comigo se encontrar me matará." Gn 4.  

  Nem Deus o lançava da face da terra ou de Sua presença. A escolha foi dele, de se esconder e se tornar fugitivo da presença de Deus. Pusilânime. Não se assumiu e nem a sua culpa, ainda que interpelado pelo próprio Deus.

  Digamos não somos assassinos. E nunca matamos ninguém (nem a Abel). Bem, quer dizer: não, mal, melhor (ou pior) dizendo: assassinos de reputações não podemos dizer que nunca fomos. Porque sempre haverá, na lista de nossas relações, alguém que satanizamos.

   A isso referiu-se Obadias, quando afirmou: ¹² "Mas tu não devias ter olhado com prazer para o dia de teu irmão, o dia da sua calamidade; nem ter-te alegrado sobre os filhos de Judá, no dia da sua ruína; nem ter falado de boca cheia, no dia da angústia; ¹³ não devias ter entrado pela porta do meu povo, no dia da sua calamidade; tu não devias ter olhado com prazer para o seu mal, no dia da sua calamidade; nem ter lançado mão nos seus bens, no dia da sua calamidade; ¹⁴ não devias ter parado nas encruzilhadas, para exterminares os que escapassem; nem ter entregado os que lhe restassem, no dia da angústia." Obadias 1.

   Desculpe essa longa série de "não devias" (mas também, só assim a gente dá uma lidazinha nesse profeta). Pois é ele que denuncia o nosso sutil mascaramento, o disfarce, a dissimulação, como disse Paulo a Pedro, numa dessas reuniões de ágape em Antioquia.

   ¹³ "E também os demais judeus dissimularam com ele, a ponto de o próprio Barnabé ter-se deixado levar pela dissimulação deles. ¹⁴ Quando, porém, vi que não procediam corretamente segundo a verdade do evangelho, disse a Cefas, na presença de todos: se, sendo tu judeu, vives como gentio e não como judeu, por que obrigas os gentios a viverem como judeus?" Gálatas 2.

   Não proceder, corretamente, segundo a verdade do evangelho está posto como opção, assim nos ensina Pedro. Optar por corrigir esse procedimento, segundo exorta Paulo, também está posto.

   É por isso que o autor de Hebreus afirma que Abel, ainda que morto, há tanto e tanto tempo, ainda fala. Pois a fé de que era portador está viva. E posta, do mesmo modo, como opção. Caim poderia ter assim escolhido ainda na primeira conversa dele com Deus.

   E mesmo ainda após matar seu irmão, poderia ter se arrependido. Arrependimento também está posto. Dependemos dele, continuamente, toda vez que formos assaltados pela síndrome de Caim, essa de nos avaliarmos como pobres diabos (melhor, coitados). 

  Porque somente o arrependimento nos confronta com a nossa real condição. Tiago é especialmente prático, quando afirma: 

²² "Tornai-vos, pois, praticantes da palavra e não somente ouvintes, enganando-vos a vós mesmos. ²³ Porque, se alguém é ouvinte da palavra e não praticante, assemelha-se ao homem que contempla, num espelho, o seu rosto natural; ²⁴ pois a si mesmo se contempla, e se retira, e para logo se esquece de como era a sua aparência." Tiago 1.

   Larga mão da maquiagem. Vamos usar o espelho apenas para ela. Mas usar a palavra para nos desnudarmos diante de Deus. Exercício contínuo. Mais semelhantes a Abel do que a Caim. Nem pobres e nem diabos (ou coitados). 

   Mas isso é só uma das opções. 

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